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questões cinematográficas

O tempo não é base para a razão no cinema de Sokúrov

Na entrevista ao The Guardian (14/11/11), depois da sua adaptação de Fausto ter recebido o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza, em 2011, Aleksandr Sokúrov declarou que, na verdade, “não gosta muito de cinema”.

Nascido em 1951, com carreira iniciada na década de 1970, Sokúrov se define como “pessoa muito literária, não tanto cinematográfica”. Considerado a contragosto herdeiro espiritual e estético de Andrei Tarkovsky, dirigiu, entre outros, Mãe e filho (1996) e Pai e filho (2003), Moloch (1999), Taurus (2001) e O sol (2005), e  Arca russa (2002), sem falar de inúmeros documentários, comoVozes espirituais (1995) e Confissão (1998). 

| 28 jun 2012_14h20
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Na entrevista ao (14/11/11), depois da sua adaptação de Fausto ter recebido o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza, em 2011, Aleksandr Sokúrov declarou que, na verdade, “não gosta muito de cinema”.

Nascido em 1951, com carreira iniciada na década de 1970, Sokúrov se define como “pessoa muito literária, não tanto cinematográfica”. Considerado a contragosto herdeiro espiritual e estético de Andrei Tarkovsky, dirigiu, entre outros, Mãe e filho (1996) e Pai e filho (2003), Moloch (1999), Taurus (2001) e O sol (2005), e  Arca russa (2002), sem falar de inúmeros documentários, comoVozes espirituais (1995) e Confissão (1998).

Como deve ser entendido esse desgosto manifesto pelo cinema, vindo do diretor não só premiado em Veneza, mas que foi definido por Susan Sontag como “o mais ambicioso e original cineasta da sua geração, trabalhando no mundo hoje em dia”?

A pré-estreia de Fausto, sábado passado (23/6), na mostra Fausto como o inferno de Fausto, promovida pelo Instituto Moreira Salles, no Rio, e o lançamento marcado para amanhã, voltaram a chamar atenção para esse dilema.

O que Sokúrov rejeita parece ser menos o cinema em si mesmo, entendido como linguagem, e mais a cultura e o modo de representação dominantes, com os quais guarda relação ambígua – blasfema contra os “filisteus do templo”, referindo-se aos participantes do Festival de Cannes, e menospreza Sharon Stone, integrante do júri, em 2002 – segundo ele, “uma atriz pornô”. Ao mesmo tempo, Arca russa concorre à Palma de Ouro.

Essas e outras declarações foram acolhidas por Leon Cakoff em “A proximidade de um mestre” – texto de veneração explícita incluído no livro Aleksandr Sokúrov, organizado por Alvaro Machado (São Paulo: Cosac&Naify, 2002).

O cinema é um desafio penoso para Sokúrov, escreve Cakoff. “É como se eu fosse torturado a cada projeto, do início ao fim”, diz o diretor.

A negação do cinema se dá também através da eliminação do conceito de montagem, outro elo possível de ligação entre Tarkovsky e Sokúrov, ambos se contrapondo ao Estado e ao cinema soviéticos.

Embora não o mencione, Tarkovsky parece estar se referindo a Eisenstein quando escreveu discordar dos que “pretendem que a montagem é o elemento determinante de um filme. Dito de outra forma, que o filme seja criado na mesa de montagem”, afirmação que é possível supor Sokúrov subscreveria.

Em Esculpir o tempo (São Paulo: Martins Editora, 2010. 2ª edição), Tarkovskyescreve ainda que “a montagem não é, afinal de contas, senão a variante ideal de uma colagem de planos contida a priori no material filmado. Montar um filme de maneira justa, correta, significa não romper a ligação orgânica entre certos planos e certas sequências, como se a montagem já estivesse contida nelas antecipadamente, como se uma lei interior regesse essas ligações, e em função da qual nós tivéssemos que cortar e colar. Uma construção nova se organiza por si mesma durante a montagem, graças às propriedades próprias contidas no material filmado. A ordem dada aos planos revela, de certa maneira, sua essência.”

Em Arca russa, Sokúrov aboliu a montagem no sentido convencional, de maneira mais radical da que já fizera em Vozes espirituais. Nas declarações publicadas por Leon Cakoff, ele se defende dos cineastas que o atacam por considerarem um mau sinal “eliminar os conceitos de montagem”. Para ele “o cinema de montagem é um fator de tempo fora da arca da memória da qual o cinema se serve. E o tempo não é base para a razão no cinema. O cinema já nasceu dentro do cinema. Não consigo definir o código genético do cinema. Todos os seus meios escapam, ainda, a nosso controle, apesar de ter-se conseguido dominar esse tempo. Há uma contradição neste nosso meio, que acha que devemos usar unidades estanques na criação”.

Tendo levado a abolição da montagem ao limite em Arca russa, nos filmes posteriores, de Pai e filho (2003) a Fausto (2011), Sokúrov retomou o uso de unidades descontínuas de tempo, sempre privilegiando a interligação de planos longos. O que parecia explicar sua rejeição ao cinema, acaba se revelando insatisfatória e permanece por decifrar.

Confesso que não vi, no final de Fausto, a legenda a que José Carlos Avellar se refere nas suas “Quatro notas introdutórias para ver Fausto como o inferno de Fausto” (Instituto Moreira Salles | Cinema | Junho 2012 | p.13), dizendo que o filme é “a quarta parte de uma tetralogia iniciada” com o filme sobre Hitler, Moloch, continuada com o sobre Lenin, Taurus, seguido do sobre Hiroito, O sol.

Confrontado na entrevista ao The Guardian com a possibilidade de Fausto ser uma espécie de prólogo aos outros três filmes, Sokúrov fez apenas um sinal com a cabeça e disse: “Talvez”. Ou a razão de ter feito um filme de ficção e três baseados em assuntos históricos se deve a esses lidarem com a morte do poder, enquanto Fausto trata da sua aquisição, pergunta o jornalista.

“Mas ele nunca obtém esse poder”, diz Sokúrov. É impossível ter esse poder, porque na verdade ele não existe. Só existe na medida em que pessoas estão dispostas a se submeter a ele. Poder não é material. […] Sempre há uma escolha. Mesmo durante o terror de Stalin. […] Temos prazer em sermos forçados. […] Eles queriam. Por que é a posição mais confortável para a maioria das pessoas. Temos prazer em sermos forçados. Tira responsabilidade dos nossos ombros. As pessoas tem mais medo de ter responsabilidade do que de qualquer outra coisa. Especialmente de responsabilidade abrangente por seu país, pela segurança do seu povo, pela guerra e pela paz. Muitos milhões só sobreviveram por que se omitiram dessa responsabilidade. Por exemplo, votaram em Hitler, toleraram Stalin. Milhões de pessoas não fizeram nada para parar a Revolução Cultural na China. Exatamente como agora a maioria de nós está se recusando a pensar sobre o conflito em curso entre as civilizações cristã e muçulmana.”

A entrevista completa de Aleksandr Sokúrov ao está disponível aqui.

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