O que quer o PT?
O difícil trajeto de Haddad rumo ao centro
Já dizia Machado de Assis que, para ir à Glória – bairro próximo ao Centro da cidade, no Rio –, é preciso pagar o bonde. Uma boa parte do Partido dos Trabalhadores, contudo, tem insistido na estratégia de tentar chegar lá economizando o bilhete.
O custo, que eles ainda evitam, é mais ou menos evidente para quase todo mundo, inclusive para gente dentro da campanha de Fernando Haddad. Se quiserem costurar apoios e conquistar os eleitores que não se identificam automaticamente nem com a campanha petista do primeiro turno, nem com a de Jair Bolsonaro, precisam abrir mão de boa parte do plano de governo entregue pela legenda, meses atrás, ao Tribunal Superior Eleitoral.
É provável que nem mesmo o PT do final dos anos 80 e início da década de 90 se reconhecesse ali. Trata-se de um documento não apenas radical, mas ressentido. O centro das atenções, nele, não está nos próximos quatro anos de governo, mas no “golpe” que retirou Dilma Rousseff do Planalto e na prisão de Lula. “O pacto constitucional de 1988 foi quebrado pelo golpe de Estado de 2016, de natureza parlamentar, judicial, empresarial e midiática”, diz o texto. O conjunto das propostas é impraticável, do ponto de vista econômico, e denota desejos revanchistas em relação ao Judiciário, à imprensa, às instituições de controle.
Potenciais aliados, que têm todo o interesse em tentar derrotar as pretensões eleitorais de Bolsonaro, pedem que, em vez de abraçar aquele inviável conjunto de propostas, o PT volte a ser o partido de esquerda moderada que um dia foi, com grande sucesso, inclusive à frente do Palácio do Planalto. Fazem acenos, demonstram interesse em apoiar o postulante petista neste segundo turno da eleição presidencial, mas o que recebem de volta – de Haddad, inclusive – são mensagens confusas e pequenas concessões hesitantes.
Foi assim também ontem, quando a muito custo Fernando Haddad recuou da insensata ideia, também contida no programa de governo do PT, de propor uma nova Constituição ao país, a fim de “reestabelecer o equilíbrio entre os Poderes da República”.
Ora, processos constituintes só fazem sentido após rupturas históricas importantes, em momentos de refundação do contrato político de um país. Para serem legítimos, devem nascer de um anseio comum, coletivo, e precisam contemplar os interesses do conjunto das forças sociais, a partir de consensos e compromissos mínimos. Como seria possível fazer isso num momento em que o país está particularmente dividido?
Mais importante ainda, a Constituição serve para limitar os poderes dos mandatários, e cabe ao presidente, na democracia, se submeter à lei fundamental – e não procurar reescrevê-la completamente.
Questionado sobre o tema em entrevista para o Jornal Nacional, Haddad voltou atrás. “Nós revimos o nosso posicionamento”, disse. As mudanças à Constituição que tiverem que ser feitas em um possível governo seu, prometeu o candidato, serão postas à votação pelo mecanismo de reformas atualmente em vigor.
Citou três delas. Uma reforma tributária, desonerando os mais pobres e boa parte da classe média. Uma reforma bancária, para estimular a concorrência no setor financeiro e baixar os juros dos empréstimos a empresários e consumidores (Haddad não entrou em detalhes sobre o projeto). E a revisão do teto de gastos, aprovado no governo de Michel Temer, que impõe um limite ao crescimento das despesas orçamentárias. Uma ausência se fez notar: entre as reformas prioritárias elencadas pelo petista não constava a da Previdência, não à toa uma pauta comum, neste ano, às candidaturas de Ciro Gomes, Geraldo Alckmin e Marina Silva.
É louvável o abandono da ideia descabida de uma nova Constituição (o mesmo vale, aliás, para Jair Bolsonaro; falando também ao Jornal Nacional, o candidato do PSL desautorizou a proposta ainda mais estapafúrdia, aventada pelo seu vice, o general Hamilton Mourão, de convocar uma Constituinte de “notáveis”, não eleitos). Mas continua a ser preocupante o posicionamento econômico do PT.
Revogar o teto de gastos sem corrigir o dispêndio crescente com aposentadorias significaria manter uma trajetória de aumento insustentável da dívida pública, que não para de crescer desde o governo Dilma. O resultado desse tipo de política seria um aumento da desconfiança em relação à capacidade do poder público de pagar o que deve, e o consequente incremento dos juros cobrados pelos emprestadores ao governo e às empresas brasileiras; a possível saída de recursos do país, desvalorizando o real; a diminuição do crescimento e o aumento da inflação. Aferrados a uma visão de mundo que se diz de esquerda, os dirigentes petistas, se vierem a colocar em prática o que estão prometendo, vão empobrecer o país e a população.
As dificuldades que Fernando Haddad enfrenta agora são em parte resultado da distância que o PT guardou, na reta final do primeiro turno, em relação aos seus adversários de centro, num momento em que isso não se mostrava mais necessário ou razoável.
Um episódio significativo dessa dinâmica aconteceu no debate entre presidenciáveis promovido pela Rede Globo, na quinta-feira passada. Questionado por Haddad sobre direitos trabalhistas e sociais, o então candidato do PSOL, Guilherme Boulos, preferiu usar o seu tempo de resposta para fazer uma defesa dos valores democráticos, alertando para a ameaça de regressão autoritária no país. “Temos de dar um grito neste momento, botar a bola no chão e dizer: ‘Ditadura, nunca mais!’”
Mesmo quem considera as explícitas declarações antidemocráticas de Jair Bolsonaro e de seu vice meras bravatas – e portanto não vê riscos objetivos de supressão de direitos num possível governo do capitão reformado –, dificilmente deixaria de apoiar esse apelo.
A palavra voltou para Haddad. O petista recebia de bandeja a oportunidade – mais uma, entre tantas que lhe foram dadas – de lançar pontes, reafirmando valores que uniam quase todos os candidatos, de cujo apoio ele dependeria no reinício da campanha, num provável segundo turno, dali a poucos dias.
“Sem democracia não há direitos”, observou. “Se foi possível gerar 20 milhões de empregos em apenas doze anos, se foi possível fazer o jovem trabalhador de classe pobre, o filho do pedreiro, entrar na universidade, isso tudo se deve à democracia.” E seguiu listando programas dos governos petistas: Minha Casa Minha Vida, Bolsa Família, Luz para Todos.
Poderia facilmente, sem nenhum prejuízo para suas ambições eleitorais – ao contrário –, ter elencado conquistas democráticas obtidas em governos de partidos adversários. Duas delas, para ficar no óbvio, foram fundamentais para o país; conquistas sem as quais as contribuições petistas nem sequer teriam sido possíveis: a Constituição de 1988 e o controle da inflação. Há outras – a construção do Sistema Único de Saúde, a universalização do ensino fundamental –, mas fiquemos nessas duas, que marcaram uma clara ruptura com a desorganização política e econômica promovida pela ditadura.
Fernando Haddad não mencionou nenhuma delas. Num momento histórico importante, em que reafirmar valores democráticos suprapartidários está longe de ser ocioso, preferiu defender o PT, apenas o PT.
Quem sabe Haddad ainda se mostre capaz, nessa reta final das eleições, de convencer os dirigentes da sua legenda a abandonar posições sectárias. Impressiona, de toda forma, que seja tão difícil fazer esse movimento.
Parte importante dos líderes petistas tem se comportado nos últimos meses como aqueles neuróticos mais ou menos graves que preferem ter razão a serem felizes. Presos ao passado, parecem menos preocupados com a vitória na eleição presidencial do que em prevalecer nos debates sobre a inocência de Lula ou sobre a natureza do processo que retirou Dilma Rousseff do poder. “Foi golpe!”
Não se vai muito longe assim. Talvez muita gente no PT não queira mesmo ir.
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