A hora da refazenda
Numa entrevista do início dos anos 70, Vinicius de Moraes disse que a mãe de santo Menininha do Gantois certa vez o aconselhou: “Meu filho, não pense no fim, não. Pense no começo das coisas porque do fim ninguém sabe.”
Numa entrevista do início dos anos 70, Vinicius de Moraes disse que a mãe de santo Menininha do Gantois certa vez o aconselhou: “Meu filho, não pense no fim, não. Pense no começo das coisas porque do fim ninguém sabe.” A religião cristã, com suas raízes no messianismo judaico, é imantada pela noção apocalíptica de um fim: tudo nela converge para esse fim. O candomblé, ao contrário, o poeta o descreve como uma religião erotizante que não se ocupa muito com o que acaba. Uma religião que não culpa o homem, mas procura elevá-lo pela beleza, pelos cânticos, pelas cores. “Gostaria que essa fosse a religião brasileira”, declarou Vinicius na mesma entrevista. Ele, que foi católico fervoroso na juventude, e que depois dos 40 anos aos poucos se deixou levar pelos encantos do candomblé. Ele, que vinha de uma família da alta burguesia, “maravilhosa do ponto de vista afetivo, mas com aquela carga de preconceitos”. Que se definia como um materialista que aceitava o lado mágico da existência. Que considerava a Mãe Menininha uma pessoa “do mais alto gabarito humano”, ao lado do ídolo maior, Pixinguinha, para ele um ser total, integral, “profundamente puro, inocente, lindo”, “grande gentleman”, e que, “além de tudo, teve a felicidade de ser preto”.
Num momento de tanta apreensão, medo, insegurança, rancor e ódio, a frase sábia da babalorixá baiana – “pense no começo das coisas” – tem me ocorrido com frequência. Uma poderosa “mitologia do fim” se insinua cada vez mais em filmes, livros, discos, noticiários… São muitos os fins que se anunciam, não há dúvida. Mas deveríamos concebê-los como um grande chamado ao pensamento do começo. Pois o pensamento do começo é um princípio de força criadora – um ato de amor que anula o ódio e nos alivia de todo peso, uma recondução das forças vitais para a imaginação, realização e experimentação de novas formas de vida. As águas de março anunciam o fim do caminho e ao mesmo tempo a promessa de vida no coração: falam do carro enguiçado, da lama, sem esquecer o projeto da casa que se quer construir.
Há cansaço e infelicidade por trás do ódio que aflora no país. Por vezes penso que estão ligados não apenas a ressentimentos de classe, indignações contra a corrupção política, crise econômica, ímpetos de um reacionarismo ancestral, mas também ao extenuante cotidiano das grandes cidades brasileiras, a moldar nossa vida de todos os dias. Ou, por outra, é a fadiga das cidades que amplifica decisivamente todos esses sentimentos. Conversando com amigos, percebo cada vez mais um desejo de evasão, uma vontade de fuga da cidade grande. Outrora local das oportunidades, as metrópoles parecem ter se tornado o campo de uma luta permanente pela sobrevivência – do desassossego, do acotovelamento, da falta de delicadeza, da imposição grosseira do mais forte. O espaço da descrença e do cansaço, que expulsou o pensamento do começo.
Lembro os projetos mirabolantes do arquiteto Sergio Bernardes para refazer o Rio de Janeiro: um deles compreendia a destruição de todos os prédios da orla de Copacabana para que a cidade pudesse respirar seus ventos marítimos. Lembro o conselho do antropólogo baiano Antonio Risério, autor de A Cidade no Brasil, à presidente Dilma, logo após sua reeleição – que ela se empenhasse na melhoria de vida nas cidades. Saskia Sassen, socióloga holandesa, foi ainda mais longe: declarou que esse é um excelente momento para construir novas cidades. Sim, cidades com um centro, escolas, praças, árvores, áreas livres, feitas para a escala humana do pedestre, para as bicicletas. Cidades para a humanidade do século XXI, que tragam de volta o senso perdido de comunidade. Que possibilitem uma sensibilidade mais aberta e criadora, menos agressiva e predatória. Que permitam o pensamento do começo. “Por que precisamos de megalópoles?”, pergunta Sassen.
Há pouco assisti a um vídeo sobre um centro cultural recém-inaugurado em Lumiar, uma cidadezinha no interior do Rio. O vídeo enfatizava o sentido de pertencimento daquele centro, algo que diz respeito a todos e toca no fundo da vida comunitária. Isso significa um enfraquecimento, por vezes total apagamento, da fronteira entre espectador e participante. Uma integração da vida coletiva que, no caso de Lumiar, significa também uma nova integração da cidade com a fazenda. Uma visão holística, em tudo diferente do individualismo de massas que vingou nas grandes cidades. Propícia ocasião para o pensamento do começo, que tudo quer refazer.
Talvez seja isso: talvez seja a hora da Refazenda, a hora em que devemos nos tornar novamente fazedores ou refazedores do mundo, abandonar a posição de espectadores indignados. Não à toa, era essa uma das canções que compunham a trilha do vídeo. Imagine Refazendas surgindo pelo extenso território brasileiro, unindo o mais simples ao mais sofisticado, desafogando o inferno das grandes cidades, reunindo os jovens mais brilhantes de uma geração massacrada pela economia, ampliando o contato dos humanos entre si e com a natureza, nos reconectando com o cosmo, nos tornando mais uma vez senhores do próprio destino, refazendo tudo… Soa a utopia romântica, e talvez seja. Mas não faz mal nesse momento de embate desesperado com a realidade.
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