La jetée CO
Inesperado arquipélago – La jetée 50 anos
Falecido há dois meses, manifestações se sucedem, algumas comoventes – como os grafites, nos muros de Paris, do epitáfio Repouse em paz (Requiescat in pace – RIP), o nome dele, além das suas datas de nascimento e morte; a plataforma “Chris Marker, em memória”, oferecida pela Cinemateca Francesa a todos que queiram dar testemunho “da importância que a obra e a personalidade de Chris Marker tiveram para eles”; e também uma conferência em Lisboa que planeja debater um de seus filmes mais fascinantes – La jetée, curta-metragem de apenas 27’, distribuído no Brasil, junto com Sem sol (1982), na coleção Cinema Essencial da Aurora DVD (atualmente esgotado).
No final de novembro, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, será realizada a conferência internacional “Fotografia e cinema: 50 anos de , de Chris Marker”, promovida pelo Centro de Estudos de Comunicação e Linguagem e Instituto de História de Arte.
Falecido há dois meses, manifestações se sucedem, algumas comoventes – como os grafites, nos muros de Paris, do epitáfio Repouse em paz (Requiescat in pace – RIP), o nome dele, além das suas datas de nascimento e morte; a plataforma “Chris Marker, em memória”, oferecida pela Cinemateca Francesa a todos que queiram dar testemunho “da importância que a obra e a personalidade de Chris Marker tiveram para eles” (http://chrismarker.tumblr.com/); e também essa conferência em Lisboa que planeja debater um de seus filmes mais fascinantes – , curta-metragem de apenas 27’, distribuído no Brasil, junto com Sem sol (1982), na coleção Cinema Essencial da Aurora DVD (atualmente esgotado).
O interesse pela obra de Chris Marker não dá sinais de arrefecer. Ao contrário. Se em vida o empenho por um certo anonimato já o envolvia numa aura mítica, seu desaparecimento parece ter feito dele uma figura lendária e dado lugar ao surgimento do markerismo – não haverá cineasta ou espectador que, tendo visto seus filmes, e lido seus escritos, deixe de sonhar com seu regresso para continuar combatendo a mediocridade dominante no cinema.
Entre fontes primárias e secundárias, o site http://www.chrismarker.org/ relaciona cerca de 100 títulos, quer de autoria de Chris Marker, quer sobre ele e sua obra – é uma bibliografia imensa que tudo indica só tende a aumentar. Desse conjunto, tomo dois textos, meio ao acaso, para reler e comentar.
O primeiro é Imemória de Chris Marker, disponível também, em português, no catálogo da mostra Chris Marker – Bricoleur multimídia, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil, em 2009; o outro, é o artigo de Philippe Dubois, publicado em “Recherches sur Chris Marker”, Théorème 6 (revista do Instituto de Pesquisa sobre o Cinema e o Audiovisual, Presses Sorbone Nouvelle, 2006), trazendo em epígrafe declaração atribuída ao poeta e viajante, como Marker, Henri Michaux: “É preciso demolir a Sorbonne e colocar Chris Marker em seu lugar.”
Em Imemória, escrito para o CD-Rom, de 1997, Marker propõe considerar nossos fragmentos de memória em termos geográficos, contrariando a tendência destes “tempos megalomaníacos” nos quais temos a tendência a considerar nossa memória como uma narrativa em que “ganhamos e perdemos batalhas, encontramos e perdemos impérios”. “Obra-síntese”, como a qualificou Philippe Dubois, Imemória pode servir de introdução a La Jetée, mesmo tendo sido escrito 35 anos depois:
“Em toda vida encontraríamos continentes, ilhas, desertos, pântanos, territórios sobrepovoados e terrae incognitae. Traçaríamos o mapa de uma memória dessas e extrairíamos imagens dela com mais facilidade (e confiabilidade) do que dos contos e das lendas. Que o personagem dessa memória seja um fotógrafo e um cineasta não quer dizer que a memória dele seja mais interessante do que a de outro homem (ou mulher), mas apenas que ele deixou vestígios com os quais se pode trabalhar, contornos para desenhar seus mapas.”
A hipótese de Marker é que os vestígios (“cartões postais, recortes de jornal, catálogos, às vezes pôsteres arrancados dos muros”) traçam a “cartografia de um país imaginário”:
“Ao percorrê-lo sistematicamente estava certo de descobrir que a aparente desordem de meu imaginário escondia um plano, um mapa, como nas histórias de piratas.”
O CD-Rom seria a visita guiada à imemória, ou desmemória, de Marker que o visitante também poderia percorrer de forma aleatória.
A madeleine de Marker, ele escreve, é a heroína de Vertigo, mesmo sabendo que “pode estar forçando a mão ao atribuir a escolha desse nome à intenção de um roteirista no início de uma história que é essencialmente a de um homem em busca de coisas perdidas.”
Marker pergunta se “é possível que hoje [ao contrário do que a fotografia representava para Proust e sua geração], paradoxalmente, seja a vulgarização, a democratização da imagem que a permita alcançar o status menos ambicioso de uma sensação portadora da memória, uma variante visível do cheiro e do gosto. Sentimos mais emoção (de qualquer modo, uma emoção diferente) diante de uma fotografia amadora ligada à nossa própria história de vida do que diante do trabalho de um Grande Fotógrafo, por que o domínio dele faz parte da arte, e o propósito do objeto-souvenir permanece no nível mais baixo da história pessoal.”
Marker reivindica “para a imagem a humildade e o poder de uma madeleine.”
No CD-Rom, dividido em “zonas”, o “ponto” Madeleine está “localizado na interseção de Proust e Hitchcock”, escreve Marker. “Cada um deles por sua vez cruza com outras zonas que são tantas ilhas e continentes, dos quais minha memória contém as descrições, e meus arquivos, as ilustrações. Meu maior desejo é que haja códigos familiares suficientes no CD-Rom (o retrato de viagem, o álbum de família, o animal totêmico) para que o leitor-visitante possa imperceptivelmente vir a substituir minhas imagens pelas dele, e que minha Imemória sirva de trampolim para a própria peregrinação dele no Tempo Recuperado.”
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Do artigo de Philippe Dubois, retenho duas ou três coisas relacionadas a Henri Michaux.
O título , referência ao “grande jetée” do aeroporto de Orly, comumente chamado de “o terraço”, não é, segundo Dubois, destituído de sentido.
“Há na ideia de jetée”, ele escreve, “numerosos efeitos de sentido específicos (um sentido marítimo de avançar maré a dentro, um sentido dinâmico ligado ao movimento, um sentido etimológico relacionando o termo ao campo léxico do jet – projeto, projeção, trajeto, rejeito) etc.
Além disso, podemos ver aí uma referência possível ao curto texto de Henri Michaux, cujo título é precisamente , publicado na coletânea La nuit remue.”
Em , de Michaux, o narrador doente sonha construir, aproveitando a névoa, uma jetée até o mar. Um velho, sentado como ele com as pernas penduradas, retira da água tudo que jogou fora durante anos. Destituído de memória, o narrador não lembra o que o velho tirou, mas algo que ele esperava encontrar estava perdido e atirou tudo de volta até que um último resto o arrastou para dentro do mar. E o narrador, “tremendo de febre”, não sabe como conseguiu voltar para a cama.
Para Dubois, em , de Henri Michaux, há uma “situação enunciadora e temática praticamente inversa à de Marker”: o narrador doente encontra um velho, não uma criança. Não é o rosto de uma mulher que surge e desperta a “fixação da memória”, mas ao contrário a retirada do mar de objetos sem vida, levando à perda da memória.
Em Michaux, escreve Dubois, “um velho que desaparece, arrastado pelo vazio de uma memória morta. Em Marker, é um menino que assiste sem saber à sua própria morte por conta de uma fixação viva demais da sua memória. E é um adulto que tenta (mas em vão) sobreviver retornando a esse ponto de fixação da sua memória viva.
Mesmo se o abismo engole tanto um, como outro, o olhar apagado da memória de um não deixa de se opor à incandescência da lembrança do outro, e à morte das imagens, Marker opõe a força da consciência.”
Sonho, jetée, memória, algo perdido, delírio – temas retomados em , de Chris Marker.
A volta a esses textos suscita uma aproximação imprevista. Se em , ao morrer, o herói revive um momento do seu passado, não haveria um elo com Terra em transe, cujo roteiro começou a ser escrito pouco depois por Glauber Rocha, e foi filmado em 1966? Sendo um combatente da megalomania, Chris Marker se opõe a Glauber Rocha. E em Terra em transe não se trata de reviver “um momento”, mas a vida inteira – do personagem e de um período histórico. Ainda assim, não haveria uma interseção entre os dois filmes? Os personagens principais dos dois filmes fazem uma viagem no tempo. O de La jetée, morre ao reviver um momento do passado. O de Terra em transe revive sua vida nos momentos que antecedem sua morte.
Chris Marker seria, dessa maneira, outro adepto da “filosofia do instante”, assim definida em A maçã do escuro, conforme a análise do romance de Clarice Lispector feita por Gilda de Mello e Souza (“Vertiginoso relance” em Exercícios de leitura):
“São momentos que não se narram, acontecem entre trens que passam ou no ar que desperta nosso rosto e nos dá o nosso final tamanho, e então por um instante somos a quarta dimensão do que existe, são momentos que não contam. Mas quem sabe se é essa ânsia de peixe de boca aberta que o afogado tem antes de morrer, e então se diz que antes de mergulhar para sempre um homem vê passar a seus olhos a vida inteira; se em um instante se nasce, e se morre em um instante, um instante é bastante para a vida inteira […].”
Chris, Glauber e Clarice. Ilhas distantes que, ainda assim, talvez façam parte de um mesmo arquipélago.
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