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Um lance de dados
Das refinarias ao Vale do Silício
Fernanda Ezabella | Edição 143, Agosto 2018
Uma jovem de patins passou por um rapaz que circulava com seu cachorro pelos corredores da firma. Dava para ouvir uma bolinha de pingue-pongue quicando ao longe. Na cozinha, funcionários preparavam café expresso de máquina, e se serviam de amêndoas sabor wasabi e salgadinhos de vegetais desidratados. Uma sala de reuniões abrigava uma pequena piscina de bolinhas. “Minhas filhas não queriam sair daqui quando vieram conhecer o escritório”, disse Gilberto Titericz Junior enquanto mostrava seu ambiente de trabalho à piauí.
Titericz – um paranaense de 39 anos de fala mansa e gestos pacientes – vivia o sonho do Vale do Silício desde o começo do ano passado, quando foi contratado a peso de ouro pelo Airbnb, a plataforma online que permite alugar imóveis por temporada e ocupa um escritório de três andares no Centro de São Francisco.
Sua rotina no Brasil estava a léguas de distância da que vivia na Califórnia. Por quase oito anos ele atuou como engenheiro de automação numa refinaria da Petrobras em São José dos Campos. Cuidava de máquinas gigantescas que operavam em altas temperaturas e pressão. Trabalhava de luvas, protetor de ouvido, óculos e capacete. “Era um ambiente bem perigoso”, lembra.
A mudança de ares foi uma decorrência do interesse de Titericz por aquilo que muitos apelidaram de “o novo petróleo”: as montanhas de gigabytes disponíveis em bancos de dados digitais. Formado em engenharia eletrônica, ele se transformou num cientista de dados, o especialista treinado para extrair padrões e soluções de grandes volumes de informação, muitas vezes com ajuda de linguagens complexas de computação.
Profissionais com esse perfil são essenciais para colossos do Vale do Silício como Google ou Facebook, que constroem seus serviços e ferramentas a partir de dados pessoais coletados dos usuários. Em janeiro, a nova profissão de Titericz foi eleita a melhor nos Estados Unidos pelo terceiro ano consecutivo, com salário anual médio de 110 mil dólares, o equivalente a 34 mil reais por mês. (O paranaense desconversa quando lhe perguntam sobre sua remuneração.)
O engenheiro mergulhou nesse universo por hobby. Obcecado, passava horas no computador depois do expediente aprendendo novos códigos e truques. Aplicou os conhecimentos investindo no mercado financeiro e entrou no Kaggle, uma comunidade de aprendizado e competição com 80 mil cientistas de dados. A plataforma promove desafios em parceria com empresas que buscam em suas bases de dados a solução para uma série de problemas. Aos poucos, Titericz começou a ganhar prêmios, dinheiro e renome entre os pares. Num teste para prever preços de aluguéis no mercado mobiliário da Austrália, ele e mais três colaboradores faturaram 50 mil dólares. Em quatro anos, acumulou 174 mil dólares em prêmios, sozinho ou com colegas. O ápice veio em 2015, quando assumiu o primeiro lugar no ranking do Kaggle.
Era hora de largar a Petrobras.
Na refinaria, ninguém imaginava que o engenheiro de automação tivesse uma vida paralela online, até ele entregar seu cargo, em janeiro de 2016. “Só descobriram que eu era o número 1 do Kaggle depois que pedi demissão”, contou Titericz. No dia seguinte, seus chefes o procuraram para tentar dissuadi-lo. Acenaram com uma velha reivindicação do funcionário – uma transferência de São José dos Campos para Curitiba, onde mora seu pai. Ofereceram também um novo cargo, mais alinhado com seus novos interesses. Ele se rendeu e passou a integrar a primeira equipe da Petrobras a trabalhar com ciência de dados.
Mas sua sobrevida na empresa foi curta. Na esteira das denúncias de corrupção, o preço das ações da estatal despencou e o ambiente de trabalho foi se deteriorando. “Era muito desanimador”, contou Titericz. Ele aguentou um ano até ceder à tentação das propostas que choviam do exterior. Fechou com o Airbnb, mas recebeu ofertas também do Google e da Tesla.
Em março do ano passado, transferiu-se para os Estados Unidos com a mulher e as filhas, que têm 5 e 8 anos. Trocar uma estatal mergulhada em crises por uma empresa privada no coração tecnológico da Califórnia foi como mudar de planeta. Ganhou um laptop da Apple logo no primeiro dia de trabalho. “Na Petrobras, conseguir um computador novo levava mais de um ano”, ele disse. “Era preciso determinar a especificação, fazer cotação, abrir licitação. Se a verba daquele ano já tivesse acabado, era torcer para ter no próximo.”
Titericz se impressionou com a nova cultura de trabalho e com as reuniões que cumprem os horários à risca. No Airbnb, ele aprimorou a ferramenta de pesquisa do site a partir de novos algoritmos que criou e desenvolveu estratégias para dar mais visibilidade aos anúncios da empresa no Google, Facebook e outras plataformas. Quando completou um ano de casa, penduraram em sua mesa um balão prateado na forma do algarismo 1 para celebrar o aniversário.
Mas depois de dezesseis meses trabalhando no Airbnb, a saudade dos parentes e amigos apertou. O engenheiro, que morava com a família em Pleasanton, uma pacata cidade de 83 mil habitantes, voltou ao Brasil e se instalou em Curitiba. “As crianças estão muito felizes”, disse. Mas continua com um pé na Califórnia: agora trabalha a distância para a Ople, uma startup criada há um ano e meio no Vale do Silício e dirigida por um brasileiro. Está desenvolvendo ferramentas para o aprendizado de máquinas na nova empresa, que é especializada em inteligência artificial para bancos, seguradoras e websites. “Nossos clientes são empresas que possuem bancos de dados e querem gerar previsões sem ter que contratar um cientista de dados de alto nível”, explicou.
Na dúvida, Titericz preferiu não romper o vínculo com a Petrobras quando foi para os Estados Unidos: abriu mão do cheque polpudo a que teria direito se aderisse ao programa de demissão voluntária, e pediu uma licença não remunerada de quatro anos. “A empresa está melhorando internamente, mas tudo lá é devagar”, disse, ressabiado. “Ainda não sei se fiz a coisa certa.”
Fernanda Ezabella, jornalista, é correspondente da Folha de S.Paulo em Los Angeles