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questões cinematográficas

Crônica do ansioso

Cineastas são criaturas ansiosas. Alguns superaram a mais recente rodada de ansiedade ao serem anunciados, na semana passada, os filmes selecionados para o É Tudo Verdade – 18º Festival Internacional de Documentários, prestes a começar em São Paulo e no Rio.

Para a maioria dos inscritos, porém, a ansiedade foi substituída pela decepção. Decepção momentânea por não terem sido escolhidos, mas que logo dará lugar a nova etapa de ansiedade. Quem faz cinema não escapa. Haverá outros festivais, lançamento no circuito comercial, na televisão, em DVD. Novos projetos a realizar. E a insidiosa ansiedade estará sempre rondando.

| 18 mar 2013_15h27
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Anxiety, de Edvard Munch

Cineastas são criaturas ansiosas. Alguns superaram a mais recente rodada de ansiedade ao serem anunciados, na semana passada, os filmes selecionados para o É Tudo Verdade – 18º Festival Internacional de Documentários, prestes a começar em São Paulo e no Rio.

Para a maioria dos inscritos, porém, a ansiedade foi substituída pela decepção. Decepção momentânea por não terem sido escolhidos, mas que logo dará lugar a nova etapa de ansiedade. Quem faz cinema não escapa. Haverá outros festivais, lançamento no circuito comercial, na televisão, em DVD. Novos projetos a realizar. E a insidiosa ansiedade estará sempre rondando.

Quem ficou de fora com certeza está se perguntando por quê. E a única resposta possível, por insatisfatória que pareça, é que o gargalo está ficando cada vez mais estreito, e o júri de seleção tem a ingrata tarefa de escolher, a seu critério, um número limitado de filmes que possam ser exibidos nos dez dias do Festival.

Engana-se, porém, quem imaginar que os selecionados se livraram da ansiedade. Pelo contrário. Especialmente os que participarão das duas mostras competitivas, concorrendo ao cobiçado prêmio de R$ 110 mil, no caso dos longa-metragens, e R$ 10 mil no de curtas, já estão sofrendo de ansiedade redobrada, aflitos com a reação do júri de premiação, a recepção dos críticos e a preferência do público.

A ansiedade vai num crescendo e atingirá o paroxismo no início de abril, envolvendo preocupações com a programação – o dia e horário em que o filme será exibido será bom? –, a qualidade da projeção e do som, o que dizer ao apresentar o filme, como responder às perguntas do debate etc. Difícil imaginar que alguém seja capaz de se portar com serenidade nesse estado de angústia.

Estranha profissão, essa, à qual se dedicam cada vez mais mulheres e homens. Depois do árduo processo de feitura, que do projeto à cópia pode durar pelo menos dois anos, ao longo dos quais não faltam motivos para esgotamento físico, crise nervosa e graus variáveis de ansiedade, tudo recomeça quando o filme fica pronto. E, na imensa maioria dos casos, nada justifica tamanho empenho.

As exigências feitas a um cineasta serão maiores do que as enfrentadas por profissionais de outras atividades? Não é provável. O que não chega a ser um consolo para quem faz cinema.

E a ansiedade será característica exclusiva de quem faz cinema no Brasil? Também não parece ser o caso. Conversando uma noite com um pequeno grupo de visitas, em 1969, na suntuosa casa que herdou do seu pai, na via Salaria, em Roma, Luchino Visconti parecia ansioso. Os deuses malditos (La Caduta Degli Dei) tinha sido lançado na Itália e a estreia do filme estava marcada em um cinema de Nova Iorque. Sentado em uma poltrona Berger, comendo bombons que não ofereceu para ninguém, Visconti queria saber se a época era boa para lançar o filme nos Estados Unidos, como era a sala onde seria exibido, se era bem localizada etc. – seu próximo projeto, Em busca do tempo perdido, que não chegou a realizar, dependia do resultado comercial desse lançamento.

Saul Bass disse certa vez que dirigir um filme é como fazer um desenho a bico de pena correndo em frente a uma locomotiva indo no encalço do diretor. É uma boa imagem.

Para fazer um filme é preciso ter algo a dizer, exercer a função como atividade vital – sem a qual não é possível viver, pesquisar permanentemente, deixar-se supreender, saber o que é essencial, não ser teimoso, acordar cedo, ser pontual, respeitar o orçamento, ser tirânico, ter paciência e determinação férreas para obter o resultado desejado, conseguir que os colaboradores deem o que tiverem de melhor, ter nervos de aço, disciplina e dedicação exclusiva, estar sempre atento para a razão pela qual está fazendo o filme, não ficar satisfeito com a primeira ideia ou solução e, finalmente, resignar-se com o resultado.

Elia Kazan, John Grierson, Jean-Luc Godard, Woody Allen, entre outros, indicam esses requisitos como fundamentais.

Federico Fellini achava que não tinha vocação para ser diretor por não gostar de exercer “violência tirânica”, ser “coerente”, “pedante”, não ter “capacidade de trabalho”, “resistência física”, e “autoridade”.

Diante disso, talvez não haja mesmo como evitar a ansiedade. Ela surge, em dezenas de referências, como indispensável à criação – é serva da criatividade, segundo T.S.Eliot. Sem ela eu teria sido um navio sem leme, disse Edvard Munch. Ela é unsuportável. Só espero que dure para sempre, declarou Oscar Wilde.

Mas a melhor lição parece mesmo vir de Robert Browning: “Como cachorros numa roda, pássaros numa gaiola, esquilos numa corrente, homens ambiciosos ainda sobem e sobem, com muito esforço, e ansiedade incessante, mas nunca alcançam o ápice".

Incômoda para quem sente, desagradável para quem se relaciona com quem sofre, a ansiedade parece ser inevitável. Aos participantes do É Tudo Verdade, só o que se pode sugerir é que tentem contê-la em limite razoável.

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