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    O presidente Juan Manuel Santos numa urna de votação do plebiscito FOTO: JUAN PABLO BELLO (SIG)

questões da política

O não colombiano

Consuelo Dieguez | 04 out 2016_16h58
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Por volta das cinco e meia da tarde de domingo, 2 de outubro, um avião vindo de Medellín pousou em Bogotá, capital da Colômbia. Mal a aeronave tocou o solo, os telefones celulares dos passageiros começaram a disparar. Traziam informações sobre o resultado do plebiscito que decidira se os colombianos aceitariam ou não o acordo de paz firmado no dia 26 de setembro entre o governo e as Farc, as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, movimento guerrilheiro que resiste no país há mais de cinquenta anos. A votação começara às oito da manhã daquele dia e se encerrara às quatro da tarde. Quando foi divulgada a informação de que o não ganhara com 50,24% dos votos, uma margem ínfima em relação ao sim, muitos passageiros comemoram, enquanto outros tantos se lamentaram. “Esse acordo não era um processo de paz, era uma rendição incondicional do governo a um movimento que tem hoje não mais que oito mil guerrilheiros”, dizia em voz alta, ao telefone, um médico que torcia pela vitória do não. Nas poltronas atrás dele, três jovens tatuados sacudiam as cabeças com ar de desconsolo. Os três torciam pelo sim. Um deles repetia alto: “Isso é sinal de ignorância do povo. Quanto tempo mais vamos conviver com essa guerrilha? Temos que acabar com isso. Queremos paz.” Aquele voo era um microcosmo do que está acontecendo no país. A Colômbia está dividida entre os que querem o acordo e os que o rechaçam.

A vitória do não foi uma surpresa. Como o Brexit, o plebiscito que decidiu a saída do Reino Unido da União Europeia, grande parte dos colombianos foi dormir no dia 1º com a certeza de que, no domingo à noite, estariam nas ruas comemorando a paz com a guerrilha. Parte dessa certeza tinha a ver com a vigorosa campanha pelo sim desencadeada pelo governo do presidente Juan Manuel Santos nas últimas semanas. Ele mobilizou ministros, prefeitos e governadores aliados para que deflagrassem um enorme movimento pelo sim em suas áreas de influência.

O que faltou ao acordo, que levou quatro anos sendo negociado com as Farc e o governo colombiano, em Havana, e que foi assinado – prematuramente – numa festa oficial em Cartagena, na qual os líderes das duas partes vestiam branco, talvez tenha sido uma discussão mais profunda com o maior interessado na sua concretização: a população colombiana. Por isso, às vésperas da votação, embora as pesquisas apontassem para a vitória do sim, as dúvidas ainda eram muito maiores que as certezas.

Muitos dos que votaram pelo não argumentaram que não eram contra a paz, mas sim contra o modelo de acordo firmado pelo governo com as Farc. A maior crítica de quem votou pelo não era de que o acordo concedia vantagens demais aos guerrilheiros e de menos a suas vítimas.

Um alentado levantamento feito pela jornalista Juanita León, do Silla Vacía, um dos mais respeitados meios digitais do país, ainda em 2015, quando a negociação estava em curso, mostrava o que as partes ganhavam e o que concediam. As Farc ganhavam muito. Principalmente a garantia de que seus integrantes não ficariam um dia sequer na prisão pelos crimes cometidos. Ganharam também o reconhecimento de que negociavam em igualdade de condições com o governo, uma vez que o presidente Juan Manuel Santos se sentara ao lado do líder guerrilheiro Rodrigo Lodoño Echeveri, o Timochenko, e estabelecera que a justiça pactuada se aplicaria de forma igual aos guerrilheiros, aos militares e a integrantes do governo que tivessem participado direta ou indiretamente do conflito. Com isso, as Farc deixavam claro que o que estava sendo negociado não era uma rendição e sim um armistício.

Para que os guerrilheiros entregassem as armas, ficou estabelecido ainda que o Estado pagaria um valor correspondente a 90% do salário mínimo colombiano –  durante dois anos, para que pudessem se sustentar até conseguirem se reintegrar à sociedade e ao mercado de trabalho. Isso porque a maior parte deles passou a vida guerreando e não desenvolveu nenhuma habilidade profissional. “Eles têm doutorado em fuzil”, disse-me um raivoso defensor do não. Muitos dos integrantes da guerrilha foram sequestrados ainda crianças pelas forças para que fizessem parte do movimento. O Estado também se comprometeu a investir 70 milhões de dólares para preparar os líderes guerrilheiros para transformarem as Farc em partido e se integrarem à política institucional.

Para parte da população, contudo, esse acerto era difícil de engolir. Nas comunidades mais pobres, o que mais se ouvia nos últimos dias antes do plebiscito era que se tratava de uma injustiça o fato de guerrilheiros que haviam cometido crimes abomináveis, como sequestros, assassinatos e expulsão de milhões de camponeses de suas terras, agora receberem um salário maior do que o percebido da população mais carente. Já os colombianos mais abastados não se conformavam de ter que arcar com aumento de impostos para sustentar um acordo que garantiria às Farc se transformar num partido que fará oposição à elite colombiana.

Um segundo ponto difícil de ser digerido por quem votou contra o acordo foi a forma como se negociou a questão da verdade, justiça e reparação das vítimas. A inclusão na discussão da necessidade do reconhecimento dos crimes foi um dos maiores desafios das equipes encarregadas de fazer a mediação do acordo de paz. A cláusula só foi incluída quando ficou claro para o governo que a população não aceitaria a paz sem algum tipo de desagravo às vítimas. Os líderes da guerrilha resistiram o que puderam a essa exigência. Argumentavam que o movimento fora uma reação a um Estado e a uma elite que excluía do processo político os mais pobres e aprofundava a imensa desigualdade de renda do país. Consideravam-se, portanto, vítimas de um regime “assassino, opressor e que os excluía”, e rejeitavam a pecha de agressores, ou ‘victimarios’. O mesmo ocorreu com os que participaram do combate à guerrilha – tanto os militares, paramilitares e integrantes de vários governos. Estes também negam seus crimes, argumentando que lutavam por uma sociedade democrática e que foram eles também vítimas da guerrilha.

Havia, por fim, uma questão constitucional. Mesmo num acordo de paz, em que as duas partes reconhecem seus erros, há um limite para o perdão. Os tratados de paz internacionais rezam que os crimes atrozes não podem ficar impunes. A Colômbia é signatária desses acordos.

Durante um ano, discutiu-se como tratar a reparação das vítimas. A saída foi a determinação de se criar uma Comissão da Verdade ou um Tribunal de Paz. Como explicou o site noticioso Silla Vacía, as Farc, a princípio, consideraram esta decisão uma rendição às leis do inimigo, o que seria inaceitável num acordo assentado no entendimento de que não há vencedores e vencidos. Somente este ponto da discussão ocupou 63 páginas do documento que registra o acordo. Ao final, resultou em pouca reparação, pouca verdade e quase nenhuma justiça, como observou o Silla Vacía, dado que os envolvidos na guerrilha não cumprirão pena de prisão.

Para as vítimas e seus defensores, o acordo não deixou claro como se dará o reparo pelos confiscos das Farc. Estima-se que mais de 5 milhões de pessoas tenham sido expulsas de suas terras pelos guerrilheiros, o que significa perda de bens e propriedades. O acordo estabeleceu que as Farc terão que declarar oficialmente as propriedades confiscadas e devolvê-las a seus donos originais. Não existe certeza de que isso irá acontecer. Muitos destes confiscos aconteceram há tantas décadas que sequer as Farc ou os antigos donos conseguem levantar o que foi tomado.

 

Ernesto Giraldo trabalha como motorista particular. Ele ia votar pelo sim depois de fazer um enorme esforço psicológico para perdoar as Farc. Contou-me que, há vinte cinco anos, guerrilheiros mataram seu pai e expulsaram sua família da própria chácara, no estado de Antioquia. A mãe se mudou para Medellín com os filhos, sem poder levar nada do que possuíam. “Carreguei essa ferida por mais de duas décadas”, disse. Quando começou a negociação do processo de paz, ele procurou ajuda na Igreja Católica. “Eu tinha que perdoar. Não podia mais viver com aquela dor. Quero o acordo para que meus filhos e meus netos não sejam mais vítimas dessa violência. Quero que eles vivam num país pacificado”.

Outros milhões de colombianos sofrem ainda hoje do mesmo trauma. Para os camponeses das regiões ocupadas pela guerrilha, contou Giraldo, o drama era e continua sendo o mesmo. “Se não colaborávamos com a guerrilha, dando comida ou nossas terras, eles nos matavam”, disse. “Ao fazermos isso, sofríamos represálias do Exército ou dos paramilitares que nos acusavam de ter colaborado com guerrilha.”

Para pôr fim à discussão, o acordo assinado em Havana estabeleceu que todos os envolvidos no conflito terão que confessar seus crimes e pedir perdão por eles. Os que não reconhecerem seus delitos de forma voluntária serão condenados a uma pena que vai de cinco a vinte anos de prisão. Mas uma pesquisa feita no país demonstrou que 70% da população exigia que eles cumprissem pena de prisão, como aconteceu com os paramilitares, independente de confessarem ou não seus delitos. Patrícia Artunduaga, uma mulher alta e loura que teve o marido sequestrado e morto pelas Farc, está entre eles. Ela não pensa que os guerrilheiros estejam realmente arrependidos de seus crimes e quer justiça. Seu atual marido, Edgar Artunduaga, diretor do El Noticiero Todelar, uma emissora de rádio pela internet, que votaria pelo sim, provoca. “Ela quer que eles peçam perdão de joelhos.” Ela reage. “Não. Quero justiça. Quero que paguem com a prisão.”

A questão é como garantir justiça num processo de paz. Muitos analistas já chegaram à terrível conclusão de que não há paz com justiça e com justiça não há paz. Em grande parte desses processos de conciliação, as sociedades envolvidas nos conflitos precisaram passar por cima de suas feridas para poder se reconstruir. No caso da Colômbia, embora muitos dos que votaram pelo não quisessem apenas um acordo que fizesse menos concessões aos guerrilheiros, há outros milhões que defendem que o conflito se encerre unicamente pelas armas. Muitos acreditam que o Exército bem armado tem todas as condições de combater e eliminar a guerrilha. “Mas a que custo e por mais quanto tempo?”, questiona o jornalista Óscar Martínez, do meio digital El Faro, de El Salvador, autor do livro Los migrantes que no importan. Martínez era criança quando, em 1992, o governo de El Salvador e o movimento guerrilheiro Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional, a FMLN, fizeram um acordo de paz encerrando uma guerra civil que durou doze anos, deixou 80 mil mortos, 30 mil desaparecidos, 1 milhão de desabrigados e 1 milhão de exilados. “O acordo teve que ser feito porque as partes entenderam que sem isso a guerra não teria fim”, explicou. “Chegou-se a um total estado de exaustão de ambos os lados.” O acordo de El Salvador também concedeu remunerações aos guerrilheiros para que pudessem se reintegrar à sociedade, além de criar um programa construção de casas para os combatentes dos dois lados.

Martínez não enxerga outra saída senão um acordo de paz. Apesar disso, ele vê uma grande diferença entre a guerrilha de El Salvador, que era reconhecida internacionalmente como um movimento político para a derrubada de uma ditadura, e as Farc. “Para a maioria dos colombianos, as Farc não passam de um bando de criminosos travestidos de movimento político”, disse. Contou que, em 1992, quando os guerrilheiros da FMLN, já com as armas depostas, entraram no centro de São Salvador, a capital do país, e se postaram em frente à catedral onde em 1980 o arcebispo Óscar Romero, defensor dos direitos humanos, fora assassinado pelas forças governamentais, eles foram saudados com festa pela população. Havia o reconhecimento de que lutavam por um país mais justo.

Já na Colômbia, em Cartagena, o acordo foi assinado sem alegria ou participação popular. E com soberba, uma vez que a cerimônia se adiantava ao resultado do plebiscito, como se as favas já estivessem contadas. Analistas diriam mais tarde que tamanha presunção levou muita gente a sair de casa para votar pelo não.  Como me contaram algumas pessoas que participaram da cerimônia, ocorre que a população queria paz, mas não saudava as Farc como um movimento legítimo ou popular.

Para boa parte dos colombianos, as Farc não são confiáveis. O acordo talvez fosse bem mais palatável caso os guerrilheiros tivessem entregado as armas antes do plebiscito. O acerto foi de que elas seriam entregues após o referendo legitimar o que havia sido acordado em Havana. O resultado é que a desconfiança permanece, o que dificulta uma paz verdadeira.

O questionamento de parte da população e de muitos políticos diz respeito principalmente ao que acontecerá com os guerrilheiros quando os líderes das Farc deixarem o movimento para entrar na vida política institucional. O maior temor dos combatentes é de que, desarmados, sejam mortos pelo Exército caso permaneçam em suas bases no campo. Já o da sociedade é de que, sem comando nem sentido de movimento, acabem fugindo para as cidades e engrossando as organizações criminais, principalmente as do tráfico de drogas que, apesar de enfraquecidas com a morte de seu maior líder, Pablo Escobar, não desapareceram. Por isso é tão importante no acordo a criação de um fundo estatal para a remuneração de guerrilheiros desocupados e fora do controle de seus líderes.

 

Federico Gutiérrez, prefeito de Medellín, uma cidade de cerca de 4 milhões de habitantes, está especialmente atento a essa questão. Até 1990, Medellín era a cidade mais violenta do mundo, com 382 mortes para cada 100 mil habitantes. Hoje, em razão de políticas de combate ao crime organizado aliadas a ações sociais, como projetos de urbanização das inúmeras favelas da cidade – com criação de parques, escolas, áreas esportivas, bibliotecas, centro culturais, instalação de redes de água e esgoto e internet grátis –, a taxa de mortes despencou para 25 para cada 100 mil habitantes. “Ainda é um índice bastante alto”, disse Gutiérrez durante uma conversa com jornalistas numa sala comunitária em um dos bairros mais violentos da cidade. “Temos que ter muito cuidado para evitar que os ex-combatentes das Farc se convertam em criminosos.” Por essa razão, Gutiérrez reivindica que a Prefeitura de Medellín tenha participação no processo de reintegração dos guerrilheiros.

Gutiérrez é um homem jovem, magro, pequeno e enérgico. Elegeu-se prefeito sem apoio de nenhum partido político. Na véspera do plebiscito, informou aos jornalistas que votaria pelo sim. Mas com ressalvas. Embora o país queira a paz, afirmou, ela não pode ser estabelecida sem critérios. Gutiérrez é favorável que as Farc indenizem as vítimas e declarem ao Estado todos os ganhos obtidos com extorsão, sequestro e tráfico de drogas. “As Farc fizeram um tremendo mal a esse país. É preciso que de alguma forma reparem as vítimas por seus crimes.” Embora, àquela altura, ainda acreditasse na vitória do sim, admitiu que não tinha esperanças de que, referendado o acordo pela sociedade, a paz se daria de imediato. “O país está polarizado e esse é um processo muito lento.”

Esse era também o sentimento da população nas cabines de votação. Na Universidade Eafit, em um bairro abastado de Medellín, pessoas votavam com desconfiança. O engenheiro Juan Guillermo Velez apostara no sim. Isso não significava que acreditasse na paz. “Esse não é um acordo de paz, nem de justiça”, argumentou, enquanto se alongava para seguir para uma corrida matinal. “É um acordo para tirar de ação 8 mil combatentes, e só”, disse. “Temos outros vários bandos criminosos que continuarão em ação como os traficantes e os paramilitares.” A seu lado, sua mulher, Clara Ortua, também engenheira, votara pelo não. E explicou a razão. “É impossível cumprir esse acordo. O Estado não tem dinheiro para tirar os guerrilheiros da criminalidade. O que vai fazer é aumentar os impostos para que a sociedade pague pelo fim de um conflito que, na verdade, não irá chegar ao fim.”

A Plaza Mayor de Medellín abriga um dos maiores centros de votação da cidade. Desde as oito da manhã, o movimento era intenso. Gloria Betancur, uma mulher de meia-idade com traços indígenas, me disse que votara pelo sim. Vítima da guerrilha, ela quer a paz de qualquer maneira. Seu sobrinho de 3 anos foi assassinado há doze anos com tiros de fuzil por guerrilheiros que tentavam sequestrar seu irmão. “Somos uma família de renda média. Nem recursos tínhamos para pagar o sequestro”, me contou. O crime aconteceu quando o irmão chegava em casa com a família. Os sequestradores estavam à sua espera e se assustaram com a chegada do carro. Atiraram e atingiram a criança. “Eu tenho que perdoar e seguir em frente. Não posso mais continuar com esse peso no coração”, me disse. “Votar pelo sim foi uma forma de tentar me apaziguar.”

Victoria Trujillo, uma advogada de 38 anos, não teve vítimas na família, caso raro na Colômbia. Votou pelo não. “Esse não é um acordo justo para as vítimas”, opinou. “Nos empurraram esse acordo goela abaixo sem discuti-lo a fundo com a população. Muita gente que está votando nem sabe pelo que está votando. Penso que todos queremos a paz, mas não a qualquer preço. Queremos justiça e reparação das vítimas.”

O mapa do plebiscito revela um dado curioso. Em boa parte do território ocupado pelas Farc predominou o sim, como nos estados Vichada, Guaviare e Putumayo. Alan Jara, diretor da Unidade das Vítimas, decidiu votar pelo sim. Ele mesmo sofreu nas mãos das Farc. Estava entre os 25 políticos sequestrados pela guerrilha entre 2000 e 2002. Desses, catorze foram mortos por fuzilamento. Ele ficou em poder da guerrilha por onze anos. Essas mortes foram resultado de um dos tantos equívocos cometidos pelos governos colombianos no combate à guerrilha. Nesse caso, os sequestros ocorreram quando o então presidente Andrés Pastrana decidiu, na tentativa de fazer um acordo com as Farc, ceder um território de 43 mil quilômetros quadrados na Colômbia, que passou a ser chamado zona de despeje ou de distensión, que significava uma zona desmilitarizada. Foi o momento em que as Farc se fortaleceram e passaram a praticar crimes de extorsão e sequestro. A situação somente se reverteu com o governo de Álvaro Uribe, que recuperou definitivamente o território, lançando o Exército contra as Farc. Apesar de todos os gastos com armas e munições, a guerrilha sobreviveu, embora enfraquecida. Estima-se que 220 mil pessoas tenham morrido até agora nesse conflito.

O ministro da Defesa de Uribe era Juan Manuel Santos, que se lançou candidato à sucessão presidencial com uma plataforma de continuado combate às Farc. Mudou o discurso ao chegar ao poder, passando a propor o diálogo na tentativa de pôr fim ao confronto. Com isso, ganhou popularidade enquanto Uribe perdia espaço. Era o início da desavença entre criatura e criador, cada qual tentando puxar para si as glórias de ser o responsável pelo fim do conflito armado no país. A briga dos dois políticos mais importantes da Colômbia é apontada por muitos analistas como uma das principais razões para o resultado do plebiscito de 2 de outubro.

Durante o processo de negociação de paz, em 2014, o candidato de Uribe à Presidência começou a subir nas pesquisas ameaçando a reeleição de Santos. Essa dinâmica obrigou Santos a correr para inserir no acordo um princípio de respeito às vitimas das Farc, já que, do contrário, a população rejeitaria in limine qualquer acerto. Santos ganhou as eleições com uma aposta extrema no processo de paz.

Uribe, da sua base em Medellín, passou a atacar o acordo de paz financiado por Santos. Seus ataques influenciaram muito o voto pelo não. Através de uma conta no Twitter com mais de 4,5 milhões de visitantes, Uribe passou a classificar o processo de paz como um grave risco de retrocesso para a democracia e a segurança, acusando Santos de se aliar ao “castro-chavismo”.  Seu discurso causou tanto efeito que, hoje, parte dos colombianos acha que, se a guerrilha se transformar num partido, ganhará as eleições e fará da Colômbia uma Venezuela.

Para Jaime Abello, diretor geral da Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano, o que está por trás de toda essa polarização é uma luta pelo poder das elites colombianas. Ainda que tema pelo retrocesso nas negociações, Abello avalia que o processo não se perdeu. As Farc, após o desfecho do plebiscito, já se mostraram dispostas a voltar à mesa de negociação. Uribe, que também quer ser protagonista do processo, tratou de avisar que deseja a paz, mas defende que se revejam pontos do acordo, como a falta de prisão para os guerrilheiros, desenhadas no modelo de justiça transicional. E se propõe a se colocar na mesa de negociação. Para ele, o que se fez foi um pacto pela impunidade e não um acordo. Santos, por sua vez, aceitou o resultado e se comprometeu a continuar a discussão em busca da paz tão desejada por todo o país.

Na véspera do plebiscito, durante uma conferência em Medellín, Ana María Busquets de Cano, viúva de Guillermo Cano, dono do mais importante jornal do país, El Espectador, assassinado em 1986 a mando do narcotráfico, um aliado frequente das Farc, deu, talvez, a melhor explicação sobre o que pode significar o processo de paz. A alguém da plateia que lhe perguntou se perdoava o assassino de seu marido e se achava que deveria haver perdão para os guerrilheiros, ela, que é defensora do sim, respondeu: “Não se trata de perdão. Se trata de uma forma de conciliação com a humanidade.”

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