Não devemos perguntar apenas o que o câncer causa aos pacientes, afirmava o oncologista e pesquisador Kenneth Pienta. É preciso perguntar o que cada paciente causa ao câncer ILUSTRAÇÃO: METASTATIC CANCER _ELLA MARUSHCHENKO E ELINA KARIMULLINA_ELLA MARU STUDIO, INC._BASEADO EM UM ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA NATURE 548_17 AGOSTO 2017_ CORTESIA DE DR. ARUL CHINNAIYAN
Invasão misteriosa
Por que nem todos os pacientes de câncer sofrem metástase?
Siddhartha Mukherjee | Edição 137, Fevereiro 2018
No verão de 2011, o lago Michigan ficou cristalino. Os raios de sol que incidiam sobre suas águas chegavam ao fundo como faróis de discos voadores, e barcos há muito naufragados podiam ser vistos do alto. Ao encantamento logo se seguiu o susto: não se espera de um lago a transparência de uma piscina. Quando os biólogos foram investigar, descobriram que os turvos emaranhados de plâncton que lá cresciam aos milhões haviam praticamente desaparecido – ao que tudo indicava, consumidos aos poucos por algum organismo faminto.
Os suspeitos mais prováveis eram moluscos: o mexilhão-zebra e seu primo, o mexilhão-quagga. Supõe-se que essas espécies – Dreissena polymorpha e Dreissena bugensis – sejam originárias de bacias da Ucrânia, em especial a do rio Dnieper. No final da década de 80, cargueiros oriundos do mar Cáspio e do mar Negro despejaram suas águas de lastro nos Grandes Lagos americanos, que assim foram contaminados por organismos exóticos.
Num primeiro momento, os dois moluscos pareciam visitantes relativamente inócuos. Mas a impressão de inocência não durou muito. Em meados dos anos 90, agarrados a quilhas, turbinas e hélices dos barcos, eles formavam massas que lembravam tumores e tomavam de assalto ancoradouros e trapiches, além de entupir tubulações de água e sistemas de esgoto. Iam dar nas margens em tal quantidade que, em algumas praias, era possível caminhar sobre uma camada compacta de conchas. A transparência da água começou, então, a aumentar – e o efeito, antes pitoresco, em breve se mostrou sinistro.
Em 2012, certos trechos ao sul apresentavam 10 mil mexilhões por metro quadrado. Estimou-se uma população de 950 trilhões de Dreissena, que transformaram o fundo do lago num crepitante carpete de cálcio. Em 2015, a densidade dos Grandes Lagos chegou a 15 mil moluscos por metro quadrado – mais mexilhões, em peso total, que a soma dos peixes. Foi preciso descontaminar as embarcações, além de desmontar e limpar todo o equipamento de purificação da água. Numa tentativa de deter a ameaça, distribuíram-se alertas por todo o sistema de lagos. Em vão: os invasores – sobretudo os mexilhões-quagga, bem mais numerosos – continuavam a se multiplicar.
Por que esses invasores se mostraram tão nocivos? Sua agressividade deve-se em parte a suas características biológicas. Os Dreissena são grandes reprodutores: cada um chega a botar mais de 1 milhão de ovos por ano. Ainda assim, nas bacias e nos deltas da Ucrânia, quase nunca atingem um quinto da densidade máxima observada nos Grandes Lagos. Raramente se alojam em profundidades superiores a 30 metros, tampouco se agarram a barcos; não entopem equipamentos submersos nem formam massas calcificadas. Comportam-se como espécies de certo modo dóceis – controladas, talvez, pela qualidade da água, por seus predadores e agentes patogênicos naturais, pela pouca profundidade das bacias ou por outros fatores ainda não identificados.
Para desvendar o enigma do mexilhão-quagga, é preciso ir por partes. A primeira tem a ver com a biologia intrínseca do molusco – estrutura genética, morfologia, preferências nutricionais, hábitos reprodutivos. A outra envolve as relações entre essas características e o meio em que o animal se desenvolve. Trata-se de uma ideia básica, familiar a quem tenha estudado ecologia: a capacidade invasiva de um organismo é sempre relativa. A carpa asiática – agressor feroz em águas americanas – não se mostra especialmente intrusiva em várias regiões da Ásia. A poligonácea Fallopia japonica ou Reynoutria japonica – um tipo de erva – vem invadindo os adorados jardins ingleses, mas no Japão não é considerada daninha. Um organismo agressor em determinado ambiente pode ser um pacato morador de outro. Organismos humildes só se comportam com humildade em certas circunstâncias. Em condições distintas, podem se apossar do terreno de uma hora para outra.
Certa noite de junho passado, em Chicago, ao caminhar às margens do lago Michigan, flagrei-me pensando sobre os mexilhões, a Fallopia japonica e o câncer. Milhares de pessoas estavam na cidade para o congresso anual da Asco (American Society of Clinical Oncology – Sociedade Americana de Oncologia Clínica), o mais importante encontro do gênero no mundo. O grosso das comunicações, eu tinha certeza, se concentraria nas propriedades intrínsecas das células cancerígenas e em como atacá-las. Mas tais propriedades talvez fossem apenas parte do quadro. Seria necessário saber com que molusco estamos lidando, mas também de que lago se trata.
Poucas semanas antes, eu estivera com uma paciente de câncer de mama no hospital da Universidade Columbia, em Nova York. Anna Guzello, caixa de supermercado no Brooklyn, detectara um nódulo na mama esquerda havia poucos meses (alterei alguns detalhes de sua identidade). A mamografia revelou uma massa opaca, e a biópsia confirmou que o tumor era maligno. Guzello se submeteu a uma mastectomia total da mama esquerda, já que a simples retirada cirúrgica do tumor não teria bastado, dado o seu tamanho e a sua posição. Agora ela planejava realizar uma reconstrução do seio. Numa tarde de maio, consultou-se com Katherine Crew, especialista em câncer de mama em Columbia, para discutir os próximos passos do tratamento.
O consultório de Crew, no 10º andar do hospital, é pequeno, quadrado e com poucos móveis. De uma luminária de mesa, emanava uma luz fluorescente que não parava de piscar, e a médica a desligou. A paciente, sentada na beira da cadeira e inclinada para a frente, trazia os cabelos presos num coque e tinha o rosto franzido de tanta atenção, enquanto a oncologista fazia desenhos e anotações numa folha de papel. “Consegue decifrar a minha letra?”, perguntou Crew. “Você pode ficar com as anotações e voltar sempre que tiver alguma dúvida.” Seu tom era leve, mas o peso de cada palavra era grande. Guzello aquiesceu. Tamborilava com as unhas no tampo da mesa, produzindo um staccato de sonoridade militar – um tique nervoso que parecia acalmá-la.
“Antes de mais nada, as boas notícias”, disse a médica. “Não há sinal visível de câncer em seu organismo.” Os cirurgiões tinham removido o tumor inteiro, com ampla margem de segurança. Os gânglios linfáticos das axilas – local frequente de metástase – estavam saudáveis. No jargão dos oncologistas, Guzello podia ser classificada como uma paciente N.E.D. (no evidence of disease), sem sinal aparente de doença.
No entanto, “sinal aparente” é uma expressão enganosa, que tem a ver com o que sabemos da doença, e não com sua realidade. Células de câncer de mama podem escapar do tumor, alojando-se no cérebro, na medula espinhal ou nos ossos, onde nem sempre são detectadas por exames de imagem ou laboratoriais. Mulheres submetidas a mastectomias radicais e “sem sinal aparente de doença” podem voltar a apresentar câncer de mama metastático meses, anos ou até décadas depois da remoção cirúrgica do tumor. Pacientes que sucumbem ao câncer em geral morrem de metástases, e não do tumor primário. (Exceções notáveis são os cânceres de cérebro, que podem matar pelo crescimento do tumor no crânio, e os cânceres hematológicos, em que as células cancerígenas são metastáticas por natureza.)
“Existem alguns tratamentos para reduzir os riscos de metástase”, disse Crew a Guzello. A médica explicou que os medicamentos podem ser de três tipos: os quimioterápicos, que matam as células; os de terapia-alvo, como o trastuzumabe, que interferem nos genes ou nas proteínas responsáveis pelo crescimento e disseminação do tumor; e os que bloqueiam o estrogênio, prescritos por cinco ou dez anos.
Guzello passou as mãos nos cabelos, com os lábios franzidos. Os medicamentos de ação hormonal não a incomodavam. Mas ela resistia à toxicidade da quimioterapia. “Se eu não tenho metástases, pode ser que corra os riscos sem motivo”, argumentou. As unhas voltaram a tamborilar no tampo da mesa. Os riscos, de fato, eram substanciais: perda de cabelos, diarreia, infecções e a possibilidade, pequena, de uma dormência permanente nas mãos, que lhe provocaria a sensação de vestir luvas de couro o tempo todo, mas com uma sensibilidade extrema ao frio. Um protocolo de quimioterapia significava que a paciente passaria várias horas por semana presa a um equipamento de infusão intravenosa, por quase seis meses. Ela tinha poucos dias de folga, e sua mãe, sob seus cuidados, apresentava sérios problemas de locomoção. Haveria como estimar a probabilidade de metástase? “Nesse caso, eu poderia avaliar os riscos e benefícios de maneira mais realista”, ponderou Guzello.
Essa é uma pergunta que vem ressoando há décadas. Não temos como prever se o câncer de um determinado paciente vai ou não se tornar metastático. A metástase se parece com “um ato aleatório de violência”, como me disse Daniel Hayes, oncologista especializado em câncer de mama na Universidade de Michigan, depois de sua fala na reunião da Asco em Chicago. “Já que não temos meios de dizer se pacientes com câncer de mama apresentarão ou não metástases, tendemos a tratá-las com quimioterapia, como se todas pudessem desenvolvê-las.” Só uma fração das doentes sujeitas a uma quimioterapia tóxica se beneficiará do tratamento, mas não há como saber quais delas pertencem a essa fração. Nossa única escolha é optar pelo tratamento, ainda que desnecessário. Para mulheres como Guzello, então, a pergunta central é: “Será o meu caso?”
Aideia de que as metástases dependem do habitat do câncer está profundamente consolidada. Em 1889, o médico inglês Stephen Paget começou a estudar o “crescimento de tumores primários e a condição do crescimento dos tumores secundários derivados”. Naquele tempo, imaginava-se que o câncer se espalhava em todas as direções, a partir de sua localização primária, como uma mancha de tinta maligna. Os cirurgiões, convencidos dessa “teoria centrífuga”, defendiam remoções cada vez mais amplas. (Essa teoria, aliás, seria a base para a mastectomia “radical” de William Halsted.) Mas quando Paget examinou os prontuários de 735 mulheres mortas por câncer de mama, deparou-se com um estranho padrão de alastramento das metástases. Elas não pareciam se espalhar segundo um modelo centrífugo. Na verdade, surgiam em pontos distantes e variados. O alastramento, porém, estava longe de ser aleatório: os cânceres apresentavam uma peculiar e acentuada preferência por certos órgãos. Das 300 e tantas metástases observadas, Paget encontrou 241 no fígado, 17 no baço e 70 nos pulmões. Planícies enormes, desertas, sem sinal de colonização – vastas extensões anatômicas intocadas pela metástase – estendiam-se entre o ponto de origem e a nova localização do tumor.
Por que o fígado seria tão receptivo à metástase, enquanto o baço, tão próximo a ele, parecia relativamente resistente? À medida que investigava, Paget também descobriu que o câncer tendia a crescer em determinadas áreas dos órgãos afetados. Os ossos eram locais frequentes de metástase no câncer de mama – mas nem todos os ossos apresentavam a mesma suscetibilidade. “Quem já viu metástases ósseas nas mãos ou nos pés?”, perguntou. Page adotou a expressão “semente e solo” (seed and soil) para descrever o fenômeno. A semente era a célula cancerígena; o solo, o ecossistema onde ela podia ou não florescer. Seu estudo concentrou-se em padrões de metástase no organismo de uma pessoa. A propensão de um órgão a ser colonizado, enquanto outros eram poupados, parecia depender da natureza ou da localização desse órgão – das ecologias locais. A lógica do modelo “semente e solo” acabou por suscitar uma pergunta frequente: por que o organismo de um indivíduo apresenta nichos suscetíveis, e o de outro, não?
Amaneira como Paget concebeu a questão – a metástase como resultado de uma relação patológica entre uma célula cancerígena e seu meio – permaneceu intocada, salvo raras exceções, por mais de um século. Outro pioneiro das pesquisas, Isaiah J. Fidler, que trabalhou no Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, durante as décadas de 70 e 80, dedicou-se a estudar as “conversas cruzadas” entre tecidos e tumores. Ele demonstrou que um tumor se compõe de uma mistura heterogênea de milhões de células, das quais apenas uma fração tem a capacidade de abandonar o tumor primário, formar uma relação de exploração com o “solo” de outro órgão e iniciar a metástase. No mesmo período, Mina Bissell, ao pesquisar na Universidade da Califórnia e depois no Laboratório Nacional de Lawrence Berkeley, pôs-se a esquadrinhar os microambientes em que os tumores se formavam, ou não, ao mesmo tempo que investigava os fatores que podiam permitir ou impedir o crescimento do câncer em diferentes órgãos. O contexto, ela descobriu, era sempre decisivo.
Ainda assim, a oncologia continuava dominada por um modelo mais simples. Quando estudei medicina em Boston, varei uma noite numa lanchonete gelada decorando os cânceres que podem causar metástase óssea: pulmão, mama, tireoide, rins e próstata. Na ocasião, me servi de uma fórmula mnemônica de gosto duvidoso – pizza com molho de tomate, refrigerante e pudim. O câncer “se disseminava” pelos vasos sanguíneos e “atacava” outros órgãos, onde brotava e florescia. No final da década de 90, ao percorrer as enfermarias de câncer, sempre ouvia que “o tumor invadiu o cérebro”. (Quem nunca disse que um resfriado ataca uma pessoa?) Sujeito, verbo, objeto: o câncer era um agente autônomo, o agressor. Era quem se movia. Já os hospedeiros – os pacientes, seus órgãos – eram a plateia silenciosa, as vítimas inocentes, os espectadores passivos.
Aquela linguagem refletia um compromisso quase ontológico, em vigor mesmo depois que mudaram os paradigmas de pesquisa. “O câncer é essencialmente uma doença genética”, afirma o biólogo Robert Weinberg, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT. Por muitas décadas, de maneira coerente com esse modo de pensar, os cientistas procuraram mutações genéticas que explicassem algum aspecto do crescimento aberrante, do metabolismo ou da regeneração das células cancerígenas. Ao final dos anos 80, biólogos dedicados ao estudo do câncer, sobretudo Weinberg, fizeram o possível para encontrar os genes que determinariam a metástase – os chamados met genesou “genes metastáticos”. Será que uma célula de câncer de mama, por exemplo, sofria algum tipo de mutação que lhe permitia se desprender da mama para colonizar o cérebro?
Ao cabo de décadas de investigação, esses met genes nunca se materializaram. “Procuramos e tornamos a procurar, mas jamais encontramos nenhum gene”, declarou Weinberg. Uma vez ou outra, detectaram-se metástases que apresentavam diferenças genéticas em relação ao tumor primário, mas nenhuma dessas mutações emergiu como o fator desencadeante da migração. A partir do final dos anos 90, os geneticistas especializados em câncer adotaram uma nova abordagem. Concluíram que as eventuais mutações nas células cancerígenas não agem isoladamente. Na verdade, são capazes de ativar ou desativar dezenas, ou mesmo centenas, de genes em outras células. Esses padrões de ativação e desativação podem produzir diferenças enormes – assim como teclados semelhantes geram sons extremamente diferentes. (As lagartas possuem o mesmo genoma da borboleta em que se transformam, bem como as células do fígado de qualquer pessoa contêm o mesmo genoma das células de seu cérebro.) Em vez de sair em busca de mutações únicas nas células cancerígenas, os pesquisadores também começaram a procurar por padrões de regulação dos genes em outros tipos de células – as chamadas “assinaturas de expressão genética”. Esses padrões foram então utilizados para desenvolver testes preditivos, logo aplicados em estudos clínicos.
Em relação a algumas variantes do câncer de mama, esses testes se mostraram úteis. Exames genéticos largamente utilizados, como o MammaPrint ou o Oncotype DX, identificaram doentes cujo risco de metástase é baixo e que por isso puderam dispensar o tratamento quimioterápico. “Conseguimos reduzir o uso da quimioterapia em cerca de um terço de todas as pacientes atingidas por certos subtipos de câncer de mama”, afirma Daniel Hayes, o oncologista da Universidade de Michigan.
Hayes também diz ter uma dívida para com exames genéticos capazes de indicar quem pode se beneficiar de uma terapia-alvo, como o tratamento com trastuzumabe, ou de medicamentos antiestrogênio. Mesmo assim, apesar dos progressos em direcionar a terapia para as células tumorais tomando marcadores genéticos como guias, os esforços para prever quais cânceres se tornarão metastáticos tiveram um avanço muito lento. A pergunta “Será o meu caso?” ainda desafia a ciência. Aquilo que o oncologista Harold Burstein define como a “caixa da incerteza” da quimioterapia obstina-se em permanecer fechada.
Em 2001, Joan Massagué, biólogo do Memorial Sloan Kettering Cancer Center, em Nova York, deparou-se com um estudo que afetou radicalmente sua concepção de metástase. Nascido em Barcelona, Massagué – um homem grisalho, que anda quase sempre com o primeiro botão da camisa desabotoado – passou anos estudando biologia celular e elucidando mecanismos de regulação genética que podem estimular células do câncer de mama a migrar para os ossos e não para o cérebro.
Certo dia, viu-se às voltas com um experimento crucial, relatado numa revista obscura quase trinta anos antes. Pesquisadores dos Estados Unidos haviam implantado uma bolsa de células de câncer de mama no pedículo ovariano de uma rata. As células cresceram e se transformaram num tumor do tamanho de um feijão. Os cientistas introduziram uma cânula numa veia que drenava o tumor e colheram sangue a intervalos de poucas horas. Queriam contar o número de células cancerígenas que o tumor liberava na corrente sanguínea.
Os resultados deixaram os investigadores aturdidos. Eles constataram que cerca de 20 mil células cancerígenas por mililitro de sangue se desprendiam do tumor – mais ou menos 3 milhões de células por grama de tumor a cada 24 horas. No decorrer de um dia, o tumor renovava quase um décimo do seu peso. Estudos posteriores, conduzidos com métodos mais sofisticados e com cânceres que haviam ocorrido mais naturalmente em animais, confirmaram que tumores lançam células cancerígenas continuamente na circulação sanguínea. (Em seres humanos, é mais difícil estudar a velocidade da liberação de células tumorais; as pesquisas disponíveis, porém, tendem a confirmar esse fenômeno básico.)
“Imaginamos a metástase como um problema do movimento”, me disse Massagué. “Metástases se movem até os ossos. Ou até o cérebro.” Ele pontuava o ar com os dedos a cada verbo, o rosto corado de animação. “Sim, sim, o movimento é importante, porque precisamos descobrir o que permite que as células se desprendam do tumor primário e se desloquem para o sangue e os gânglios linfáticos. Mas se os tumores primários que acometem seres humanos estão sempre lançando células cancerígenas, e se cada uma delas é capaz de formar uma metástase visível, todo paciente com câncer deveria apresentar vários depósitos metastáticos por todo o organismo.” Assim, o tumor de Anna Guzello teria atingido seu cérebro, seus ossos e seu fígado. Por que, então, ela não apresentava nenhum sinal visível de doença em qualquer outro ponto do corpo? A verdadeira questão não era saber por que ocorrem metástases em alguns pacientes com câncer, mas porque elas não ocorrem em todos eles.
“A única maneira de explicar a escassez de metástases”, afirmou Massagué, “é imaginar que elas são inibidas por uma enorme onda de morte ou latência celular.” Em outras palavras: ou as células que se desprendem do tumor estão mortas, ou param de se dividir, tornando-se adormecidas. Geralmente, quando entram na corrente sanguínea, as células tumorais morrem quase de imediato e em vastas quantidades. Só umas poucas chegam ao órgão visado, seja o cérebro ou um osso. Depois que chegam, ainda têm de enfrentar o problema da sobrevivência em terreno desconhecido e possivelmente hostil. Massagué inferiu que essas poucas sobreviventes acabam entrando num estado de latência. “Uma metástase clinicamente visível – do tipo que uma tomografia computadorizada ou uma ressonância pode detectar – só vai ocorrer depois que uma célula adormecida é reativada e começa a se dividir”, explicou. A malignidade, portanto, não tem a ver apenas com o alastramento das células; também depende de que elas sejam capazes de fixar-se – e florescer – depois de sua migração.
Na primavera de 2012, enquanto Massagué e outros ainda procuravam células adormecidas, Gilbert Welch, epidemiologista em Dartmouth, preocupava-se com o problema da detecção precoce. Os programas de detecção precoce destinavam-se ao diagnóstico e à eliminação de cânceres que de outro modo haveriam de se tornar metastáticos. No entanto, um aumento extraordinário dos exames preventivos não conseguiu impacto equivalente nas taxas de mortalidade. Welch, além de ser médico, tem formação de estatístico. Quando recita números e equações, sua voz adquire um tom tonitruante, como se ele fosse um televangelista que nas horas vagas se dedica ao ensino da matemática.
Para ilustrar uma versão extrema do problema, Welch contou a história de uma epidemia que nunca aconteceu. Na Coreia do Sul, mais ou menos quinze anos atrás, os médicos adotaram uma prática agressiva de prevenção do câncer de tireoide. Ambulatórios em Seul foram equipados com pequenos aparelhos de ultrassom e os médicos passaram por um treinamento específico para detectar os primeiros sinais da doença. Toda vez que um nódulo suspeito era encontrado, fazia-se uma biópsia. Se o resultado fosse positivo, a tireoide do paciente era removida cirurgicamente.
Mesmo assim, a incidência oficial de câncer de tireoide – em particular do subtipo chamado carcinoma papilífero – começou a disparar em todo o país. Em 2014, a ocorrência da doença revelou-se quinze vezes maior que em 1993. Aquele se tornou o tumor mais diagnosticado na Coreia. Foi como se um “tsunami de câncer de tireoide”, nas palavras de um pesquisador, tivesse atingido a nação de uma hora para outra. Bilhões de wons foram canalizados para o tratamento; dezenas de milhares de tireoides foram parar nos baldes das salas cirúrgicas. Entretanto, a proporção de mortes causadas pela enfermidade no país continuava inalterada.
O que teria acontecido? Certamente não se tratava de erro médico: observados no microscópio, os nódulos questionáveis preenchiam os critérios para a doença. Na verdade, o que os patologistas encontraram não era especialmente patogênico – aqueles cânceres de tireoide apresentavam baixa propensão a causar prejuízos. Os pacientes não haviam sido submetidos a um diagnóstico errado, mas a um diagnóstico excessivo. Ou melhor: foram identificados cânceres que jamais chegariam a produzir sintomas clínicos.
Em 1985, na Finlândia, patologistas examinaram os corpos de 101 homens e mulheres que haviam morrido de causas diferentes – acidentes de carro ou ataques cardíacos, digamos – e submeteram-nos a autópsias para determinar quantos apresentavam carcinoma papilífero de tireoide. Cortaram todas as tireoides em lâminas finíssimas e as examinaram ao microscópio. Espantosamente, encontraram carcinomas em mais de um terço das glândulas. Estudo semelhante em torno do câncer de mama sugere que um programa de detecção precoce marcado por um zelo excessivo poderia superdiagnosticar o distúrbio com uma frequência impressionante, levando a intervenções desnecessárias. Passando em revista os resultados de exames de detecção do câncer de próstata, Welch calculou que de trinta a 100 homens acabariam submetidos a um tratamento desnecessário – cirúrgico ou radioterápico – para cada vida efetivamente salva.
“O diagnóstico precoce do câncer de mama pela mamografia salva vidas, embora o benefício seja discreto”, me disse Daniel Hayes. Igualmente importante é saber como agir com o tumor detectado: será possível identificar os cânceres que precisam ser tratados de maneira sistêmica, com quimioterapia ou outras formas de intervenção? “Não queremos chegar só à detecção precoce”, prosseguiu Hayes. “Mas ao prognóstico precoce.”
Para Welch, a proliferação dos diagnósticos de câncer de tireoide ou próstata sem a contrapartida de diminuir as taxas de mortalidade soou como um alarme: conhecimento insuficiente pode ser perigoso. Campanhas de prevenção multiplicaram o número de doenças potenciais, sem nos dizer em que caso o tratamento era ou não necessário. A detecção precoce nos ajuda com o quando e com o quê, mas não com o “será o caso?”.
Em março de 2012, Gilbert Welch pegou um avião para participar de uma conferência sobre metástase em Washington. Era uma manhã cinzenta, de vento – “O hotel se parecia com qualquer outro, tinha uma comida nada memorável” –, e ele, ostentando o crachá obrigatório que pendia de uma fita anódina, viu-se num salão repleto de biólogos especializados em câncer. Sentiu-se um extraterrestre. “Pesquiso padrões e tendências do câncer em populações humanas”, me contou. “Minha visão da doença é panorâmica. Aquele encontro estava coalhado de biólogos que estudavam metástase examinando células cancerígenas ao microscópio. Eu me perguntava o que aquilo teria a ver com as características demográficas dos cânceres que acometem humanos – ou melhor, por que eu havia sido convidado.”
De repente, com o café na mão, Welch avistou uma imagem que lhe chamou a atenção. Numa tela, era projetada a infestação de mexilhões no lago Michigan. O cientista que se apresentava, Kenneth Pienta, então oncologista da Universidade de Michigan (hoje está na Universidade Johns Hopkins), ouvira falar da crise dos quagga e se impressionara com os aparentes paralelos entre aquele caso e o câncer. Em vez de avaliar a capacidade de invasão como uma qualidade intrínseca à doença, os pesquisadores precisavam considerar que tal atributo derivava de uma relação patológica entre um organismo e seu meio. “Juntas, as células cancerígenas e as células hospedeiras constituem um ecossistema”, afirmava Pienta. “Num primeiro momento, as cancerígenas são uma espécie invasora num nicho ou habitat novo. Mais adiante, as interações entre as células cancerígenas e as hospedeiras acabam por criar um ambiente modificado.” Não devemos perguntar apenas o que o câncer causa aos pacientes, dizia Pienta. É preciso perguntar o que cada paciente causa ao câncer.
Falando sobre a enfermidade em termos ecológicos, Pienta, na tradição de Stephen Paget e Isaiah Fidler, estimulava os colegas a desviar os olhos da semente e prestar mais atenção ao solo. Uma mulher com um câncer de mama primário se via às voltas com uma batalha ferrenha, mas silenciosa. Gerações de oncologistas estudaram o possível desdobramento desse combate: quando perdia, a paciente sucumbia à metástase. Mas o que acontecia quando era o câncer que perdia a batalha? E se as células cancerígenas tentassem invadir novos nichos, mas morressem a caminho, como consequência da resistência criada pelo sistema imunológico da hospedeira? E se as poucas células que, isoladas ou em grupos, sobrevivessem à expedição acabassem caindo num terreno de tecido nada receptivo, como sementes que se espalhassem numa planície de terra salgada?
Welch ficou encantado. Precisamos atentar para as diferenças entre a proliferação do mexilhão-quagga e a extinção quase completa, em águas americanas, do mexilhão catspaw (Epioblasma obliquata). Mas o que dizer das diferenças entre os Grandes Lagos e o rio Dnieper? Os indícios sugerem, por exemplo, que a maioria dos homens com câncer de próstata jamais sofre metástase. No entanto, por que alguns são suscetíveis a ela? A abordagem habitual, Welch bem sabia, era procurar marcadores em suas células cancerígenas – para encontrar padrões de ativação de certos genes que tornassem algumas delas perigosas. As características dessas células se mostraram evidentemente cruciais. Pienta afirmava, porém, que tal abordagem era estreita demais. Pelo menos parte da resposta podia residir na relação ecológica entre um câncer e seu hospedeiro – entre a semente e o solo.
Em 1992, um professor australiano do ensino médio, de quase 60 anos, foi diagnosticado com melanoma. O tumor maligno se manifestou como uma faixa preta – uma tira diagonal que, iniciando na axila esquerda, atravessava o tórax. Entretanto, poucas semanas depois do diagnóstico, as bordas do tumor começaram a mudar. Uma das extremidades ficou cinzenta e a outra diminuiu. “A lesão cancerígena apresentava uma regressão espontânea clássica – um sinal típico de que estava sendo contida pelo sistema imunológico”, me explicou David Adams, filho do paciente. O melanoma primário foi cirurgicamente removido, e nenhuma metástase chegou a se manifestar. Um dos amigos de seu pai, também entre os 50 e os 60 anos, não teve a mesma sorte: quando seu melanoma primário foi descoberto, seu cérebro já estava salpicado de metástases visíveis.
David Adams estudou genética e fisiologia em Sydney antes de entrar para o Instituto Sanger, em Cambridge, na Inglaterra, onde encabeça uma equipe voltada à biologia do melanoma. Nascido em Tamworth, pequena cidade do interior de Nova Gales do Sul (“uma região quentíssima, bem no meio do cinturão de melanoma da Austrália”), o cientista hoje vive a 16 mil quilômetros de lá, numa exótica cidadezinha inglesa. Fala com um ligeiro sotaque interiorano britânico e vai para o trabalho dirigindo um carro popular. Em suma, transformou-se num local – situação em que o solo prevaleceu sobre a semente –, mas nunca esqueceu o caso do pai. O episódio motivou toda a sua carreira científica. O que faz um melanoma regredir num paciente e avançar em outro?
Adams leu sobre uma curiosa série de melanomas relacionados a transplantes de rins e que se enquadram num padrão. Um paciente diagnosticado com melanoma (vamos chamá-lo de D. G.) foi tratado com sucesso por meio da remoção cirúrgica do tumor. Anos depois, doou um rim a um amigo. O amigo tomou imunossupressores para prevenir a rejeição ao órgão. Algumas semanas mais tarde, porém, observou-se o surgimento de centenas de pontinhos de melanoma no rim transplantado. O melanoma, estranhamente, vinha das células de D. G. O rim doado precisou ser removido cirurgicamente. Enquanto isso, o doador – como uma espécie de Dorian Gray dos transplantes – continuava saudabilíssimo, sem sinal de melanoma no organismo.
Aqui também, Adams percebeu, que o ambiente hospedeiro original desempenhou um papel determinante na contenção do crescimento metastático. As células de melanoma do doador deviam estar adormecidas no rim doado, um fenômeno similar à latência que Massagué observou em ratos. Quando o solo mudou, as células adormecidas encontraram um receptor com a imunidade suprimida, e o câncer começou a se desenvolver. “No doador, a resposta imune devia estar contendo a metástase”, me disse Adams.
Em 2013, o cientista australiano concebeu uma experiência ambiciosa para identificar fatores que suprimiam o câncer no hospedeiro. “A poucos metros da sala em que trabalho, temos um viveiro de camundongos com centenas de linhagens geneticamente alteradas”, me contou. “Pesquisadores vinham usando esses animais para estudar os efeitos das variações genéticas sobre o coração ou o sistema nervoso. Então formulei a seguinte pergunta: se implantarmos o mesmo câncer em linhagens diferentes, quais delas vão permitir e quais vão impedir o crescimento das metástases?”
Era uma engenhosa inversão de uma estratégia experimental clássica. Por várias décadas, os biólogos vinham alterando os genes de células cancerígenas e as injetando em determinadas linhagens de camundongo. Os experimentos de “cânceres diferentes na mesma linhagem” permitiam observar como as alterações nos genes ligados ao câncer podiam afetar o metabolismo e as metástases dos tumores. Já a experiência de Adams, do “mesmo câncer em linhagens diferentes”, transferiu o foco de atenção da semente para o solo.
Enquanto isso, em Nova York e em Boston, pesquisadores como Joan Massagué e Robert Weinberg também investigavam os “fatores do hospedeiro”. Num experimento sugestivo, Weinberg e seus colegas estudaram uma linhagem de camundongos que tiveram os pulmões polvilhados com milhares de células cancerígenas adormecidas. Alguns foram expostos a um estímulo inflamatório – do tipo que pode ocorrer durante uma pneumonia, por exemplo – e só neles as “micrometástases” despertaram e se tornaram agressivas. O fenômeno lembra uma experiência fascinante, embora não muito considerada, que Mina Bissell fez na década de 80. Até então, gerações de pesquisadores sabiam que, ao injetar certos vírus indutores de câncer numa asa de frango, provocava-se o surgimento de um tumor. Bissell mostrou que, quando se injetava o vírus numa das asas e se feria a outra, também poderia surgir um tumor na ferida provocada. Em contrapartida, se o vírus fosse injetado quando o frango ainda se encontrasse na fase de embrião, nenhum tumor se desenvolvia. “Àquela altura, a tendência foi pensar que o câncer não passava de um autômato despertado por genes cancerígenos”, me disse Bissell. “Mas o autômato podia ser ligado ou desligado por fatores ambientais.” Não era apenas a semente que contava – a mudança de fatores do solo podia afetar a germinação.
Massagué e seus alunos, por seu lado, também faziam progressos, sobretudo com a experiência de inocular células cancerígenas adormecidas em camundongos, dos quais eliminavam vários tipos de células imunológicas. Alguns desses tipos pertenciam ao “sistema imunológico adaptativo”, que aprende a identificar novos agentes patogênicos quando torna a entrar em contato com eles. (O sistema imunológico adaptativo é o motivo da eficiência das vacinas e a razão pela qual é difícil alguém contrair catapora mais de uma vez.) Mas o efeito mais notável do experimento ocorreu quando os pesquisadores eliminaram outro tipo de célula, conhecida como natural killer (“exterminadora natural”) ou simplesmente NK. Essas células pertencem à nossa “imunidade inata” – incapazes de qualquer aprendizado, já chegam programadas para destruir células hospedeiras doentes ou anômalas. A equipe de Massagué descobriu que as NK têm uma atuação decisiva como sentinelas e controladoras da metástase.
Em Cambridge, David Adams se interessou em investigar como os genes dos hospedeiros podiam afetar a metástase. No início de 2013, Louise van der Weyden, fazendo seu pós-doutorado no laboratório de Adams, com quem era casada, criou uma suspensão de células de melanoma de camundongo – uma calda turva cor de café – e a injetou em dezenas de linhagens do roedor. Poucas semanas depois, contou o número de metástases visíveis nos pulmões de cada animal e encaminhou os dados para Adams.
Mesmo naquela amostra pouco numerosa, as diferenças saltaram aos olhos. Certos camundongos desenvolveram centenas de metástases, uma constelação de pontos pretos. Outros estavam com os pulmões visivelmente escurecidos por um número razoável de metástases e alguns apresentavam poucas metástases. Adams mantém uma fotografia desses pulmões em sua sala. “Tínhamos o mesmo câncer exercendo efeitos muito diferentes, conforme o ambiente encontrado no hospedeiro.”
Dois anos mais tarde, Van der Weyden inoculou células de melanoma em 810 linhagens de camundongos e acompanhou a fisiologia da metástase em cada uma: quinze linhagens se mostraram de moderada a extremamente resistentes; doze dessas quinze apresentaram variações genéticas que afetaram a regulação imunológica, sugerindo mais uma vez o papel poderoso desse sistema sobre a capacidade de um câncer se espalhar e invadir outros órgãos. Mesmo no interior do grupo resistente, uma das linhagens se destacava. Quando expostos à dose de células cancerígenas usada no estudo, os camundongos desenvolviam em média cerca de 250 metástases, enquanto os da linhagem mais resistente desenvolviam uma média de quinze a vinte. Alguns deles, inclusive, não desenvolveram qualquer metástase. Seus pulmões apareciam limpos até dois meses depois de expostos às células cancerígenas.
Essa resistência à metástase seria peculiar ao melanoma, um tipo de câncer que sabidamente provoca uma resposta do sistema imunológico? Adams e Van der Weyden testaram três outros tipos de câncer: os de pulmão, mama e cólon. Em todos, a mesma linhagem de camundongos se mostrou resistente às metástases. Vale notar que essa linhagem apresentava uma variação num gene chamado Spns2. Por meio de uma série de eventos concatenados, o gene alterado é capaz de aumentar a concentração, nos pulmões, de células do sistema imunológico, sobretudo as NK – as mesmas que o laboratório de Massagué havia identificado como um poderoso agente inibidor de metástases.
Opai de David Adams jamais sofreu uma recorrência de melanoma, mas morreu de um câncer de próstata que se espalhou por seu corpo. “Antigamente, eu teria pensado em comparar o melanoma com o câncer de próstata em termos do potencial metastático inerente aos dois tipos de célula. Um câncer bom versus um câncer mau”, me disse Adams. “Hoje, porém, me inclino para outra questão: por que o corpo do meu pai foi mais receptivo à metástase da próstata que à metástase do melanoma?”
Levar em conta o solo, tanto quanto a semente, tem consequências importantes. Entre as inovações recentes mais bem-sucedidas no tratamento do câncer, se encontra a imunoterapia, em que o sistema imunológico do paciente é ativado para agir contra as células cancerígenas. Tempos atrás, o imunologista pioneiro Jim Allison e seus colegas descobriram que as células cancerígenas recorriam a proteínas especiais para frear as células do sistema imunológico do hospedeiro, propiciando um crescimento incontido dos tumores. A equipe de Allison também demonstrou que, quando certas drogas impediam que determinados tipos de câncer acionassem as proteínas bloqueadoras, as células do sistema imunológico começavam a atacá-los.
Tais terapias podem ser mais bem definidas se entendermos que seu foco se concentra no solo. Em vez de matar diretamente as células tumorais ou ter como alvo produtos de mutações genéticas no interior dessas células, os tratamentos alteram a ecologia do hospedeiro. O câncer, como os mexilhões, prolifera em habitats favoráveis e, também como os mexilhões, pode criar microambientes que contribuem para aumentar sua resistência aos predadores. Terapias com foco na semente destroem as células cancerígenas – o que equivale a exterminar os mexilhões despejando veneno na água. Terapias focadas no solo, ao contrário, buscam modificar o habitat.
Quando perguntei que tipo de estudo clínico Adams julgava ter mais potencial terapêutico, ele descreveu uma pesquisa pouco habitual em que pacientes diagnosticados com melanoma primário – como seu pai – doarão sangue para que os cientistas possam identificar seus marcadores genéticos e a composição celular de seu sistema imunológico. Estudando a evolução dos casos ao longo do tempo, terão condições de descobrir quem é mais suscetível e quem é mais resistente a certos tipos de câncer. Também saberão com mais clareza quem precisará de tratamento agressivo. E poderão aprender alguma coisa sobre como tratar os doentes – como alterar o perfil imunológico e histológico de um paciente suscetível de tal modo que se assemelhe ao de um paciente resistente.
“O câncer não é uma doença das células, assim como um engarrafamento não é uma doença dos automóveis”, escreveu o médico e pesquisador D. W. Smithers na revista Lancet, em 1962. “Um engarrafamento resulta de uma crise na relação entre os automóveis circulantes e seu meio, e pode ocorrer com os automóveis funcionando normalmente ou não.” Smithers exagerou na provocação, despertando uma oposição ruidosa e imediata: ao afirmar que as relações entre as células eram responsáveis pelo comportamento do câncer, ele cometeu o pecado de multiplicar os fatores que os oncologistas precisam levar em conta. “Negar a importância das células para o desenvolvimento dos tumores seria o mesmo que negar a importância das pessoas em algum problema sociológico”, esclareceu mais adiante. As células cancerígenas revelam-se uma condição necessária, mas não suficiente, para a doença. O verdadeiro objetivo de Smithers era ultrapassar a obsessão da oncologia com o motor de combustão interna – o autômato celular e os genes que o controlam. Foi só depois de sua morte, em 1995, que o meio científico começou a se dar conta do que significava sua mensagem.
Um dia você pega o metrô em Nova York. O trem enguiça na estação da rua 59, e um sujeito com um boné dos Yankees espirra em cima de você. Uma semana mais tarde, você sente um calafrio no trabalho e um princípio de resfriado. Volta para casa de táxi, fungando, amaldiçoando o metrô e reconstituindo a cena: o suspeito de boné; o assento vazio entre vocês dois, o que já deveria ser indício de alguma coisa; a barra de metal um pouco úmida que você jamais devia ter tocado. Mas você não pensa nos outros seis passageiros que também foram atingidos pelo espirro. Nenhum deles ficou doente.
Este é o “problema do denominador” na medicina. O numerador é você – a pessoa que adoece. O denominador são todos os expostos ao risco, inclusive os outros passageiros próximos ao sujeito que espirrou. Se é fácil estudar os numeradores, o mesmo não ocorre com os denominadores. Os numeradores procuram os consultórios, congestionados e infelizes. Fazem exames de sangue e saem com prescrições. Os denominadores vão para casa, esquentam o jantar e veem tevê. O numerador permanece. O denominador desaparece.
Por que os denominadores não adoeceram? A exposição ao agente patogênico foi a mesma, os hospedeiros é que eram diferentes. Até o termo “agente patogênico” gera incompreensões. Um agente patogênico é definido pela capacidade de provocar uma doença. Mas tal atributo não lhe é inerente: exprime uma relação, uma interação com o hospedeiro. Ruslan Medzhitov, imunobiólogo da Universidade Yale, passou boa parte da vida estudando as interações entre hospedeiro e agente patogênico. “Você pode inocular o mesmo vírus em vários hospedeiros e obter reações extremamente diversas”, diz ele. É o solo que determina a natureza da doença.
Isso nos leva de volta ao paradigma da detecção precoce. Vamos supor que seria possível instalar sensores nas pessoas, aparelhinhos que esquadrinhassem o sangue à procura de células tumorais circulantes, realizando uma “biópsia líquida” permanente. Poderíamos detectar tumores mais cedo do que nunca. No entanto, como os médicos de Seul, também poderíamos tratar desnecessariamente muito mais cânceres do que nunca. Afinal, as células tumorais em circulação se mostram capazes de prenunciar o câncer metastático em alguns pacientes, enquanto em outros as metástases talvez nunca ocorram. E por que não? A resposta de ontem dizia que o câncer em questão não era o tipo certo de invasor. Mas a pergunta de hoje é: não deveríamos procurar pelo tipo certo de hospedeiro?
Poucos meses atrás, atendi uma mulher de 40 anos que entrou no consultório em pânico. Para tratar a endometriose, submetera-se a uma histerectomia e os patologistas encontraram em seu útero um sarcoma raro, maligno, alojado no tecido – um tumor tão pequeno que não teria sido detectado em nenhum exame de imagem pré-operatório. Ela havia consultado um ginecologista e um cirurgião, que lhe recomendaram um procedimento agressivo para remover os ovários e todo o tecido adjacente – uma ação radical com inúmeras consequências de longo prazo. Depois que esses tumores se espalham, não há mais nada a fazer, afirmaram seus médicos. Pacientes com tais sarcomas tendem a ter prognósticos sombrios, e a maioria sobrevive apenas de dois a três anos após o surgimento dos sintomas.
No entanto, eu disse à paciente que estávamos diante de um cenário diferente: o tumor fora detectado incidentalmente. Ela não apresentava sintomas nem sinais de câncer. Se tomarmos como amostra 10 mil mulheres assintomáticas, não teremos ideia de quantos tumores malignos podem ser encontrados por acaso. Tampouco teremos ideia de como esses tumores – os encontrados por acaso – se comportam na vida real. Será que as alianças entre as células tumorais dessa mulher e as de seus tecidos desencadeariam uma disseminação metastática generalizada? Ou conteriam naturalmente o crescimento do tumor, impedindo sua propagação? Ninguém sabe. Tendemos a incorrer em erro se tivermos aversão ao risco. Deixaremos de saber o que poderia acontecer se optássemos por não fazer nada. Era um problema clássico de “denominador”, mas a minha resposta parecia mais insatisfatória do que nunca.
Ela olhou para mim como se eu fosse louco. “Será que o senhor não faria nada se alguém encontrasse um tumor assim numa parte do seu organismo?”, perguntou. E decidiu submeter-se à cirurgia.
Anna Guzello tomou a decisão oposta, como fiquei sabendo ao procurar sua oncologista, Katherine Crew. Ela optou pelo bloqueador de estrogênio tamoxifeno, mas recusou a quimioterapia e mesmo o trastuzumabe. Infelizmente, a médica não conseguiu prever com algum grau de confiança o que viria a acontecer.
Por décadas, pensávamos que havia algo de aleatório em adoecer, como num lance de dados: nossos “denominadores” – ou seja, os indivíduos que apresentam um risco de contrair a enfermidade – poderiam ou não cair doentes. Isso é verdade. Mas o que Ruslan Medzhitov chama de “novas regras de comprometimento dos tecidos” pode nos ajudar a entender por que tantas pessoas expostas a uma doença não a contraem. O imunobiólogo acredita que nossos tecidos têm “regras estabelecidas pelas células que se comprometem e se aliam com outras células”. A fisiologia é o produto dessas relações. Consideremos nosso problema do denominador interno. Cada organismo contém dezenas de trilhões de células, das quais uma grande proporção se divide, quase sempre de maneira imperfeita. Não há motivo para imaginar que exista uma escassez no suprimento de células potencialmente cancerígenas, mesmo em pessoas de saúde perfeita. O que Medzhitov defende é que as células cancerígenas só formam um câncer – só se estabelecem e se multiplicam – quando conseguem estabelecer alianças com as células normais.
Isso quer dizer que, quando pensamos nas doenças em termos de ecossistemas, somos obrigados a nos perguntar por que certas pessoas não adoecem. Entretanto, a postura dos ecologistas – para quem tudo decorre da relação entre um conjunto complexo de fatos – é frustrante, pelo menos sob a ótica dos médicos. Conversei com Anthony Ricciardi, professor de ecologia na Universidade McGill, em Montreal. Ele é biólogo e cresceu às margens do lago Saint-Louis, que nasce do rio São Lourenço – região habitada pelos mexilhões que produziram sua metástase nos Grandes Lagos. “Eu conhecia bem uma boa parte dos organismos que viviam no Saint-Louis, onde brinquei quando criança e que mais tarde estudei na universidade”, me contou. “Mas nunca havia visto um mexilhão-zebra. Então, em junho de 1991, quando trabalhava numa pesquisa, desemborquei uma pedra e lá estava um deles agarrado a ela. Precisei de alguns segundos para reconhecer o que era aquilo. Depois, encontrei mais alguns – e tive uma premonição da invasão que estava prestes a acontecer.”
Perguntei se aqueles mexilhões de água doce se tornavam hiperativos quando chegavam aos lagos americanos. “O que ocorre é uma série de lances de dados”, respondeu o professor. “A maioria dos organismos introduzidos em ambientes novos não vai prosperar e acabará morrendo, muitas vezes porque chegou ao lugar errado na hora errada. Durante anos soltaram piranhas no nosso lago, mas elas não vingaram porque a temperatura não lhes convinha. Também soltaram outras espécies marinhas, como linguados, mas a salinidade da água não se mostrou adequada a eles.” Sua linguagem, e mesmo o tom de sua voz, lembravam incrivelmente os de Joan Massagué – ele poderia estar descrevendo as ondas de morte celular durante o processo de surgimento de uma metástase. “Não existe um fator único, mas uma série de fatores que determinam como e por que os mexilhões prosperaram aqui.”
“No fim das contas, o senhor diria que a temperatura da água foi decisiva?”, indaguei. “Ela foi um dos fatores. A química da água também deve ter contribuído”, me disse Ricciardi. “No caso, uma combinação entre a temperatura e a salinidade?”, prossegui. “Mas também o teor de cálcio, que tem muita importância”, ele completou.
Acrescentei mais esse tópico à minha lista: temperatura, salinidade, teor de cálcio… Ele voltou à carga: “E o fato de não haver nenhum predador bem-adaptado. Os peixes nativos desses lagos nunca se alimentam daqueles mexilhões. Nem a maioria dos patos.” “Patos?”, perguntei. Ele suspirou, como se precisasse explicar a uma criança um teorema de alta complexidade. “Existem muitos fatores que contribuem para o fenômeno, embora alguns sejam claramente mais importantes do que outros. Tudo está ligado a probabilidades. Tudo depende do contexto.”
Para um geneticista especializado em câncer como eu, aquele era um exercício de frustração constante. Toda vez que eu tentava isolar uma causa principal para a invasão dos mexilhões do gênero Dreissena, ele me apresentava um novo fator. Acabei desistindo.
Talvez todos tenhamos desistido. Dadas as limitações de conhecimento e recursos, é provável que nosso campo não tenha tido outra opção a não ser multiplicar os postulados, pelo menos por algum tempo, ao modo de Smithers. Foi natural que muitos biólogos especializados em câncer, diante da imensa complexidade do organismo humano, tenham concentrado a atenção exclusivamente em nosso “agente patogênico”: a célula cancerígena. A investigação da metástase parece mais promissora que a da não metástase; falando em termos clínicos, é difícil estudar quem não adoece. E nós, médicos, nos sentimos atraídos pelo modelo binário de doença e saúde: a biópsia foi positiva; o exame de sangue foi negativo; os exames de imagem não revelaram “evidência de doença”. Os germes bons, os germes maus. Os ecologistas, enquanto isso, falam de redes de nutrição, predação, clima, topografia – fenômenos sujeitos a complexos efeitos de retroalimentação, todos dependentes do contexto. Para eles, a invasão é uma equação, ou até um conjunto de equações simultâneas.
Ainda assim, no congresso da Asco em junho, às margens do lago Michigan, mesmo descontando a animação em torno das terapias imunológicas, fiquei impressionado com o fato de a pesquisa focada apenas na semente ceder cada vez mais lugar a uma investigação que também procura levar em conta o solo. Seguir adiante e adotar um modelo ecológico pode, em princípio, carecer de clareza. Mas, com o tempo, talvez nos traga uma compreensão autêntica.
No campo da oncologia, o adjetivo “holístico” transformou-se numa palavra genérica com aroma de patchuli, que autoriza a adoção de qualquer remédio popular não testado, como o chá de folhas de framboesa ou os sucos depuradores. No entanto, à medida que pesquisadores arrojados começam a estudar o câncer tanto sob o prisma do solo quanto da semente, vemos surgir os primórdios de uma nova abordagem, que nos devolveria ao sentido original de “holístico”: encarar o corpo como um todo – sua anatomia, sua fisiologia, sua rede inconcebivelmente complexa. Uma abordagem desse tipo nos ajudaria a compreender quando é que você tem um câncer e quando o câncer “tem” você. Ou melhor: poderia estimular os médicos a perguntar não só o que você tem, mas o que você é.