ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Flanelinha cinéfila
A “Rosa Púrpura” da Fradique
Dafne Sampaio | Edição 132, Setembro 2017
Rosa não estava se sentindo bem naquela semana e, pela primeira vez em quatro anos, faltou ao trabalho. Por alguns dias os carros de um quarteirão da rua Fradique Coutinho – em Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo – não puderam contar com a sua supervisão. “Esse tempo mais frio, né? E o cigarro. Aí a sinusite atacou de novo.” Já é domingo, ela está melhor e de volta ao batente. “Peraí, chegou um carro”, diz, e sai apressada.
O quarteirão de que Rosa toma conta fica entre as ruas Teodoro Sampaio e Artur de Azevedo. Embora a via, naquele trecho, possua todo tipo de estabelecimento – um banco, uma casa de chás chineses, a sede do Greenpeace, um restaurante capixaba –, o foco de atenção da flanelinha está em quem frequenta o Cinesala, um dos poucos cinemas de rua sobreviventes na cidade.
Inaugurado em 1962 como Cine Fiammetta, “o Cinema Elegante de São Paulo”, o atual Cinesala já foi conhecido como Studio ACB, Sala Cinemateca, Sala UOL de Cinema, iG Cine, Cinema da Vila, Cine Sabesp e Cinesala Sabesp. Apenas dois anos mais nova que a sala de cinema, Rosa nem lembra a última vez que foi chamada pelo seu nome de batismo, Rosalia. Rosalia Beserra Neta, natural do vilarejo piauiense de Campestre, município de Itainópolis, perto de Picos.
Ainda com alguma tosse decorrente da sinusite, Rosa chegou atrasada para os carros da primeira sessão, às 14 horas. “Mas, pelo que estou vendo aqui, foi meio fraco”, ela observa. “Geralmente é assim no domingo, pode ser o filme que for: a primeira e a última sessões são mais ou menos, enquanto a segunda e a terceira são ótimas. Olha, outro carro.” Dois passos largos logo após avistá-lo e Rosa já está na rua, fazendo sua saudação habitual aos desconhecidos: “Boa tarde. Tá precisando de vaga? Comprou ingresso? Bom filme.” A reação em geral é a melhor possível, e sua simpatia fez fama na região, conquistando os frequentadores do cinema.
Já são quatro carros encaminhados para a segunda sessão e ela se dá ao direito de acender um cigarro. “Aqui não tem filmes de ação, de efeitos especiais”, explica. “É outra categoria, uns filmes mais culturais, dramas. Mas gosto de drama, tenho paciência pra assistir. Gosto de uma história bem contada.”
Quando o movimento é fraco, Rosa aproveita para colocar em dia sua cultura cinéfila. “Na época do Cine Sabesp, quando comecei a trabalhar aqui, não me sentia confortável pra ver os filmes, mas depois que mudou para o Cinesala passei a conhecer todo mundo. Às vezes pago ingresso, às vezes me dão cortesia e também já vi filme pago por gente que vem assistir.”
Ela contabiliza umas 25 fitas a que assistiu nos últimos dois anos. Não lembra o nome de todas, mas não se esquece da empregada de Que Horas Ela Volta?, da péssima cantora de ópera em Marguerite e do amor proibido de Carol.
“Lembro também que vi As Sufragistas, aquele filme que passa lá atrás, quando as mulheres não tinham direito a nada e eram escravizadas no trabalho.” Rosa diz que nunca se sentiu escravizada, mas está na lida diária desde a adolescência, depois que perdeu os pais e se mudou para São Paulo, onde foi morar com os irmãos.
Já fez de tudo um pouco. Foi metalúrgica, feirante e camelô. No final da década passada, enfrentou dificuldades depois que a licença de que dispunha para trabalhar como ambulante foi cassada pela prefeitura. Seguiu-se um período de bicos variados, até que um dia, há quatro anos, andando pela rua em Pinheiros, foi abordada por Raimundo, um flanelinha da área. Rosa conta que ele generosamente lhe ofereceu o quarteirão do Cinesala, pois não estava dando conta de tantas ruas. A ex-metalúrgica topou na hora e foi ficando, ficando. “Esse quarteirão me acolheu”, explica.
“Agora preciso trabalhar”, anuncia, e volta para a rua. A segunda e a terceira sessões do dia foram realmente boas, como ela havia previsto. A flanelinha ficou de olho em nove e doze carros, respectivamente. “Quando estreia filme novo a primeira coisa que faço é ler a sinopse. Depois pergunto para um dos gerentes do cinema se ele acha que vai dar público ou não.” Falta meia hora para começar a última sessão de domingo; apenas três carros apareceram. Quando um quarto surge na esquina, ela nem pestaneja. “É Uber.”
Então aproveita para fazer a sua resenha especializada. “Gosto muito do Woody Allen. Mas esse último, Café Society, foi um dos mais fracos. Uma Sessão da Tarde melhorada.” Nada que se compare, contudo, a um dos maiores fiascos da sala em Pinheiros. “Meses atrás teve um filme em que entravam umas cinquenta pessoas e saíam umas 120 antes da sessão acabar”, lembrou, com uma gargalhada. “Nunca tinha visto isso. O filme chamava muita gente, é de um diretor conhecido” – Os Belos Dias de Aranjuez, de Wim Wenders –, “mas quando acabava a sessão não tinha mais ninguém.”
Apaixonada por cinema desde que viu Bruce Lee na telona, ainda garotinha, Rosa ficou um bom tempo longe das pipocas e da sala escura. Fase de muito trabalho e crianças pequenas em casa. Marcela, a filha mais velha, hoje é formada em administração, contratada por uma grande empresa. Eduardo, o mais novo, estudou psicologia e há dois anos mora em Tóquio. “Chegou o último carro do domingo”, avisa, enquanto se afasta.
É sinal de que só tem mais umas duas horas de trabalho. Tempo de o filme acabar, as pessoas e seus carros saírem, a luz da marquise apagar. Aí ela também voltará para casa, distante apenas cinco quarteirões dali.
“Olha, sempre adorei trabalhar na rua. Não tem rotina, todo dia tem gente diferente, cada um com sua ideia. Gosto mais de lidar com gente de idade porque são pessoas que já viveram o bastante para não desejarem o mal de ninguém. Acho que é porque fui criada sem pai nem mãe, então dou corda, gosto. E gosto que gostem de mim. Acho que sou meio doida, né?”
Enquanto sua pergunta fica no ar, passa uma cadelinha. “Oi, Sofia!”, ela chama, e o bicho se aproxima. “Olha, já está até me cheirando”, diz para o dono. Sofia vai embora, balançando o rabo. Rosa conquistou mais um.