Memórias, angústias e decepções
Nos anos 70, eu costumava frequentar a discoteca da Lapa, na rua Catão. Pegava um ônibus em Pinheiros e ia até aquele bairro bem arborizado, onde as casas não eram geminadas, como em Pinheiros. Ali eu sempre sentia um pouco mais de intimidade com o espaço urbano, como se estivesse nas cercanias de minha casa, no interior.
Por eu frequentar a discoteca fora dos horários de grande fluxo, fazia sempre um percurso tranquilo. Assim, sentado no banco do ônibus, apreciando o verde calmo das árvores, eu serenava um pouco.
Nos anos 70, eu costumava frequentar a discoteca da Lapa, na rua Catão. Pegava um ônibus em Pinheiros e ia até aquele bairro bem arborizado, onde as casas não eram geminadas, como em Pinheiros. Ali eu sempre sentia um pouco mais de intimidade com o espaço urbano, como se estivesse nas cercanias de minha casa, no interior.
Por eu frequentar a discoteca fora dos horários de grande fluxo, fazia sempre um percurso tranquilo. Assim, sentado no banco do ônibus, apreciando o verde calmo das árvores, eu serenava um pouco.
Vivia com minha consciência atormentada, por haver escolhido fazer música. Afinal, se tinha tantas dúvidas, porque havia me metido nessa enrascada? Nunca fui bom músico. E, embora me soubesse capaz de compor, quantos não haveriam pelo mundo com capacidade igual a minha? O Mario Lucio, por exemplo, era visivelmente mais musical do que eu. Se nem ele havia se arriscado nessa empresa temerária, por que haveria eu de me enfiar naquilo? Por quê?
Com certeza, seria punido pela minha pretensão. Me sentia vagando por um mundo incerto, aguardando, apreensivo, o momento em que o dedo do destino surgisse para apontar meu erro, para fulminar minhas expectativas!
Eu vivia assim, com esse estado de espírito. Então, era bom quando podia apenas, olhar para as árvores, com a esperança de conseguir um bálsamo, algum alívio.
As copas oscilando suavemente, aqueles delicados borrões verdes, tão gentis, aquilo arrefecia um pouco, fragilmente, a mordedura de minha consciência.
Para aquela angústia, porém, não havia narcótico possível, ela nunca seria eliminada. Nunca mais. Como o protagonista do “Corvo” de Edgard Allan Poe, eu podia clamar em vão por um nepente (espécie de narcótico da antiguidade).
Sally Burgess Live at the Almeida London c. Richard Bernas, d. Mike Ashman
Jamais esqueci a primeira vez que ouvi Pierrot Lunaire, de Arnold Schoenberg, na discoteca da Lapa. Essa obra, tão célebre nos livros de história da música, colocada, ao lado de A Sagracão da Primavera de Stravinsky, como obra seminal da música do século XX, que, ao contrário da Sagração, não era encontrada facilmente. Não havia sido prensada no Brasil, portanto as gravações eram encontradas apenas em discos importados, caríssimos, inacessíveis.
Um dia fiquei sabendo que havia uma discoteca pública, na Lapa, criada em 1935 por Mario de Andrade. Existia lá uma enorme coleção de discos e partituras. Eles tinham um gravação do Pierrot Lunaire, em 78 rpm. Para ouvi-la, bastava se associar à discoteca, assim como numa biblioteca pública. E não era cobrado nenhuma taxa, tudo de graça.
Imaginem minha alegria, por ter acesso a essa obra, que se oferecia, assim, gratuita a meu engenho.
Pois bem, minha alegria, foi quase igual à minha decepção, quando ouvi o primeiro dos 78 rpm contendo o Pierrot Lunaire! Não entendi nada! O que era aquilo? Não conseguia perceber beleza alguma ali, nem musicalidade, nem nada!
Não conseguia perceber a “lógica” da organização daquele “estranhamento”. A lógica que, por exemplo, eu percebia em Bartok, quando ele, parecendo profetizar o surgimento do rock, escreve em 1927, o 5º movimento (Allegro molto) do seu quarteto nº4
Bartok String Quartet No. 4 – Allegro molto – Carducci String Quartet
Ao final de 1978, assisti a primeira apresentação de Pierrot Lunaire, com o poema de Albert Giraud vertido para o português por Augusto de Campos (de quem eu era muito fã desde 1971, quando li o Balanço da Bossa).
Ouvir em português ajudou muito, mas ainda demorei, e só consegui superar as dificuldades para fruição em 1996, ouvindo a gravação de Bryn-Julson com o Ensemble Moderne. Demorou.
Christine Schafer, soprano (as Pierrot) ?Ensemble Intercontemporain / Pierre Boulez, conductor
É engraçado pensar que, quase 80 anos depois, aparece o rap, que tem uma certa semelhança com o canto-falado, o “sprech-gesang” inventado por Schoenberg, que aparece pela primeira vez no Pierrot Lunaire.
Isso, em 1912, bem antes que ele criasse o sistema dodecafônico de composição. Sei que muita gente pensa que o Pierrot é dodecafônico, então é bom esclarecer: ele foi composto pelo menos 10 anos antes de surgir esse sistema.
Em 1977, (não sei porque essa lembrança está associada ao Pierrot Lunaire e a discoteca da Lapa, mas está – é como se eu lembrasse da luz solar daquele período) eu estava descendo a Teodoro Sampaio, para pegar o ônibus na Cardeal Arcoverde.
Embora a Cardeal Arcoverde e a Teodoro sejam paralelas, em um determinado momento, lá embaixo, a Cardeal faz uma curva, e atravessa a Teodoro, desembocando na Eusebio Matoso. Parece que, ao contrariar sua natureza de rua paralela, ficando subitamente perpendicular, para desaguar na Eusebio Matoso, a Cardeal Arcoverde era punida, com um congestionamento infindável.
Eu preferia descer a pé pela Teodoro, que era uma rua mais amena, entrar pela Cardeal no ponto em que esta cruzava a Teodoro e seguir até quase a Eusebio Matoso para, então, pegar o ônibus para a Cidade Universitária, já na saída do congestionamento infernal.
Bom, nesse dia, eu descia a Teodoro, e havia uma loja de discos que dava direto na calçada, uma loja simples. E vejo que havia sido lançado o novo disco do Caetano, Bicho! Como eu não podia comprar, fui ver o encarte. O que me chamou atenção foi Leãozinho. Nossa! Que letra incrível, fiquei imaginando a música…
Gosto muito de te ver, leãozinho, caminhando sob o sol / Gosto muito de você, leãozinho / Para desentristecer, leãozinho, o meu coração tão só /Basta eu encontrar você no caminho / Um filhote de leão, raio da manhã / Arrastando o meu olhar como um imã / O meu coração é o sol, pai de toda cor / Quando ele lhe doura a pele ao léu / Gosto de te ver ao sol, leãozinho, de te ver entrar no mar / Tua pele, tua luz, tua juba / Gosto de ficar ao sol, leãozinho, de molhar minha juba / De estar perto de você e entrar numa
Achava incrível que a letra terminava com: entrar numa. Era assim que Tarzan, nos gibis, chamava o leão: Numa. “Krigh-ah bandolo Numa !” Como Caetano ampliava o significado com aquela simples alusão! E a metáfora do imã, agora já tão desgastada, eu acho que a primeira vez que aparece é nessa música aí. Além disso, ainda tinha o “ao léu”, ecoando o signo Leo, leão…
Bom, a impressão causada por essa letra ficou vagando dentro de mim, com uma pujança incrível! Fiquei dias imaginado como seria aquilo cantado. Pra mim, aquilo era um negócio meio épico!
Finalmente um dia, consegui ouvir o LP Bicho, na casa de um amigo. Fui direto pro Leãozinho, serventia da obsessão.
Mas, meu Deus, que decepção! O leãozinho não era nada do que eu imaginava! Que Numa coisa nenhuma, ali a fera se desmilinguia mesmo… Tive que me adaptar àquela barbaridade com uma letra tão linda! Hoje em dia, até gosto, mas fiquei vacinado: letra de música, não é para ler, é para ouvir.
A Bethânia fez uma bonita versão dessa canção
Maria Bethania/Leãozinho
Mas ainda faço uma versão heavy-metal dessa música!
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