Lucky, a despedida de Harry Dean Stanton
Em 63 anos de carreira, ator acumulou 199 papéis na televisão e no cinema, como Alien e Paris, Texas
Escrito pelos roteiristas Drago Sumonja e Logan Sparks, sob medida para Harry Dean Stanton ser o protagonista, Lucky, dirigido por John Carroll Lynch, continuou em exibição entre Natal e Ano Novo, após ter estreado no Brasil em 7 de dezembro, três meses depois da morte de Stanton, aos 91 anos.
Ator prolífico, em 63 anos de carreira, Stanton acumulou 199 créditos na televisão e no cinema, atuando primeiro como coadjuvante. Fez dezenas de tipos marcantes – incomuns e excêntricos –, em filmes como Dillinger (1973), O Poderoso Chefão – Parte II (1974) e Alien (1979), entre outros.
Tendo confessado a Sam Shepard que queria “representar algo de certa beleza ou sensibilidade”, Stanton foi convidado por Shepard para fazer Travis Henderson, personagem principal de Paris, Texas (1984). No filme, dirigido por Wim Wenders a partir do roteiro de Shepard e L. M. Kit Carson, Henderson emerge do deserto depois de desaparecer durante alguns anos, chega a ser diagnosticado como mudo, mas na verdade recusa-se a falar e permanece em silêncio durante quase todo o filme, enquanto tenta recompor seus laços familiares.
Em 2017, Stanton participou ainda do filme Sick of it All, que estreou nos Estados Unidos em janeiro, e de episódios da série Twin Peaks, além de ter deixado inédito Frank e Ava, cuja estreia está prevista para este ano.
Sem ser, portanto, o último filme de Stanton, Lucky pode ser considerado sua despedida. Em parte, por tratar da iminência da morte do personagem-título. Mas, além disso, devido aos roteiristas terem recorrido, para compor Lucky, a dados autobiográficos e traços de personalidade de Stanton, já identificáveis no Henderson, de Paris, Texas, e no Lyle, de História Real (1999), de David Lynch – homens solitários e nada loquazes, todos alter egos do ator.
Encenado e filmado de maneira simples, direta e eficaz, Lucky tem pelo menos três grandes sequências que valem o filme: (1) o diálogo de Lucky com Howard (David Lynch) no bar que permite decifrar (2) a cena final do filme; e (3) o número musical em que Lucky canta Volver, Volver, canção rancheira mexicana de Fernando Z. Maldonado.
Se entendi bem, o jabuti do qual Howard diz sentir falta se chama Presidente Roosevelt. A reação de Lucky é implacável: “Ele foi embora, Howard. E você está sozinho. Nós saímos sós e partimos sós. […] É lindo! ‘Sozinho’ (alone) vem apenas de duas palavras, e é só uma. Está no dicionário.”
Howard não dá o braço a torcer: “Eu sinto falta dele. O jabuti é uma criatura incrível, Lucky. É nobre como um rei e tem o coração tão bom quanto o de uma avó. Eu sinto falta do meu amigo. Da companhia dele. Eu sinto falta da personalidade dele. […] Vocês todos pensam no jabuti como algo lento. Mas eu penso no fardo que ele tem que carregar nas costas. É, é para se proteger, mas afinal é o caixão no qual vai ser enterrado. E ele tem que arrastar aquela coisa a vida toda? Podem rir. Mas ele me afetou […] Há coisas neste universo, senhoras e senhores, que são maiores do que nós todos e o jabuti é uma dessas coisas.”
No final do filme, quando Lucky se afasta, andando pelo caminho árido quase até sumir no horizonte, um jabuti entra em quadro e passa diante da câmera, é preciso lembrar do diálogo de Lucky e Howard para não deixar escapar o sentido metafórico da inesperada aparição do jabuti no encerramento de Lucky.
Mas, antes há a sequência em que Lucky começa a cantar a capela e surge um mariachi que passa a acompanhá-lo. A letra da canção é um apelo pungente para reatar a relação amorosa. O apaixonado, que anda todo alvoroçado, quer voltar, voltar. Está enlouquecendo, e apesar de torturado, sabe amar. Faz tempo que o casal está separado, mas chegou o momento… de perder. Ele reconhece que a parceira tinha razão, mas atendendo ao apelo do seu coração está morrendo de vontade de voltar. “E voltar, voltar, voltaaar…/A seus braços outra veeez./Chegarei aonde você estiver/Eu sei perder, Eu sei perder,/Quero voltar… voltar, voltaaar.
Volver, Volver, na improvável voz de Harry Dean Stanton, é uma despedida e tanto.
Como lembrança de alguns “artistas, inovadores e pensadores que perdemos no ano passado”, a New York Times Magazine, de 28 de dezembro, traz fotografias e pequenos textos de “coisas de que eles gostavam”. Entre os que se foram está Harry Dean Stanton. Na página dedicada a ele, a foto mostra o lugar preferido de Stanton para sentar no sofá da sua casa da Mulholland Drive, em Los Angeles – no topo do encosto, um cachorro de pelúcia branco; no braço, duas lentes de leitura e folhas de palavras cruzadas preenchidas, com um cinzeiro em cima; no canto, um sino apoiado no assento, entre o encosto e o braço; à esquerda do espaço reservado para sentar, um telefone; dois controles remotos apoiados no que parece ser um caderno de endereços; um volume grosso encadernado, vermelho (talvez um dicionário para ajudar ao fazer palavras cruzadas); uma máquina de calcular e uma mãozinha de madeira, fina e comprida, para coçar as costas. Embaixo, no espaço livre entre o sofá e o tapete, um par de chinelos forrados de lã. No canto da sala, em frente à estante, uma caixa de som e dois pedestais para microfones.
O texto de Sara Stanton, sobrinha neta de Harry Dean, descreve a rotina do tio avô: “Acordava, fazia palavras cruzadas e jumble [um jogo de palavras] do The L.A.Times. Suas paixões na vida eram música e palavras cruzadas. Nunca deu tanta importância aos filmes. Ele não sentia que fossem tão importantes assim.”
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