Guimarães Rosa se protege
Escrita em 1949, quando Rosa servia na embaixada do Brasil em Paris, (seu último posto no exterior) a carta é dirigida ao critico Roberto Alvim Corrêa, um fino apreciador e profundo conhecedor das literaturas francesa e brasileira, que foi dos primeiros a admirar a prosa de Guimarães Rosa.
O futuro grande escritor usa as três densas páginas datilografadas da carta para escapar de uma obrigação que o repugna: a de assumir uma chefia do Comitê França-América (que planejava um congresso cultural em Paris) por proposta de Alvim Corrêa.
Gênio inconteste da literatura brasileira do século XX, João Guimarães Rosa não parece ter sido, no trato pessoal, uma personalidade especialmente cativante, se devemos crer os muitos testemunhos deixados por aqueles que o conheceram superficialmente e não ficaram impressionados por sua personalidade.
Por outro lado, seus amigos mais próximos, já conquistados por seu talento, o descrevem como um homem simples e obstinado, às vezes curiosamente ingênuo e até mesmo algo deslumbrado (como no sonho de integrar a Academia Brasileira de Letras).
Muitos lembram também sua coragem (e a de sua mulher Aracy) na proteção e na concessão de vistos a numerosos judeus perseguidos pelo nazismo, quando Rosa serviu como cônsul-adjunto em Hamburgo de 1938 a 1942.
Mas estes feitos hoje justamente reconhecidos como heroicos não ajudaram a reputação profissional de Rosa em seu próprio tempo. Na diplomacia, sua carreira não era julgada brilhante pelos padrões da época. Rosa, promovido tardiamente a embaixador, confinou-se voluntariamente na pouco cobiçada divisão de fronteiras do Itamaraty, que chefiou por mais de dez anos, até sua morte, evitando cargos no exterior que não mais o interessavam.
Como adivinhar então que por trás de um diplomata modesto e de maneiras formais, sempre de gravata borboleta, havia o inventor de uma nova língua dentro da sua própria e talvez o maior criador da literatura brasileira do século XX?
Quase todos seus contemporâneos falharam em perceber sua genialidade, ainda que Rosa gozasse de alguma reputação entre seus pares desde a década de 1940. Mas foi a partir da publicação de , em 1946, e sobretudo, dez anos depois, de Grande Sertão Veredas, que uma verdadeira veneração surgiu entre os leitores mais apaixonados de nossa literatura.
É nesse contexto que a carta reproduzida nesta página adquire todo seu significado. Escrita em 1949, quando Rosa servia na embaixada do Brasil em Paris, (seu último posto no exterior) a carta é dirigida ao critico Roberto Alvim Corrêa, um fino apreciador e profundo conhecedor das literaturas francesa e brasileira, que foi dos primeiros a admirar a prosa de Guimarães Rosa.
O futuro grande escritor usa as três densas páginas datilografadas da carta para escapar de uma obrigação que o repugna: a de assumir uma chefia do Comitê França-América (que planejava um congresso cultural em Paris) por proposta de Alvim Corrêa.
Após desfilar o nome de várias personalidades que Rosa considera mais indicadas que ele para encabeçar o Congresso, e explicar em detalhes a sua pesada rotina numa embaixada com falta de funcionários, o diplomata de 40 anos só revela o Guimarães Rosa escritor no penúltimo parágrafo:
“Mas, meu caro Alvim Corrêa, agora peço, reitero, insisto, rogo, suplico, depreco, imploro, reclamo, exijo amistosamente que me ajude DESLIGANDO-ME IMEDIATA E DEFINITIVAMENTE DA REPRESENTAÇÃO E DA PARTICIPAÇÃO NO CONGRESSO E NAS FESTAS. Não veja neste meu premente pedido nem falsa modéstia, nem preguiça, nem má-vontade, nem descaso, nem desapreço, nem apatia, nem inércia, nem atitude. Já lhe falei miudamente, das circunstâncias que me levam a isso, e posso acrescentar ainda a minha absoluta inaptidão para o gênero. O Sr. sabe que sou um escritor modesto e solitário. Questão de feitio, de temperamento, de crença, de jeito, de formação, de filosofia. Estou lhe falando com pura sinceridade. (…) Na penumbra, na “sacristia”, aqui quieto, comprometer-me-ei a ajudar em tudo o que estiver ao meu alcance (desde que não me peçam para publicar artigo assinado com o meu nome, coisa que, visceralmente, não estaria ao meu alcance)”.
Ouvir daquele que muitos consideram o maior escritor brasileiro do século XX que um artigo assinado com seu nome não está a seu alcance soará hoje, quase 65 anos depois, quase absurdo. Mas sua caracterização própria como escritor “modesto e solitário” disposto a ficar “na penumbra, na sacristia” correspondem à discrição com que Guimarães Rosa se portou na maior parte de sua existência, seguro de seu destino literário antes mesmo da glória tardia, de que aproveitou plenamente apenas na última década de sua vida.
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