18ago2011 | 11h54 | Cultura

Bilhete de João Gilberto à diarista é considerado revolucionário

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BECO DAS GARRAFAS – “Socorro, por favor deixa um guisadinho de abóbora com carne para o fim de semana. Obrigado, João.” Escrito na última quarta-feira por João Gilberto e endereçado a sua diarista Maria do Socorro, a mesma de Chico Buarque e Gilberto Gil, o bilhete veio a público ontem e foi imediatamente considerado revolucionário por boa parte da crítica brasileira.

Na Folha, o crítico Roberto Kaz chamou atenção para a métrica sincopada da palavra "abóbora". "Por que João não pediu couve, espinafre ou cenoura? Carninha moída vai bem com macarrão, mas ele não pede macarrão. Por quê?", indagou o crítico, que logo respondeu: "Porque abóbora tem a dupla repetição da letra b, em contratempo, como no refrão da música ‘Bim bom’. Ao ler abóbora em síncopa de quiálteras, há a transfiguração de algo banal num dos mais belos pedidos de comida da história da MPB."

Epaminondas Veras, do Estadão, preferiu ressaltar o diálogo agônico com a tradição, “essa dialética trágica de reverência e ruptura com nossa herança musical. ‘Guisadinho’ remete a ‘banquinho’, ‘barquinho’ e ‘tardinha’, que João eternizou; mas, sobretudo, remete ao ‘peixinho’ de Vinícius, o animal que, agora, morto e transformado em guisado, está posto diante de nós como cadáver de nossas ambições civilizatórias.”

No Globo, Rodrigo Fonseca publicou uma extensa coluna a respeito da originalidade formal do recado. "João bebeu nas fontes do primeiro Godard. Do contrário, o recado terminaria na palavra ‘semana’, mas João sabe que não há obra sem autor, e então, num gesto estético visceral, ele acrescenta o seu nome ao texto. É uma arriscada experiência de metalinguagem que nada deve à autoreferência vertiginosa de Le Mépris e A Chinesa, aos quais João acrescenta, como Lars Von Trier em Melancolia e Slovat Ker-Shebahb em Ascensão e Queda do Império Otomano, de 1856, a cisão magmática de uma angústia existencial que põe em crise as certezas do espectador, reduzido a repetir, como um cão , a primeira de todas as palavras: Socorro.”

O crítico José Ramos Tinhorão foi dos poucos que não se deixou impressionar. Em ensaio publicado na revista Inteligência, ele estranhou o fato de o recado começar com a palavra Socorro. “A moça se chama Maria do Socorro. João poderia ter dito, ‘Maria’, ou mesmo ‘Maria do Socorro’. Mas não: é ‘Socorro’. Aliás: ‘Socorro, por favor’. Versificado, temos:

Socorro

Por favor

Que nada mais é do que

Help {me},

If ou please

O recado não passa de uma glosa dos Beatles. João se americanizou.” 

A Casa de Rui Barbosa confirmou a contratação de pesquisadores para estudar as mensagens deixadas por João Gilberto na secretária eletrônica do seu personal trainer, Marcão. “Há dois anos estamos debruçados sobre esse material”, explicou Wanderley Guilherme dos Santos, presidente da Fundação. “Um dos nossos alunos de doutorado está prestes a publicar um artigo sobre a prosódia de João à luz da telefonia celular. É impressionante como ele altera as quebras rítmicas em função da operadora. O famoso ‘Marcão, estalei uma costela. Melhor desmarcar. Abraços, João’, soa inteiramente diferente quando dito através da Vivo ou TIM.”

“A costela do João estala em quintas invertidas”, declarou um pesquisador da casa com acesso à gravação.

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