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Bach e o prazer infinito da repetição

A presença da música de Bach ilumina com um clarão de afeto a existência árida e fria

Paulo da Costa e Silva | 19 fev 2016_15h38
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Vi recentemente dois filmes que traziam na trilha sonora músicas de Bach. O primeiro foi Shame (2011), de Michael Fassbender, que traz a história de um personagem viciado em sexo. Mas não é apenas sobre compulsão sexual que fala o filme: fala, sobretudo, do vazio da vida contemporânea. Isolamento urbano, trabalho alienado, escassez e incapacidade para vínculos afetivos, falta de horizontes, etc… O estímulo mecânico do sexo é o que resta enquanto prazer constitutivo da própria existência. Para relaxar (ou melhor, para estimular descargas químicas de relaxamento no corpo), o protagonista corre pelas ruas da urbanóide L.A. com seus fones de ouvido. É aí que entra a figura do velho João Sebastião (como o chamava Vinícius de Moraes), ou da “velha peruca” (como o chamavam seus filhos). O contraste é poderoso, dando um belo exemplo de utilização musical precisa no cinema, com amplos significados narrativos. Tudo aquilo que o protagonista de Shame desconhece em sua vida, ele encontra nas composições de Bach. A presença da música de Bach ilumina com um clarão de afeto aquela existência árida e fria. A peça que “aparece” no filme é a ária das Variações de Goldberg. Um movimento lento que atravessa a raiz do cabelo. Lembro de um documentário sobre o pianista Glenn Gould – o arqui-intérprete de Bach – no qual uma senhorinha anglofônica dizia ter sido literalmente salva por essa peça. “Essa música salvou minha vida”, disse ela, ou algo do gênero…

Voltando ao filme Shame, em determinado momento a mesma composição cobre a cena de uma orgia. Estranha mistura: Bach fundindo-se com Bacho. Sentimos uma compaixão luterana por aqueles corpos que se contorcem desesperadamente. Na excitação captamos a dor de nossa precária condição. Diante dessa junção de som e imagem é difícil não pensar na sombra de uma condenação moral antiga – no modo como a cultura americana muitas vezes converteu o “sexo reprimido” em “sexo triste” (talvez, no fim, uma repressão ainda mais sutil e eficaz).

O outro filme que recentemente vi, e que tem a obra de Bach como eixo sonoro, é o incrível O evangelho segundo São Mateus (1964), de Pier Paolo Pasolini. De fato, o cineasta italiano não brincou em serviço: pegou a mais alta obra musical sobre a vida de Jesus, a Paixão de São Mateus, de Bach, para embalar lindas imagens em preto e branco, contando a sublime vida do pregador da Galiléia. Estamos no território dos corais de Bach. O filme de Pasolini usa, sobretudo, as triunfais árias de abertura e a de encerramento – a inacreditável Wir setzen uns mit Tränen nieder. Não conheço nada maior. Vai além do emocional: alcança o espiritual. É como se alguém tivesse tocado, assim, com muita simplicidade, no cerne da condição humana.

https://www.youtube.com/watch?v=0B2hMKro0Fo

Bach foi uma paixão relativamente recente em minha vida. Mas desde então, não consigo parar de ouvi-lo. Há anos ouço quase toda semana aos Concertos de Brandenburgo – dependendo da época, quase todos os dias. Neles, Bach é ao mesmo tempo superficial e profundo. Melhor dizendo, sua profundidade não tem peso, e tende a se confundir com a própria superficialidade da vida cortês que ele conhecia tão bem. Sua profundidade acolhe a superficialidade como parte de uma única coisa. Os Concertos me trazem um sentido de harmonia interna, de conexão com o mundo ao redor, com o próprio fluxo da vida, a noção perfeita de um equilíbrio alcançado no movimento. Ao ouvi-los sinto-me ao mesmo tempo mais centrado e mais fora de mim. Vejo-me com maior nitidez porque estou mais distante de mim mesmo. É estranho como isso é reconfortante. Bach é misterioso.

E ainda mais misterioso é o fato de que não me canso de escutar a esses mesmos concertos, em eterno ritornelo. Não conheço outra música que melhor resista ao fastio da repetição. Li recentemente que neurocientistas descobriram que a música contrapontística de Bach provoca um efeito diferente das demais no cérebro humano. Mesmo entre músicos treinados ela é capaz de causar uma forte e incomum ativação do hemisfério direito do cérebro. A explicação dos cientistas é de que o longo desenho dos contornos melódicos que se entrecruzam nas composições de Bach precisam ser sustentados simultaneamente em nossa consciência, exigindo uma maior capacidade (do hemisfério direito) de segurar a experiência na memória recente. Outra explicação estaria da impossibilidade de captar todas as partes de tal música em sua integridade, de modo que ela jamais seria experimentada da mesma maneira em audições diferentes. Uma vez que nunca pode ser inteiramente capturada, permanecerá para sempre nova. Não uma maquininha repetitiva, mas um organismo vivo, que encerra em si o mistério da própria existência.

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