ILUSTRAÇÃO: PAULA CARDOSO
O lobby como antídoto
O grupo de pressão da indústria perdeu a sétima batalha seguida para o lobby dos artistas e ambientalistas na votação do “PL do Veneno” – mas a guerra continua
Uma nuvem de ambientalistas, celebridades, ruralistas, cada qual com seu lobby, foi borrifada no Congresso nesta semana, para pressionar os 27 deputados da comissão especial que analisa o projeto de lei 6.299 de 2002. O texto, que ganhou o apelido de “PL do Veneno”, propõe uma abertura ampla do uso de agrotóxicos no Brasil. O primeiro dia de audiência, terça-feira, foi o mais tenso e terminou com o adiamento da votação após doze horas de discussões, manobras regimentais, presença de artistas como Bela Gil e publicação de um documento das Nações Unidas contra o projeto. A continuação da audiência no dia seguinte também acabou suspensa após uma manhã tumultuada (durante a qual foi deixada uma mala preta de plástico, com um alarme dentro, que os ruralistas acreditaram ser uma bomba). Foi a sétima tentativa de aprovar o projeto nos últimos três meses.
“No mês passado a comissão chegou perto de votar o projeto”, disse o coordenador de políticas públicas do Greenpeace no Brasil, Marcio Astrini, que acompanha a tramitação do PL. “Mas aí houve uma semana toda de reportagens no Jornal Nacional e na GloboNews, até que os deputados desistiram.” Deu-se então um enredo conhecido em Brasília: a poeira baixou, o tema saiu de pauta – e, mais adiante, uma nova audiência foi acertada. O agendamento foi feito na sexta-feira da semana passada – segundo dia de Copa do Mundo – pela presidente da comissão, a deputada federal Tereza Cristina (DEM-MS). Em seu primeiro mandato, Cristina preside a Frente Parlamentar da Agropecuária (nome oficial da bancada ruralista, que reúne 218 deputados e 27 senadores simpáticos ao agrobusiness). Se aprovado, o texto segue para votação no plenário. “Os ruralistas precisam de 18 votos para que isso aconteça. E eles têm esses votos”, disse Astrini. O coordenador do Greenpeace convidou artistas, de Caetano Veloso a Bruna Marquezine, para gravar um vídeo contra o PL, que qualificam de “pacote de maldades contra a natureza”.
Projetos de lei potencialmente prejudiciais ao meio ambiente, como o 6.299, tramitam no Congresso desde que Brasília é Brasília. Já o acúmulo desses projetos é um fenômeno recente, iniciado no segundo governo Dilma, com a abertura do processo de impeachment, e acentuado nos últimos dois anos de Michel Temer. É um sinal da fraqueza do governo, que, sem influência no Congresso, vira alvo para grupos de pressão. As dificuldades de aprovação mostram que, até aqui, na batalha pela flexibilização do uso de agrotóxicos, o lobby da indústria vem perdendo a batalha para a pressão de artistas e ambientalistas. Um novo round está marcado para a segunda-feira, 25 de junho, quando a votação deve ser retomada.
Somente na área ambiental há pelo menos sete projetos em andamento, no Congresso, considerados temerários pelo Greenpeace. Um caso recente foi o do PL 3.729, de 2004, que tenta enfraquecer as regras para licenciamento ambiental, passando para estados e municípios o que hoje é regido por leis federais. Um empreendimento à beira de um rio, por exemplo, poderá ter que atender exigências distintas – e possivelmente mais brandas – a depender da cidade onde estará localizado. “Hoje você tem um regramento. Passaríamos a ter 27. Como ficaria a fiscalização?”, questionou Astrini. O projeto ameaçou ser votado pelo plenário da Câmara em abril. A pressão popular (campanhas na internet, manifestações em frente ao Congresso e uma carta de repúdio assinada por mais de vinte ONGs) fez com que o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), acabasse desistindo de colocá-lo em pauta.
Outro caso: o PLS 626, de 2011, do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que prevê liberar o plantio de cana-de-açúcar na Amazônia (proibido desde 2009, para evitar o aumento do impacto ambiental na região). O projeto ficou parado por dois anos, até ser ressuscitado em 2017. Em março deste ano, foi colocado para votação no plenário do Senado; acabou sendo retirado da pauta antes que se chegasse a um resultado, por pressão de alguns senadores e da sociedade civil. “Mas ele continua na marca do pênalti.”
Mas, projeto nenhum tem causado tanta reação quanto o 6.299, o do “veneno” – que foi proposto em 2002 pelo então senador Blairo Maggi, hoje ministro da Agricultura. Mais tarde, um segundo projeto de lei, o 3.200, de autoria do deputado Covatti Filho (PP-RS) foi anexado a ele. Em termos gerais, ele tenta aplicar uma lógica liberal ao processo de aprovação de agrotóxicos: diminui o controle e a burocracia, de forma a acelerar a aprovação de novas substâncias. “A lei atual já permite que você registre novos agrotóxicos”, disse Astrini. “Mas alguns princípios ativos chegam a levar oito anos para ser aprovados, porque precisam ser avaliados pelos ministérios da Agricultura, da Saúde e do Meio Ambiente.” A nova lei propõe tirar o poder de veto das duas últimas pastas, e deixa essa prerrogativa apenas, justamente, com a pasta da Agricultura – que sofre maior pressão dos ruralistas. Mais: propõe que o registro dure de oito meses a um ano, a depender do tipo de agrotóxico. Caso o processo não seja concluído dentro do prazo, a substância ganha uma licença provisória, e fica apta a ser utilizada. Técnicos do Ministério da Agricultura já avisaram que o prazo para o registro é inviável.
E se a substância for cancerígena? Pior para o câncer. A legislação atual diz que produtos comprovadamente cancerígenos não podem ser registrados. O PL estuda permiti-los, desde que ofereçam “riscos aceitáveis” – esses riscos, porém, não são especificados no projeto.
Os defensores do PL 6.299 afirmam que as mudanças são necessárias para “atualizar” a legislação sobre agrotóxicos, que data de 1989. Uma porta-voz desse grupo, na sociedade civil, é a advogada Silvia Fagnani, de 36 anos, diretora-executiva do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal – um dos principais grupos de lobby pela aprovação do PL, que reúne 35 empresas produtoras de pesticidas. “Às vezes, para chocar, em tom de brincadeira, eu me apresento às pessoas como lobista da indústria de agrotóxicos”, ela disse, numa entrevista recente à revista Plant Project, que cobre o agrobusiness. “É a pior imagem que uma pessoa pode ter.”
“A indústria é malvista por causa da falta de informação”, disse-me Fagnani, pouco antes de ir ao Congresso para acompanhar a votação do PL. “Talvez seja até por culpa nossa, por falarmos uma língua mais técnica.” Ela disse que o objetivo da nova lei não é necessariamente aprovar mais agrotóxicos: “É o de aprovar produtos mais modernos.” E fez uma analogia: “Com o tempo as bactérias ficam resistentes aos antibióticos. A mesma coisa acontece com o pesticida, que nada mais é do que um remédio para planta.”
O grupo de pressão da indústria de agrotóxicos defende que concentrar todo o processo de aprovação apenas no Ministério da Agricultura eliminaria “vícios de procedimento” que seriam repetidos pelos três ministérios. Fagnani afirma que a definição do que vem a ser um “risco aceitável” vai constar num decreto posterior à promulgação da lei. “Não tem como descrever esses detalhes agora; eles não cabem num texto de lei.” Quanto ao prazo de um ano para aprovação de novos agrotóxicos, ela contemporizou. “Um ano de fato talvez não seja razoável. De dois a três anos seria um prazo bom. Falamos com o deputado Luiz Nishimori [relator do projeto, do PR do Paraná] para que ele trabalhe nisso.” Na sexta-feira anterior à última tentativa de votação, 15 de junho, o deputado publicou um substitutivo alterando o tempo de avaliação de um tipo de agrotóxico para dois anos. O restante continua como estava. Quatro dias depois, o Ibama publicou uma nota avaliando as mudanças. Manteve a posição contrária à aprovação do projeto, sob o argumento de que a versão atual “não traz alterações significativas”.
“O Ibama vai continuar contra, mesmo se mudarmos todo o relatório”, disse o deputado Covatti Filho, autor do segundo projeto, anexado ao PL 6.299. “Já virou uma questão ideológica.” Perguntei-lhe se a pressão da sociedade civil e da imprensa era desmesurada. “Que sociedade civil?”, rebateu. “Perante minha comunidade no Rio Grande do Sul o projeto está sendo muito bem recebido.”
Hoje, são mais de 430 agrotóxicos permitidos para uso no Brasil. A tentativa de aumentar essa lista coincide com um mercado internacional cada vez mais restritivo. A Europa, por exemplo, proíbe o uso de 22 dos cinquenta princípios ativos mais utilizados aqui. “Acabou de ter também uma restrição grande na China”, disse Astrini. “Em paralelo, como o Brasil é um dos maiores produtores de alimento do mundo, aqui continua tendo mercado.”
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