ANDRÉS SANDOVAL_2018
Asfalto, não!
O paladino da pavimentação
Bernardo Esteves | Edição 142, Julho 2018
Numa manhã recente, o engenheiro Saul Birman caminhava pela rua Duvivier, em Copacabana, a alguns quarteirões de casa, quando se deparou com uma operação tapa-buracos. Interrompeu o passeio para observar e deu um palpite: “Essa emulsão não está muito aguada, não? Vai botar a massa direto assim?” Um dos operários, estranhando o comentário enxerido, esclareceu que a mistura era daquele jeito mesmo. Para Birman, estava tudo errado. “Em uma ou duas semanas vai ceder de novo”, vaticinou ao repórter, ao relembrar o episódio em seu apartamento. “Se não fizer direito vai ter consequência, como em qualquer coisa na vida.”
O engenheiro falava com conhecimento de causa. “Faz quase 64 anos que trabalho só com asfalto”, afirmou, satisfeito. Em seguida corrigiu-se: “Com pavimentação asfáltica.” Imprecisões vernaculares o deixam contrariado. “O vulgo chama de asfalto essa coisa preta que se vê nas ruas, mas isso é uma estrutura”, disse. “Mistura de cimento asfáltico com pedra, areia, cal, cimento e vários outros produtos”, continuou. “Lamentavelmente, a palavra ficou deturpada.” Onde os leigos enxergam um pavimento simples e homogêneo, o especialista identifica uma complexa sucessão de camadas de diferentes composições: “É como um edifício.”
Birman é um homem esbelto que não aparenta seus 83 anos. Fez carreira como funcionário do extinto Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, o DNER (atual DNIT), onde se especializou no controle da qualidade da pavimentação; também deu aula no Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio de Janeiro, o Cefet-RJ, e escreveu manuais técnicos como As Emulsões Asfálticas e Suas Aplicações Rodoviárias. Aposentou-se nos anos 90, mas continuou prestando consultoria – ele prefere “assessoria”, termo que julga menos pomposo. Tem como clientes tanto órgãos públicos como empreiteiras – entre elas, a Odebrecht e a Camargo Corrêa. “Sou conhecido no meio rodoviário”, orgulha-se.
No ano passado o perito resolveu compilar sua experiência e preparou uma edição não comercial de Histórias da Pavimentação Asfáltica por Mim Vividas, uma brochura de doze páginas em formato A5, com o registro de cenas ocorridas em suas andanças pelo Brasil e pelo mundo. Certa ocasião, por exemplo, ao visitar uma usina de asfalto, ele conheceu um operário que dispensava o termômetro para medir a temperatura da massa. “Dou uma cusparada na massa e, pelo barulho do chiado, sei quantos graus ela tem”, garantiu. Em outro momento, topou com um procedimento inadequado ao vistoriar uma obra no Rio de Janeiro. Explicou ao engenheiro encarregado que daquele jeito o asfalto duraria apenas um ou dois anos, em vez dos cinco esperados. “Nessa época o responsável será outro”, respondeu o sujeito. E o serviço seguiu adiante.
Obcecado com o rigor, Birman incomodou até mesmo alguns clientes. Certa feita, contratado pela empresa que prestava consultoria ao Departamento de Estradas de Rodagem fluminense na pavimentação da Linha Vermelha, via expressa do Rio de Janeiro, ele constatou que as empreiteiras responsáveis pelo projeto aplicavam material indevido à camada de base. E também que a usina fornecedora da massa operava em condições impróprias. “Um mês depois meu contrato foi rescindido.”
A intransigência lhe custou o encolhimento da clientela. “Hoje o empreiteiro não me chama, e o fiscal também não.” E completou, com um sorrisinho: “Só sou convocado quando há uma briga entre os dois.” Mas ele continua de olho no asfalto. Se lê uma reportagem equivocada sobre o assunto, manda um fax caudaloso para o jornal (o engenheiro não usa computador nem smartphone). Em sua ronda rotineira por Copacabana, irrita-se ao constatar que os programas de reparo do asfalto da prefeitura nunca se preocupam em avaliar a qualidade do serviço prestado. “Ninguém sabe o que está sendo feito”, disse. “Temos bons materiais, engenheiros e equipamentos, mas infelizmente não controlamos a qualidade do trabalho.”
Nem só de asfalto vive o engenheiro, porém. Desde que se aposentou, Saul Birman trocou o concreto pelo líquido: começou a praticar natação. Especializou-se no nado borboleta – o mais exigente, no qual seria mais difícil encontrar adversários. Competitivo e com tempo para treinar, enfronhou-se no mundo das provas e passou a ganhar torneio após torneio. Quando recebeu a piauí, o nadador octogenário fez questão de mostrar os mais de cem troféus e as 847 medalhas conquistadas em competições nacionais e internacionais. Os itens que ele mais preza são as medalhas que recebeu pelo segundo melhor tempo do mundo nos 200 metros borboleta na categoria de 80 a 84 anos, em 2014 e 2015.
Nem as sucessivas complicações de saúde demoveram o atleta master. Em 1991 ele teve um infarto; em 2002, um diagnóstico de hipertensão; em 2006, soube que estava com 80% de obstrução na coronária esquerda; em 2016 botou um marca-passo. Para completar, no ano passado foi detectada uma artrose degenerativa nos dois joelhos. Desde então, nada até 1 200 metros de três a cinco vezes por semana (antes, completava mais de 2 mil metros). Na última competição, um torneio estadual realizado em junho, ganhou as quatro provas de que participou. Foi o único da categoria a disputá-las – nadou sozinho. “Não tenho competidores na minha faixa etária no Brasil”, lamentou.
Sócio-atleta do Fluminense há 27 anos, no ano passado Birman integrou a equipe campeã brasileira no revezamento de 4 x 50 metros medley e no de 4 x 100 metros livre da categoria 320 anos – soma mínima da idade dos quatro integrantes do time. Sua próxima ambição é participar da categoria 360 anos, ou seja, com a idade média de 90 anos por nadador. Difícil vai ser encontrar gente para formar a equipe.
Birman espera com impaciência que o ano que vem chegue logo, quando completa 85 anos. Embora o aniversário seja só em novembro, o regulamento da natação master prevê que desde janeiro ele passe a competir pela categoria de 85 a 89 anos. “Vou ser um garoto de 84 nadando com os velhinhos”, antecipa. “É uma vantagem extraordinária.”