ANDRÉS SANDOVAL_2018
De tudo um porco
Um banquete cinco estrelas
Rafael Tonon | Edição 147, Dezembro 2018
O chef paulista Cesar Costa entrou na cozinha com uma caixa retangular de inox cheia de pequenos cubos castanhos. Levou um deles à boca, mastigou e fez cara de quem comeu e gostou. Eram pedaços de língua de porco que ele deixara curando por três dias antes de cortá-los milimetricamente – e que, dispostos sobre uma polenta frita feita com milho orgânico e cebola em conserva, serviriam de tira-gosto. Perto dele, o colega Onildo Rocha, de João Pessoa, recheava pequenos buns (pães chineses cozidos no vapor) com tirinhas de tripa de porco frita, que besuntava com maionese de gengibre. Em frente à fritadeira, o carioca Rafael Costa e Silva submergia no óleo quente rolinhos de acelga recheados com ragu de verduras, cozidos no caldo de porco e fritos em massa de tempurá.
Os três e mais outros 28 cozinheiros aceitaram de pronto o convite do chef Jefferson Rueda, feito com meses de antecedência, para celebrar seu aniversário. Ele só completaria 41 anos em 26 de julho, três dias depois daquela segunda-feira, escolhida por ser o dia de folga dos profissionais da área. O mote do festim era, evidentemente, o porco, objeto da dedicação quase que exclusiva do anfitrião nos últimos anos.
No menu habitual d’A Casa do Porco – restaurante que Rueda inaugurou há três anos no Centro de São Paulo –, composto de 49 itens, apenas sete não têm o suíno entre os ingredientes. Naquele dia, porém, não havia exceções: o porco precisava constar de todos os pratos, das entradas às sobremesas. Até um drinque, servido com uma farinha de bacon na borda do copo e preparado pela bartender Néli Pereira, obedeceu ao pré-requisito.
Cada chef elegeu sua própria receita: havia de carpaccio de pé (cozido por três horas e depois congelado para poder ser cortado em lâminas finíssimas) a açaí misturado ao sangue do animal, servido junto com peixe frito (como rege a tradição paraense). Nenhuma parte do corpo foi deixada de fora: do rabo – para engrossar o caldo de feijão – ao pulmão, que Pier Paolo Picchi misturou com o fígado para criar um delicado creme que recheou uma versão salgada dos cannoli, a sobremesa siciliana imortalizada em O Poderoso Chefão.
Foi a primeira vez que a alta gastronomia brasileira – essa cujos integrantes ganham prêmios, aparecem em revistas e viram jurados de competições culinárias na tevê – reuniu tanta gente na mesma bancada: as estrelas Michelin somavam cinco. “A gente se sente até uma rainha”, resumiu a atriz Marisa Orth numa rápida passagem pela cozinha. Ela era um dos sessenta comensais daquela noite, sendo 45 convidados do aniversariante e quinze pagantes, que desembolsaram 380 reais cada um – as vagas acabaram em minutos. “Já que consegui vir, preciso tirar uma foto pra registrar, né”, fazia pose uma senhora loira, tentando enquadrar o máximo de chefs que coubesse no clique.
A carne suína é a mais consumida no mundo, embora no Brasil seja apenas a terceira mais popular. Rueda diz que sua paixão pelo animal surgiu ainda na adolescência, quando fez estágio em um açougue em São José do Rio Pardo, sua cidade natal: “O porco tem um jeitão popular e democrático, é consumido em todas as regiões, com aproveitamento de todas as partes”, afirmou. Os pratos de seu restaurante aproveitam inclusive cabeça, rins e gordura abdominal, geralmente desprezados.
No jantar, no entanto, a cabeça do porco foi poupada. A única a prêmio era a do próprio Rueda – servida por um porco numa escultura em fibra de vidro que adorna a porta do restaurante, de autoria do artista plástico Lumumba. Mas naquela segunda-feira, ao menos no início do jantar, Rueda não estava muito disposto a brincadeiras. Cabia a ele organizar o fluxo de trabalho para que seus colegas executassem as receitas a serem servidas às mesas por uma dúzia de garçons. “Sai mais quatro polentas. Cadê os pratos da Talitha que ainda não saíram? Ajudem ela!”, bradava o anfitrião em socorro da paulista Talitha Barros, proprietária do Conceição Discos.
Na cozinha, porém, o clima era de confraternização: enquanto grupos de cozinheiros ajudavam os colegas a finalizar as entradas, três chefs provavam o caldo de feijão preto com pertences criado por Mara Salles, a decana da turma: “Alguém liga o forno para a Mara poder esquentar o rabo!”, brincavam, em tom adolescente. Ela ria. Servidas as treze entradas, era hora de finalizar os pratos. “Agora quem já fez sua parte, pegue o banquinho e saia de mansinho”, cantarolava o anfitrião Rueda, mais relaxado.
Nos momentos mais agitados da noite, a cozinha de 60 metros quadrados chegou a reunir mais de quarenta cozinheiros. Para dar vazão aos serviços e liberar espaço, Rueda providenciou uma tenda na parte de fora do restaurante, com baldinhos de cerveja, bartender e até um banheiro químico. “A balada é lá fora”, apontava para os que insistiam em não sair, tentando orquestrar os 1 680 pratos servidos até as 23h36, quando a última sobremesa foi entregue.
Findo o jantar, Fafá de Belém entrou na cozinha perguntando por Thiago Castanho, chef do Remanso do Bosque, na capital paraense. “Foi o melhor prato”, disse a cantora, referindo-se ao peixe com açaí e sangue preparado por ele. “Isso é bairrismo, não pode não”, protestou a chef Bárbara Verzola, do restaurante Soeta, em Vitória, que serviu uma sobremesa feita com bacon, mel de abelhas nativas e flores.
Fafá riu e subiu ao palco montado no meio do salão para dar uma canja na apresentação das vocalistas do grupo As Bahias e a Cozinha Mineira, escaladas para animar a festa. Para os que iam embora, a chef cuiabana Ariani Malouf, a única que não preparou seu prato na cozinha, entregava uma sacola com delícias do Pantanal para o café da manhã do outro dia, como rapadura de mamão, paçoca de pilão e pixé e uma farofa doce de milho com canela e açúcar. “Já usaram tudo, não sobrou nada do porco”, sorria. Na entrada da cozinha, a chef Carmem Virgínia, jurada de um programa, resumiu a noite: “Nem o espírito, né, meu amor, que todo mundo aqui tem um pouco.”