A força das imagens de Piripkura contribuem de modo decisivo para a grandeza do filme e o diferenciam de tantas filmagens banais já feitas em circunstâncias semelhantes
DocMontevideo – dois filmes em destaque
Piripkura e The Best Thing You Can Do with Your Life chamam a atenção no evento uruguaio
Iniciado dia 18, termina nesta sexta-feira (27) o 10º DocMontevideo, realizado com direção executiva de Luis González Zaffaroni, além de uma dedicada e simpática equipe de colaboradores. Organizado com o Instituto de Cinema e Audiovisual do Uruguai (ICAU), a Câmara Audiovisual e o Ministério de Educação e Cultura, o evento conta com decidido apoio da Prefeitura da capital e das associações profissionais de produtores e editores do país.
Como é usual em eventos similares no Brasil, a lista de parcerias, apoios institucionais e empresariais, entidades associadas, colaboradores internacionais etc. é longa. Nem por isso, porém, a cerimônia de abertura, no domingo, deixou de ser breve.
Chama atenção, ademais, em especial a um brasileiro de primeira viagem, a impressão de trabalho conjunto, somando esforços individuais e coletivos, privados e públicos, que são motivo de justo orgulho para todos os envolvidos. Fora isso, o DocMontevideo exerce visível atração para jovens produtores e diretores em busca de oportunidades para viabilizar e comercializar seus projetos.
O evento ocorre em locais próximos uns dos outros – Teatro Solis, inaugurado em 1856; Sala Zitarrosa, antigo cinema reformado, amplo e confortável, como os de outros tempos; Centro Cultural Espanha, diversos auditórios e salas –, e conta com bom público local para a Semana do Documentário, na verdade não mais do que uma dentre as múltiplas atividade promovidas no DocMontevideo, ao lado do Seminário, dos Laboratórios e Oficinas e do Mercado, que inclui pitching de projetos selecionados e oportunidades de comercialização de documentários finalizados.
Assim estruturado, fica claro que a premissa do DocMontevideo é harmonizar qualidade artística, cultural e industrial, com ênfase na busca de integração entre cinema e televisão. Sendo esse o enfoque, mesmo preservando certo destaque para a população local, a Semana do Documentário adquire dimensão humana – dezoito filmes foram exibidos este ano – e não é competitivo – o que favorece a possibilidade de relação fraternal entre os participantes – inexistente, de modo geral, em festivais competitivos. Responde assim ao gigantismo habitual que torna muitos festivais experiências frustrantes para quem não dispõem de tempo para assistir a parte significativa do cardápio completo oferecido.
Entre os filmes exibidos na Semana do Documentário, aos quais foi possível assistir durante o fim de semana passado, dois se destacaram. O premiado Piripkura (2017), de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge. E The Best Thing You Can Do with Your Life [O Melhor que Você Pode Fazer da sua Vida] (2018), de Zita Erffa, que participou do pitching DocMontevideo, em 2016, indício do sucesso dessa iniciativa.
Ao assistir Piripkura com enorme atraso, meses depois do filme ter recebido os prêmios de Melhor Documentário, no Festival do Rio, e de Direitos Humanos, no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA), ambos em 2017, e ter sido considerado este ano o Melhor Documentário no Docville, na Bélgica, não há como deixar de comentar o resultado do lançamento comercial, no Brasil, ocorrido em março deste ano, enquanto o filme percorria dezessete festivais pelo mundo afora.
No IDFA, em seis sessões, cerca de 1 700 espectadores assistiram a Piripkura. Já no Brasil, exibido em poucas sessões e horários em São Paulo, Rio, Curitiba, Salvador e Brasília, o filme teve ao todo 956 espectadores no circuito dito comercial. A exibição simultânea no canal Curta! é positiva, mas não chega a minorar o desastre.
Esse é um caso em que se pode afirmar que o resultado não é responsabilidade do filme oferecido, cuja qualidade e importância está acima de qualquer suspeita. O que esse número de ingressos vendidos demonstra é a falência da política cinematográfica no Brasil, incapaz até hoje de criar mecanismos que permitam à maioria dos filmes produzidos no país alcançar ao menos seu público potencial.
O mínimo que se pode dizer, considerando a qualidade do filme, é que Piripkura teve exibição clandestina – atentatória aos direitos do realizadores e produtores, além de desrespeitosa em relação ao público potencial que certamente existe em maior número. A responsabilidade por esse atentado cabe às distorções implementadas há mais de uma década pela Agência Nacional do Cinema (Ancine) com a conivência de produtores, distribuidores e exibidores que deveriam ser responsabilizados por sua negligência.
Retratados com sensibilidade ímpar, Pakyî e Tamandua, dois dos três únicos sobreviventes do povo indígena Piripkura, que vivem isolados no noroeste de Mato Grosso, são dois seres humanos adoráveis. Simples, afetuosos um com o outro, parecem estar se divertindo enquanto estão entre os homens brancos. E quando, no final, partem para imergir de volta na floresta, levando o fogo que vieram buscar, não há como deixar de se comover com a tragédia da qual a existência e o modo de vida de Pakyî e Tamandua nos obrigam a lembrar.
Ainda a assinalar, há a força das imagens de Piripkura, feitas por Dado Carlin e Bruno Jorge, que contribuem de modo decisivo para a grandeza do filme, diferenciando o que nos é dado ver de tantas filmagens banais já feitas em circunstâncias semelhantes.
Ao justificar a atribuição do prêmio de Melhor Documentário, o júri do Festival do Rio sublinhou o privilégio que Piripkura nos oferece de “mostrar pela primeira vez o milagre do olhar inocente de dois homens livres”.
Por sua vez, a justificativa do júri para premiar Piripkura no IDFA se referiu à “história excepcional e comovente” e “à qualidade fílmica do documentário que não deixaram alternativa senão lhe atribuir o Prêmio de Direitos Humanos de Amsterdam”.
E na Bélgica, o júri escreveu: “Volta e meia, você senta no cinema e não pode acreditar no que está vendo. O estilo do filme, baseado na observação, conseguiu reduzir a velocidade da passagem do tempo, mergulhando o espectador profundamente em um mundo em via de desaparecimento e descobrindo com absoluta incredulidade um momento do qual jamais esqueceremos. Gostaríamos de distinguir a sensibilidade e a postura ética dos realizadores que tornou possível contar essa história com sucesso. (…)”
É preciso dizer algo mais?
Em The Best Thing You Can Do with Your Life, premiado em Guadalajara e exibido em vários festivais, Zita Erffa investiga as razões que levaram seu irmão querido a entrar inesperadamente para a ordem da Legião de Cristo, congregação religiosa católica romana. A decisão dele a deixou em estado de choque. Depois de oito anos, ela o visita, em Connecticut, e tem acesso imprevisto e revelador, não só a ele, mas à rotina diária do monastério.
The Best Thing You Can Do with Your Life é tributário dos filmes de Harun Farocki no modo analítico de retratar seu objeto. Imagem e som parecem muitas vezes um manual de uso, mas isso é feito com habilidade e moderação, sem o radicalismo usual de Farocki. Temperando o viés mais racional há a interação afetiva entre Zita Erffa e seu irmão, ambos fazendo o possível para se reaproximarem.
Dois grande filmes que honram não só a Semana do Documentário do DocMontevideo mas o cinema documentário, em geral, e o cinema como um todo.
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