Mais do que uma simples homenagem a Gabriel Buchmann, o filme de Felippe Barbosa é uma forma de reencontrar o amigo morto e lidar com sua perda FOTO: DIVULGAÇÃO
Gabriel e a montanha – viagem mística
Filme de Fellipe Barbosa supera com galhardia os desafios de resistência física e psicológica e o de integrar homens comuns à reencenação
Não se trata apenas de reencenar a viagem final de um amigo de infância, de quem o diretor Fellipe Barbosa foi colega até os 17 anos no Colégio de São Bento. Em Gabriel e a Montanha, Barbosa e sua equipe refazem eles mesmos, com a maior precisão possível, todos os passos da grande aventura de Gabriel Buchmann, na qual ele cruzou, em 2009, o Quênia, Tanzânia, Zâmbia e o Malaui nos setenta dias finais de sua vida.
Além do extenso percurso em si, passando pelo monte Kilimanjaro, Barbosa também incorpora ao elenco pessoas comuns com as quais Gabriel teve contato durante sua viagem, trabalhando com atores profissionais em apenas dois papeis principais – Gabriel Buchmann (João Pedro Zappa) e Cristina Reis (Caroline Abras) –, além de Manuela Picq numa pequena participação fazendo o papel da montanhista inglesa Nadia, última pessoa a estar com Gabriel vivo.
Apesar do próprio Barbosa reconhecer que “não dá para dissociar” a viagem de Gabriel da que foi feita para realizar a filmagem, a bem-sucedida epopeia da equipe –uma grande aventura em si mesma com forte conotação mística – não é incluída no filme. Uma pena! A exclusão impede o espectador desavisado de conhecer um aspecto fundamental do projeto. Mesmo sendo realizado “em memória de Gabriel Buchmann”, conforme indica a dedicatória nos créditos de abertura, Gabriel e a Montanha é muito mais do que uma simples homenagem. “Fazer o filme foi uma maneira de reencontrar o amigo morto, de estender a mão para ajudar Gabriel e de lidar com sua perda”, declarou Barbosa.
Talvez haja, também, envolvido no projeto, um componente da culpa que acomete o sobrevivente. Por que ele, e não eu, Barbosa terá se perguntado em algum momento? Filmar Gabriel e a Montanha seria uma tentativa de se desculpar por não ter feito a viagem com ele e, talvez, moderado o voluntarismo que o levou à morte?
Embora compreensível, e digno de respeito, o recato de Barbosa, mantendo-se nos bastidores, frustra a possibilidade de acesso a essa outra esfera que passa a integrar a história de Buchmann – o empenho de Barbosa em reviver e registrar a viagem final do amigo, mesmo consciente de estar se expondo, e à sua equipe, a riscos que poderiam ser fatais. Preocupado para que todos voltassem bem para o Brasil, avisou que “o dia do ataque pro pico [do Kilimanjaro], em que a gente vai de 4 700 para 5 895 [metros], de madrugada, num frio de menos quinze a menos vinte [graus]” seria “o dia mais duro da vida deles”.
O desafio a vencer na filmagem não é apenas de resistência física e psicológica, superando altitudes, distâncias e condições de trabalho adversas. É também o de integrar homens comuns à reencenação e de conseguir harmonizar atores não-profissionais com profissionais, assim como eventos ocorridos com outros menos documentais. De maneira geral, Gabriel e a Montanha supera essas dificuldades com galhardia, embora talvez pudesse ter estendido os depoimentos sobre Gabriel, fortalecendo no espectador a impressão de que ele deixou naqueles com quem conviveu em sua jornada africana.
As árduas condições da filmagem devem ser responsáveis por certa heterogeneidade de estilo, variando entre planos feitos com rapidez e tomada única – no alto dos montes, por exemplo –, e a sofisticada encenação do plano-sequência de abertura. A cena talvez possa ser chamada de minimalista, dada sua simplicidade. A ação se resume a dois homens que se deslocam devagar enquanto ceifam capim na encosta do monte Mulanje e acabam encontrando o corpo do homem branco. Gabriel e a Montanha parte desse momento em que o imperativo do real se impôs, e foi preciso aceitar a realidade de que não havia mais esperança de Gabriel ser encontrado vivo.
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