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Lullaby

No princípio de tudo está a voz materna. Antes mesmo de nascermos já reconhecemos a voz do ser que nos carrega. Através das paredes do útero começamos a filtrar os sons externos, do mundo lá fora, e a partir da voz da mãe começamos a imprimir em nosso ser os contornos melódicos da fala.

Paulo da Costa e Silva | 11 jun 2014_15h13
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Foto: National Geographic

No princípio de tudo está a voz materna. Antes mesmo de nascermos já reconhecemos a voz do ser que nos carrega. Através das paredes do útero começamos a filtrar os sons externos, do mundo lá fora, e a partir da voz da mãe começamos a imprimir em nosso ser os contornos melódicos da fala. Essa absorção da sonoridade pura da fala será, mais tarde, a via de desenvolvimento da linguagem. Nessa fase, somos seres aquáticos, imersos em tépida substância líquida. Os sons que escutamos são sons úmidos, impregnados de água. Depois, saímos do casulo e os sons se tornam, sobretudo, aéreos. Mas ainda assim conservam uma relação com a água, pois a natureza mantém um microaquário em nosso ouvido interno. Ele é que vai amplificar as levíssimas vibrações do ar – transformadas em minúsculas ondas pelo movimento de membranas que agitam nossas águas interiores – e fazer com que sejam captadas por delicados cílios formados de células nervosas. Os cílios transmitem um impulso elétrico que será interpretado pelo cérebro como sensação. Há uma transição contínua entre ar, água e eletricidade: uma dinâmica de tempestade. A sensação sonora nasce de uma intenção molhada acionada pelos movimentos do ar.

O mais importante, contudo, é que sendo um sentido vibrátil de pele, a audição é também um tipo de “toque”. Escutar é “apalpar” a vida; sentir as vibrações do espaço. É ser tocado. A voz materna que se dirige ao bebê é, sobretudo, uma carícia sonora. Algumas teorias especulam que o momento fundamental no desenvolvimento da comunicação humana foi aquele em que a mãe teve que tirar o filhote do colo e deixá-lo sozinho no chão, provavelmente para exercer alguma atividade como catar frutos. Separada fisicamente do rebento, ela mantinha a vigilância pelo olhar, o contato visual com gestos e expressões. Mas o principal sentido de presença vinha das entonações da voz: a mãe assegurando sua existência física pela emissão de “carícias sonoras”. Mãe e filho desenvolvendo uma comunicação pré-lingüística, feita de contornos melódicos que mimetizavam as interações corporais, transmitindo com sutileza os estados de ânimo, as intenções mais recônditas de cada um. Representações diretas, ainda sem simbolismo, marcadas por gestos icônicos, movimentos de corpo e sons. Se hoje muitas vezes não conseguimos perceber a riqueza desse tipo de comunicação, se somos algo insensíveis às sutilezas dos gestos e às sugestões emocionais do som, é porque nos tornamos excessivamente dependentes de palavras.

O naturalista alemão Ernst Haeckel escreveu que a ontogenia nada mais é do que a recapitulação curta e rápida da filogenia. Ou seja, o desenvolvimento de um bebê recapitularia de modo muito resumido o percurso evolutivo da espécie humana. Adotando essa premissa poderemos, talvez, escutar na comunicação entre mãe e bebê os ecos remotos da origem da música e da linguagem. Teríamos feito um percurso semelhante ao dos recém-nascidos, que se tornam primeiro engajados com as entonações prosódicas e as melodias de suas línguas, e só depois começam a assimilar o conteúdo proposicional. Inicialmente entrelaçadas em uma entidade única – que alguns teóricos chamam de “musilíngua” –, de duzentos mil anos pra cá música e linguagem começaram um longo processo de separação. A linguagem se desenvolveu na direção do pensamento simbólico, abstrato, subdivido em pequenas unidades de sentido, as palavras. A música ficou com a expressão emocional mais direta, mais profundamente entranhada no corpo, na forma de “gestos audíveis”, e tendo como unidade mínima de sentido não as palavras, mas frases inteiras. Um sentido, portanto, necessariamente mais abrangente e contextual do que o distanciamento generalizante das palavras. Ao mesmo tempo, mais específico, quando se trata não de indicar objetos no mundo, mas de transmitir estados de alma. Como escreveu Nietzsche, “comparada com a música toda comunicação por palavras é desavergonhada; palavras diluem e brutalizam; palavras despersonalizam; palavras tornam o incomum comum”.

A separação entre linguagem e música, contudo, jamais foi completa. Há uma melodia de fundo em nossa fala, que aquece as palavras. Um paciente que perdeu a capacidade de processar tal melodia, descreveu como as palavras tornaram-se para ele “vazias e frias”. Sem o elemento prosódico, sua fala tornou-se monótona e sem emoção. Na comunicação entre mãe e bebê essa melodia de fundo ganha novamente o primeiro plano, aproximando a linguagem da música. Tal aproximação ocorre de modo intuitivo: naturalmente os pais calibram as vozes, musicalizando a fala para desenvolver emocionalmente o bebê. Qualquer que seja o país do qual viemos e qualquer que seja a língua que falamos, nós alteramos nossos padrões de discurso essencialmente da mesma forma quando “falamos” com recém-nascidos. Aqui, a melodia é a mensagem.

No entanto, nada oferece tanto reconforto ao bebê quanto a voz materna que canta. Os recém-nascidos demonstram uma resposta fisiológica maior ao canto materno do que à sua fala. Quando embalados por ele alimentam-se melhor, tornam-se mais seguros de si, menos ansiosos. As cantigas de ninar ou acalantos, que na língua inglesa tem o simpático nome de lullaby, são de fato um elemento central na criação de uma atmosfera de cuidado, de um território familiar. Parece haver um princípio universal aqui, algo que religa todos os seres humanos, e que se expressa no surpreendente grau de uniformidade nas melodias, ritmos e andamentos dos lullabies feitos ao redor do mundo. Na comunicação entre mãe e bebê adivinhamos os vestígios de uma origem comum, de um remoto passado pré-lingüístico – o local de nascimento da própria cultura. Um passado profundamente emocional, emanando sua doçura amorosa em delicadas carícias sonoras. No canto materno está a chave de nossa humanidade.

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