ANDRÉS SANDOVAL_2018
One, two, three
Um professor de massagem cego
Roberto Saraiva | Edição 142, Julho 2018
O polegar do massagista percorre o litoral do mar Adriático até o golfo de Veneza e chega às montanhas Dolomitas. Ele abre um sorriso enquanto ergue os olhos e relaxa os ombros. Sinchai Sukparset adora receber presentes como o prato decorado em alto-relevo com o contorno da Itália. São bons para enxergar.
“Às vezes meus alunos me dão mapas, mas não consigo entender nada”, conta tateando uma gaveta até encontrar um. “Por isso peço para não me darem nada de papel.” Suas prateleiras estão lotadas de objetos de formas variadas, cheios de texturas e recortes, vindos do Laos, das Filipinas, da Alemanha e de outros países onde ele nunca esteve ao longo de seus 74 anos – mimos dos estudantes que viajaram até Chiang Mai, a capital da massagem tailandesa, para ter aula com o professor cego.
Sukparset põe uma das mãos sobre a mão de uma alemã que está treinando com um jovem francês. Com as palmas da mão, a estudante faz movimentos circulares nas costas do colega. O professor quer garantir que a pressão esteja certa. Sua outra mão toca as costas da alemã e dá notícia de como ela está sentada. Um, dois, três, ele entoa em inglês, baixinho, antes de seguir em frente. Sukparset é adepto de uma massagem sem óleo, que se serve apenas do peso do corpo para pressionar linhas e pontos específicos dos músculos. Estão todos vestidos, como determina a pudicícia tailandesa.
Uma doença, que o professor não sabe dizer qual foi, tirou sua visão quando ele tinha 2 anos. Depois de passar a infância e a adolescência em Chonburi, sua cidade natal, a uma hora e meia de Bangcoc, Sukparset terminou o ensino médio na capital. Queria seguir para a universidade e estudar medicina, mas acabou fazendo a contragosto o curso de massagista da Escola de Cegos do Hospital de Lerdsin. E uma vez lá se interessou pela arte milenar tailandesa.
O convite do Hospital Universitário de Chiang Mai, no norte do país, a 800 quilômetros da capital, veio logo depois. Num exemplo que ilustra bem como medicina e massagem se confundem na Tailândia, Sukparset tratava de pacientes que haviam perdido a mobilidade – dos menos afetados àqueles com paralisias e sequelas de derrames. Ele era o único cego da unidade e, já meio celebridade no local, virou professor dos médicos. Saiu de lá 37 anos depois, aos 58.
As aulas coletivas de duas horas ocorrem na sua casa. O professor fala pouco, evita as digressões e parábolas comuns a mestres orientais. Um dos maiores ensinamentos que seus alunos recebem é simplesmente contar até três e relaxar. “Braços e mãos tensas resultam em massagem ruim”, ele gosta de dizer. O francês agora pratica com o antebraço nas costas da colega alemã. Depois de três semanas visitando o velho mestre todos os dias, mesmo quando respira o aluno conta até três. Entediado com a repetição em inglês dos números, ele arrisca um espanhol, piscando para a senhora italiana no colchão ao lado.
Cinco décadas de massagem usando as técnicas tradicionais não foram gentis para os polegares do professor, hoje tortos pela artrite. “Comecei a usar o antebraço nos músculos grandes, as mãos não dão mais conta depois de muito tempo.” O improviso gerou uma técnica que ele batizou de “mecânica corporal”: o massagista fica sentado ao lado do cliente e se inclina sobre ele, pressionando-o com os antebraços.
Sukparset se move com desembaraço pela sala, que dispõe de três colchões e uma maca de massagem. É fácil esquecer que ele é cego, ainda mais quando senta e chama três estudantes pelo nome. Ao francês juntam-se uma israelense e uma japonesa e todos praticam uma mistura de técnicas de percussão nas pernas e nos ombros do professor. Gargalhadas ecoam pela sala.
Ele é um dos muitos massagistas cegos de Chiang Mai, mas poucos dão aula com a mesma técnica. A crença de que a privação da visão aumenta a sensibilidade das mãos é tão forte que existem casas de massagem só com terapeutas deficientes visuais (na Coreia do Sul há uma lei que institui que apenas os cegos podem ser massagistas).
Três chiuauas invadem a sala latindo e abanando o rabo, seguidos por uma senhora de 1 metro e meio, de saia longa, blusa de manga comprida, óculos, maquiagem pesada e cabelo armado. Junya Gun La Tom serve chá, frutas e o típico arroz tailandês com calda de coco e manga. Após três viagens para trazer tudo, ela murmura algo para o marido em tailandês com voz áspera de fumante e sai. Toda sorrisos, só voltará ao final da aula para cobrar os 600 bahts (cerca de 67 reais) dos alunos. É hora do intervalo, mas Sinchai Sukparset se faz também de surdo até garantir com um grunhido de aprovação que todos os pupilos estejam fazendo os movimentos corretamente.
Sua mulher, que na juventude cultivava tabaco nos campos do entorno da cidade, se apaixonou pelo massagista ainda no Hospital Universitário de Chiang Mai. Casaram e tiveram dois filhos. Aos 67 anos, Mama Sinchai, como é conhecida, é fundamental para o funcionamento da escola. Busca alunos e clientes de carro e os leva de volta ao Centro da cidade. Se precisar, também bota a mão na massa, tudo sem arranhar uma palavra de inglês.
“As mãos dela são fortes, mais que as minhas. Muitos gostam”, derrete-se Sukparset. O casal fez um curso de massagem para pé e outro de aplicação de trouxa de ervas medicinais, mas só ela segue praticando. “Acho chata a massagem para pé, e muito quente a trouxa nesse calor”, justifica o mestre.
Um som de buzina de bicicleta interrompe o silêncio da sala, anunciando o fim da aula. Era Mama Sinchai apertando uma galinha amarela de plástico, o mais novo presente, dado pela aluna alemã. Substituiu de imediato a infinitamente mais discreta caixinha com som de mugido de vaca que um estudante suíço havia levado.
A mulher do professor se aproxima de fininho do marido e buzina em seu ouvido, como quem dá um susto. Ele contra-ataca, rouba o brinquedo e o aperta na direção dela, também ele rindo seu riso encabulado de menino. Os alunos param para observar. Alheio, o casal brinca feito criança.