minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

questões do futebol

Portugal e a síndrome do “Eu tô aqui!”

No comecinho de Amor sem fim, quando acontece o acidente com o balão que dispara a história do livro, Ian McEwan dedica meia dúzia de linhas ao que ele chama de “antigo e insolúvel dilema da moralidade”, e que se resume a essa dúvida: nós ou eu.

Não sei se Cristiano Ronaldo leu Amor sem fim, mas com certeza desconhece o conflito. Para o gajo, futebol é Ele e fim de papo. Um pouco sobre isso foi visto aqui*, quando a Fifa o elegeu, pela segunda vez, o melhor jogador do mundo. Mas quando se trata de seleção portuguesa, não dá para discordar de Cristiano Ronaldo: ali só tem Ele.

| 07 maio 2014_18h07
A+ A- A

No comecinho de , quando acontece o acidente com o balão que dispara a história do livro, Ian McEwan dedica meia dúzia de linhas ao que ele chama de “antigo e insolúvel dilema da moralidade”, e que se resume a essa dúvida: nós ou eu.

Não sei se Cristiano Ronaldo leu , mas com certeza desconhece o conflito. Para o gajo, futebol é Ele e fim de papo. Um pouco sobre isso foi visto aqui, quando a Fifa o elegeu, pela segunda vez, o melhor jogador do mundo. Mas quando se trata de seleção portuguesa, não dá para discordar de Cristiano Ronaldo: ali só tem Ele.

Possivelmente em respeito aos nossos antepassados, toda vez que se aproxima uma Copa cultivamos a esperança de que Portugal irá nos surpreender, mandando a campo uma seleção capaz de bater os bonitões de sempre e trazer um sopro novo ao futebol mundial. A gente fica na torcida para que o Nani arrebente. Ou o João Moutinho. Ou o Hugo Almeida. Mas a ilusão não costuma sobreviver às oitavas de final.

Depois que o superamos, nosso rodrigueano complexo futebolístico de vira-lata ficou de herança para Portugal – e os patrícios têm cuidado dele com apuro e zelo. Ficaram com o 3º lugar em 66 e com o 4º lugar quarenta anos depois, mas nunca houve uma seleção portuguesa que jogasse um futebol arrebatador. (Não esqueci o 2º lugar na Eurocopa de 2004, mas como se tratam de portugueses, achei prudente deixar pra lá essa história de vice.)

Na Copa de 2010 a seleção portuguesa foi uma decepção, apelando para retrancas descaradas contra Brasil e Espanha. Na partida com o Brasil o zero a zero era um resultado aceitável, já que a classificava para a próxima fase. Mas no jogo com a Espanha, ó raios!, não deu para ver vantagem alguma em ser eliminada perdendo de pouco.

O personagem central desse post participou das quatro partidas portuguesas na Copa de 2010, mas só balançou a roseira quando teve pela frente a carne assada da Coreia do Norte. Entretanto, e apesar do discurso demagogo no prêmio da Fifa – agradeceu aos companheiros do Real Madrid e da seleção portuguesa –, Cristiano Ronaldo age como se o futebol fosse um esporte que se pode jogar sozinho. Pouco importa se o time ganha ou não a partida ou o título: o que interessa é quebrar recordes pessoais. Cristiano Ronaldo é um atacante espetacular, mas como diz um colega do trabalho, parece que o problema ali é falta de surra quando criança. (Calma, gente: a surra é metafórica e o tal colega de trabalho é um pai extremamente amoroso. Certos esclarecimentos fazem-se necessários em tempos politicamente corretos.)

Por falar em surra, alguém se lembra do Domingos, um zagueiro estilo pau-puro que jogou no Santos, na Portuguesa, no Guarani? Então. Brasileiro com cidadania portuguesa e jogando no futebol espanhol, Pepe é uma espécie de Domingos globalizado. Mas Pepe defende o Real Madrid, o que basta para virar um queridinho da nossa mídia. Porque agora é assim: se o cara é do Real, do Chelsea ou do Milan, vira craque em estado puro. A dupla de zaga da seleção portuguesa – Pepe e Bruno Alves – tem origem brasileira e atua em sintonia: um grita “mata”, o outro berra “esfola”. Paradoxalmente, Bruno Alves é sobrinho de Geraldo, um dos armadores de futebol mais fino que eu vi jogar e que morreu com apenas 22 anos, de complicações causadas por uma operação para retirada das amídalas.

A experiência tem nos mostrado que, mesmo quando conta com um ou dois grandes jogadores no time, acompanhados por três ou quatro eficientes coadjuvantes, a seleção portuguesa se encolhe diante dos rivais mais famosos e pouco faz além de se defender e distribuir pancada. Tomara que aqui seja diferente.

Portugal não foi bem nas eliminatórias. Ficou à frente de quem não tinha como ficar atrás – Israel, Azerbaijão, Irlanda do Norte e Luxemburgo – e perdeu o primeiro lugar para a Rússia. Na repescagem, o time formado por Cristiano Ronaldo e mais dez eliminou o time formado por Ibrahimovic e mais dez. Se os dois protagonizassem uma disputa de embaixadinhas, daria no mesmo.

A seleção portuguesa chega ao Brasil para encarar, na fase de grupos, Alemanha, Estados Unidos e Gana. Em tese não tem jogo fácil, mas como estará praticamente em casa, deve passar. Na sequência, o adversário será Bélgica ou Rússia. Dá para seguir. Dá para sonhar.

Seja como for, declaro a quem interessar possa: a não ser que volte a adotar uma retranca irritante e transforme a Copa do Mundo numa competição de MMA, Portugal é uma das seleções pelas quais eu pretendo torcer. Mesmo sendo individualista, personalista e todos os outros istas capazes de definir um dos jogadores mais egocêntricos da história do futebol, se Ele tiver sete dias de inspiração vai ser bom de ver e ruim de segurar.    

Leia também

Por que não acredito na Argentina e na Espanha

In soccer we don´t trust

Os italianos são os verdadeiros reis da milonga

O jogador que disputou três copas por três seleções diferentes

Existe arroz à grega, iogurte grego, churrasco grego. Mas futebol grego não existe

Futebol inglês: dinheiro na mão é vendaval

Le jour de gloire est terminé

Viva Chile, mierda!

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí