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    Folha de S.Paulo

questões cinematográficas

Poder perpétuo em questão

Às 10:51 de sexta-feira (31/10/2014), a cantora Cendrine Nama postou no Facebook: “Estamos desde hoje de manhã diante do Estado Maior do Exército para manter a pressão e exigir que Blaise Compaoré renuncie ou que o Exército tome medidas... Foi feito o comunicado... Blaise Compaoré não é mais presidente de Burkina Faso e estamos esperando o nome do novo presidente… Nossas lutas não foram em vão… Conseguimos… Blaise renunciou… Pelo suor, o sangue …nossa determinação nos conduziu…”.

| 03 nov 2014_12h22
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Às 10:51 de sexta-feira (31/10/2014), a cantora Cendrine Nama postou no Facebook: “Estamos desde hoje de manhã diante do Estado Maior do Exército para manter a pressão e exigir que Blaise Compaoré renuncie ou que o Exército tome medidas… Foi feito o comunicado… Blaise Compaoré não é mais presidente de Burkina Faso e estamos esperando o nome do novo presidente… Nossas lutas não foram em vão… Conseguimos… Blaise renunciou… Pelo suor, o sangue …nossa determinação nos conduziu…”.

Na véspera, em Ouagadougou, capital de Burkina Faso (Terra do Povo Honrado), manifestantes depredaram, saquearam e incendiaram o prédio da Assembléia Nacional para impedir a mudança da Constituição que permitiria ao presidente Blaise Compaoré, no poder há 27 anos, candidatar-se a um novo mandato em 2015. Ele foi um aliado chave dos Estados Unidos e da França na luta contra a Al-Qaeda.

Gravações postadas na internet mostram o prédio da Assembléia Nacional depois do ataque, com a fachada destruída e fumaça negra saindo pelas janelas quebradas da fachada. Alguns manifestantes gravam a cena com seus celulares. Em uma das gravações se vê o interior do prédio revirado e um homem gritando “o povo tomou o poder”.

Além da Assembléia Nacional, os manifestantes ocuparam também a sede da televisão estatal. A foto da celebração no estúdio da emissora, publicada na primeira página da de sexta-feira (31/10/2014) e no caderno Aliás do Estado de S.Paulo de domingo (2/11/2014), foi feita pelo repórter nova yorkino Joe Penney, da Reuters. No Twitter, Penney deu também seu testemunho: “Vi militares atirando nos manifestantes na frente da casa de François Compaoré [irmão do presidente] e em frente à Presidência”; “Tenho que dizer que os manifestantes enfrentando balas para ocupar o Parlamento foi a coisa mais corajosa que já vi.”; “‘Se Blaise voltar estamos mortos’ diz um manifestante perto de mim.”

No estúdio da televisão estatal, dez ocupantes celebram diante da câmera de Penney, a maioria com um braço erguido. Alguns fazem sinais com os dedos, dois têm copos na mão, um deles  segura um tijolo, outros dois levantam bastões (de madeira? de ferro?). O que está sem camisa, na extrema direita com expressão séria, carrega um equipamento que parece ligado por um fio a outro que ele segura contra o corpo com o braço esquerdo. Parecem festejar, mas não há sinal, nem informações, de que tenham passado a fazer transmissões próprias através da televisão estatal. À primeira vista, impedir o noticiário e a propaganda oficiais pareciam ser o objetivo deles ao ocuparem o prédio.

O primeiro ocupante à esquerda usa uma camiseta preta estampada com o nome do grupo Public Enemy, do rapper americano Chuck D.. Ele saudou os manifestantes através do Twitter: “Meus heróis tomaram uma estação do governo em B.F. Isso precisa acontecer na Urban Radio nos USA…”.

A foto de Joe Penney evoca a conhecida situação vivida na Romênia, em dezembro de 1989, quando o chefe de Estado e ditador Nicolae Ceaucescu, depois de 22 anos no poder, foi deposto e fuzilado com sua mulher, Elena. Como pode ser visto no documentário Videogramas de uma revolução (1992), de Andrei Ujica e Harun Farocki, além de invadir o prédio do Comitê Central do Partido Comunista, a multidão não só ocupou a sede da televisão estatal, mas assumiu as transmissões. Desde então ficou claro que, além da sede do governo, ocupar a televisão é estratégico para a tomada do poder.

Em Burkina Faso, após a renúncia de Blaise Compaoré, o general Honoré Nabéré Traoré, chefe do Estado Maior das Forças Armadas, anunciou que assumiria a responsabilidade de chefe de Estado “para salvar a vida da nação”. A disputa pelo poder entre militares já estaria em curso e, desmentindo as proclamações dos manifestantes, o povo permanecia à distância.

Na madrugada de sábado (1/11/2014), outro militar, o tenente coronel Isaac Zida, sub-chefe do regimento de segurança presidencial, anunciou pelo rádio e televisão que estava assumindo as responsabilidades de chefe de Estado “para assegurar a continuidade do Estado”. Uma concentração de massa foi convocada para domingo, na capital, o que poderia levar a novas demonstrações, agora contra os novos auto-proclamados donos do poder.

De fato, no domingo (2/11/2014) uma manifestação de protesto exigiu que os militares se afastem do poder e a Constituição seja respeitada.  Diante da televisão estatal, tropas de segurança do Exército abriram fogo, matando um manifestante. Outro carregava uma placa onde estava escrito “Zida é Judas Escariote”.

A televisão saiu do ar durante várias horas.

Burkina Faso, colônia francesa até 1960, com a independência passou a se chamar República do Alto Volta até 1984. É um dos países mais pobres do mundo (tem o terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano – IDH), com mais de 80% da população vivendo da economia de subsistência, sendo 22% alfabetizados. Pequeno e de grande densidade populacional, tem cerca de 275 mil quilômetros quadrados e 17 milhões de habitantes (aproximadamente o mesmo tamanho do Estado de Tocantins com população equivalente à do Rio de Janeiro).

No sábado (1/11/2014), Cendrine Nama postou de novo: “Dia de limpeza para um Burkina que volta à vida normal… Apesar do cansaço físico causado por essas marchas de protesto e por nossa luta implacável de 30 de outubro, muitos saímos hoje para sanear nossa cidade, nosso espaço… Homens-mulheres e mesmo crianças puseram todos as mãos na massa por que a reconstrução diz respeito a todos… Essa Burkina é minha pátria; esses burkineses são meus irmãos… Orgulhosa, orgulhosa, orgulhosa de pertencer a um povo tão grandioso…”.

O rumo dos acontecimentos ameaça frustrar essas grandiosas expectativas.

* As informações sobre a situação em Burkina Faso foram colhidas no site da Reuters e nas edições digitais do The New York Times, onde a foto de Joe Penney foi publicada originalmente.

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