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O que Bolsonaro revela sobre o voto

O ex-capitão pode ser o primeiro youtuber a virar presidente

Miguel Lago | 01 out 2018_08h17
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Votar significa delegar seu poder a alguém para que represente você. No caso da Presidência da República, trata-se de uma responsabilidade tremenda. É preciso confiar na capacidade da pessoa para liderar o governo e em sua equipe para implementar políticas públicas de qualidade. Não à toa, se apresentam à eleição presidencial candidatos e partidos com experiência no setor público.

Os quatro candidatos às eleições presidenciais de 2014 eram pessoas com larga trajetória política e experiência: os governadores mais bem avaliados do país (Aécio Neves e Eduardo Campos) e ex-ministras de Estado de um governo também bem avaliado (Marina Silva e Dilma Rousseff). Por mais controversos que fossem, todos tinham algum sucesso comprovado em termos de aplicação de políticas públicas. Eram todos políticos do “fazer”.

Quatro anos mais tarde, parece que os políticos do “dizer” se sobrepuseram aos políticos do “fazer”. Se somarmos as intenções de votos de Ciro Gomes e Geraldo Alckmin, os mais experientes administradores dentre os candidatos presidenciais, chegamos a 20% dos votos, muito atrás do candidato que é um vazio de ideias e experiências, que aparece com 27% da preferência do eleitorado.

O que mudou em apenas quatro anos? A esquerda dirá que ocorreram  retrocessos democráticos; a direita, que estamos nos recuperando da maior recessão da história. No entanto, existe um fenômeno também muito relevante: a conectividade. O brasileiro está cada vez mais conectado e consome cada vez mais informação nas redes sociais – de acordo com o jornal Financial Times, 66% dos brasileiros declaram usar as redes sociais como meio para se informar semanalmente (nos Estados Unidos, são 45%; na França ou a Alemanha, cerca de 30%).

Essa informação ajuda a explicar por que vemos tantos brasileiros, especialmente eleitores do ex-capitão Jair Bolsonaro, acreditarem mais em mentiras que circulam nas redes sociais do que em notícias da imprensa tradicional. A conectividade alimentou o nosso provincianismo: compartilhar informação não é mais transmitir conhecimento proveniente de fontes diversificadas e qualificadas, mas sim replicar acefalamente o que disse o primo da vizinha.

Vale lembrar também que, desde 2014, o Facebook passou por mudanças de algoritmo para privilegiar as visualizações de perfis de pessoas em vez das páginas institucionais. Dessa forma contribuiu para priorizar o “disse me disse”, no lugar da informação que provém de uma fonte identificável. A opinião de um amigo qualquer passou a ser mais facilmente encontrável e compartilhável do que o trabalho jornalístico sério dos veículos e instituições tradicionais.

Essa medida, aliada ao modelo de negócios da empresa com base na venda de informações sobre seus usuários para o marketing, transformou a arena da rede social em reino da opinião. A fim de obter o perfil mais completo de cada usuário, é necessário estimulá-lo a revelar suas preferências sobre absolutamente tudo, isto é, a emitir opiniões a torto e a direita.

Nessa arena, tudo se tornou opinião e se confunde com ela. A análise política de um especialista equivale à opinião de qualquer pessoa que nunca abriu um livro sobre política. Trata-se de uma perversão do direito à liberdade de expressão: muito embora cada um tenha direito de opinar, e uma opinião não se sobreponha a outra, nem tudo é da ordem da opinião.

Análises, pesquisas e evidências são de outra esfera.  Não se responde ao resultado de uma pesquisa científica dizendo simplesmente que não se concorda com ela, mas sim questionando sua metodologia e apresentando pesquisa sobre o mesmo tema que possa questionar as suas conclusões. Mas, na era do Facebook, é como se isso não fosse necessário, pois basta concordar ou discordar, like ou dislike. A ação, o trabalho, a especialidade, tudo perde lugar para a opinião. Talvez a melhor ilustração disso seja o que ocorre nas comunicações feitas pelo papa Francisco via Twitter, que são constantemente criticadas por internautas brasileiros citando passagens randômicas da Bíblia. No reino da opinião parece que qualquer um sabe tanto quanto o papa sobre teologia e doutrina…

 

O fenômeno não é apenas brasileiro, mas se manifesta talvez mais rápido por aqui. A fusão entre realidade e virtualidade, o deslocamento da confiança em instituições para a confiança em pessoas são indícios do descompromisso com o fazer e da exaltação do dizer. O dizer é muito fácil, pois qualquer um diz. Difícil é fazer. Gente que nunca tinha se interessado pela política passou a comentar como se opinasse sobre novela ou futebol. Foi nesse cenário – e no espaço de quatro anos – que Bolsonaro cresceu e fidelizou muita gente.

Não à toa, a faixa econômica do eleitorado em que Bolsonaro tem seu melhor desempenho é entre os mais ricos – portanto, os que estão incluídos no mundo digital em maior número. Durante décadas, Bolsonaro teve atividade legislativa medíocre e não tem nenhuma proposta séria de política pública. Mas ele é o rei da opinião: tudo diz, sobre tudo, mesmo que nada tenha feito. Mascara suas declarações racistas, homofóbicas e sexistas com um suposto humor que incentiva o compartilhamento.

Bolsonaro é tosco, e isso contribui para que pessoas o achem engraçado. É um ativo youtuber, talvez o mais bem-sucedido do Brasil. Este é certamente o seu maior feito na vida pública: a fidelização de hordas de seguidores em suas redes sociais. É sintomático que na hora de montar a sua equipe de governo, apresente como seu único especialista um empresário de sucesso, mas sem nenhuma experiência de setor público, e que ficou famoso por escrever regularmente na página de opinião do jornal O Globo.

O voto em Bolsonaro não é movido pela racionalidade: basta ver o que ele diz e quem o cerca para saber que nenhum governo com mínima qualidade possa brotar dali. O voto em Bolsonaro tampouco pode ser ético, dado que nenhum outro candidato apresenta tantas denúncias de desvio de comportamento ético quanto ele. O voto em Bolsonaro é movido pelo like, pelo concordar. O “mito é uma figura”, é sincero, não tem medo de dizer aquilo que é tabu. O voto em Bolsonaro é uma brincadeira: é banal, movido a opinião. E a opinião é grave, pois ela suspende a seriedade das relações, a complexidade das interações.

Também são superficiais as promessas e declarações do candidato. Nessa campanha, ele disse que tiraria o Brasil da ONU – e depois falou que era brincadeira –, que “fuzilaria a petralhada do Acre” – e era brincadeira –, que aumentaria o número de ministros do STF para poder nomear a maioria, como fez o governo autoritário da Venezuela – outra brincadeira. Nada é sério para Bolsonaro. O horror é só brincadeira, o racismo é só piada, a homofobia também. Por estar no terreno da opinião, parece não ter consequências.

O voto em Bolsonaro não se baseia em fundamentações políticas, mas no entretenimento. É um não-voto, um voto-brincadeira. Assim, seu aspecto mais intrigante é o que revela sobre o ato de votar. Como fenômeno político, diz mais sobre as transformações da instituição voto do que sobre as mudanças ideológicas do eleitorado ou sobre as novas estratégias eleitorais dos candidatos. É um voto que tem como resultado, paradoxalmente, esvaziar o dispositivo voto de toda institucionalidade.

Quando as elites passam a desprezar o voto, equivalendo-o ao like, é um sinal de que a democracia corre perigo. Se eleito, Bolsonaro sairá da tela do celular para o mundo real, onde opiniões não são brincadeiras e podem levar a consequências bem drásticas. Não será fácil para as instituições democráticas conter o avanço do autoritarismo do primeiro youtuber-presidente, que tudo diz, e nada fez.

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