IMAGEM: ANDRÉS SANDOVAL
Por quê, Claudinei?
Agruras de um agrônomo urbano
Fabio Victor | Edição 134, Novembro 2017
Famosa no bairro paulistano de Santa Cecília como ponto do cinquentenário bar do Fuad, a esquina da Martim Francisco com a Imaculada Conceição estava bloqueada por cones da prefeitura. No meio desta, um carro da Polícia Militar estacionado mantinha acionado o giroflex, que piscava sem parar, irradiando certa tensão naquela manhã morna de sábado de começo de primavera.
Eram 10h15. Entre acuado e resignado, Claudinei Rocha ouvia os queixumes dos integrantes de uma rodinha de moradores – o grupo que havia acionado a PM. Ao lado dele, dois guardas tomavam notas numa prancheta em que repousava um boletim de ocorrência.
Foi o BO que garantiu sobrevida à tipuana. Originária da Argentina e da Bolívia, de nome científico Tipuana tipu, essa espécie de árvore é muito comum pelas ruas de São Paulo. Produz flores amarelas e, quando adulta, tem uma copa frondosa. Mas aquela tipuana da Imaculada Conceição, conforme o laudo técnico que Rocha segurava, estava condenada à morte. Com 15 metros de altura e 74 centímetros de diâmetro no tronco, apresentava “estado fitossanitário ruim” (ou seja, saúde debilitada), “galhos secos” e “sinais de senescência”. Aos olhos dos moradores, no entanto, não eram motivos suficientes para derrubá-la. Seu estado geral era bom, argumentavam, e andava até florindo. Alguém acrescentou que havia lá no alto um ninho de passarinho – o que impediria o corte. Um operário subiu com o guindaste e disse que não havia ninho nenhum.
Rocha balançava a cabeça, chateado. Engenheiro agrônomo de uma empresa contratada pela prefeitura, ele chefia uma das 52 equipes de poda e remoção responsáveis por cuidar das 650 mil árvores espalhadas pelas calçadas de São Paulo. Em oito anos na função, já se acostumou com reações furiosas de moradores contrários às derrubadas. “Não importa a situação da árvore. De dez pessoas que aparecem na hora da remoção, nove são contra.”
Naquele sábado, ao menos os PMs estavam do lado de Rocha. Enquanto preenchiam o BO, buscavam dissuadir a resistência improvisada. “Os argumentos de vocês são emocionais, vocês não podem agir pela emoção, é preciso ver o lado técnico”, dizia um deles.
Uma moradora replicou: “Não é argumento emocional. Moro nesse prédio e vejo os galhos da árvore do meu apartamento. Acordo todos os dias com os passarinhos cantando.”
Rocha disse baixinho: “Uma vez os moradores nos impediram de podar uma igual a essa. Dias depois, ela caiu em cima de um carro e matou um rapaz de 33 anos…” Referia-se a um acidente, em dezembro de 2014, na esquina das ruas Alagoas e Itacolomi, em Higienópolis. Durante um temporal, a árvore caiu em cima de um táxi, provocando a morte do passageiro – o motorista saiu ileso.
O agrônomo diz que aprendeu a ter serenidade diante do destempero: “Já me chamaram de pau-mandado, de assassino, já ameaçaram me agredir. Não posso agir do mesmo jeito. Sou obrigado a ouvir, a explicar que aquela árvore pode matar alguém, mostro o laudo.”
O episódio da tipuana da Imaculada Conceição – que permanece de pé – virou um capítulo adicional de uma novela iniciada mais de um ano antes, quando, a partir da queixa do condomínio de um edifício, a prefeitura abriu um processo para avaliar a árvore. Um engenheiro agrônomo emitiu um laudo condenando-a, e então a autorização para o corte foi publicada na edição de 22/10/ 2016 do Diário Oficial da Cidade de São Paulo. O prefeito ainda era Fernando Haddad. Como sempre ocorre nesses casos, o despacho no DO determinava também o plantio de uma nova árvore no lugar, de espécie nativa, no prazo de trinta dias.
Claudinei Rocha tem 40 anos e é mineiro de Belo Horizonte. Há dezessete anos, na companhia de um primo, desembarcou em São Paulo para passear. Não saiu mais. Vive com a família em Vargem Grande Paulista, na região metropolitana. Acorda às três da manhã, viaja pela rodovia Raposo Tavares e chega cedo ao trabalho, onde se encontra com sua equipe, formada por outros onze trabalhadores, entre os que cortam galhos e troncos, os que os recolhem e os motoristas.
Ele conta que prefere as podas às remoções. “Gosto de pegar uma árvore que está deixando uma rua escura, cheia de galho seco e broto-ladrão, e fazer aquela poda bem-feita.” Fez uma pausa e enfatizou: “Nossa, é muito bonito.”
A aproximação do verão, que em São Paulo é pródigo em tempestades e ventanias, é o prenúncio de um período de bastante trabalho para Rocha e sua turma. Três semanas depois da barricada na Imaculada Conceição, a equipe foi a campo para remover outra tipuana condenada, na esquina das ruas Goitacás e Conselheiro Brotero, no mesmo bairro.
Soprava um vento frio e caía uma garoa fina e intermitente. A equipe chegou às 8h45, em uma Kombi e dois caminhões. A tipuana, que media 10 metros e cujo tronco tinha 54 centímetros de diâmetro, estava inclinada em direção ao asfalto, ameaçando tombar. Dias antes, um papel fora pregado em seu tronco com o alerta: “Risco iminente de queda.” A essa deficiência mais visível, o laudo acrescentava que o estado fitossanitário era ruim.
Enquanto os operários avançavam com as motosserras pelos galhos, Rocha supervisionava tudo e comentava particularidades do seu ofício. As tipuanas, disse, têm uma característica que leva mais dramaticidade às remoções: “A seiva dela é vermelha, parece sangue.”
E, apontando dois ipês jovens que sua equipe plantara ali perto, falava do orgulho em substituir, com mudas, as árvores cortadas, como determina a lei. “Quando tem espaço, sempre plantamos mais de uma.”
Talvez pelo clima ingrato, talvez pela evidente debilidade anatômica da árvore, o fato é que desta vez não se formou nenhuma brigada antirremoção. Eram 12h20 quando a tipuana tombou, provocando um estrondo seco e grave – buf! O tronco parecia saudável, sem ocos nem sinal de fungos ou doenças – mas outras partes da árvore poderiam estar debilitadas, observou Rocha.
Uma senhora subia a rua a pé com uma sombrinha. Parou para ver a cena. Observava com um olhar fixo e balançava negativamente a cabeça. Parecia que ia chorar. Foi até Rocha e perguntou num tom pausado e trágico: “Por quê? Por quê, hein?” O agrônomo explicou que havia risco de queda e que uma muda seria plantada no local. A senhora abaixou a cabeça e foi-se a passos miúdos.
A equipe terminou de recolher os despojos às 13 horas, quatro horas depois de iniciada a remoção. Antes de ir embora, Rocha comentou: “Para o que a gente está acostumado a enfrentar, hoje até que foi tranquilo, muito tranquilo.”