ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2019
Braba na sentada
A rainha do “passinho dos malokas”
Joana Suarez | Edição 150, Março 2019
“T e falei que essa garota/É malvada/É especialista/E tira braba/Na sentada…” O som do brega-funk estalava na praça do Marco Zero, no fCentro histórico do Recife, agitando mais de 3 mil adolescentes de várias comunidades. Todos tentavam repetir sincronicamente a mesma coreografia do “passinho dos malokas”, conforme esta sequência de movimentos: bater palmas, dar um tapinha no rosto com a mão direita, botar o dedo indicador na boca e lançar a pelve para a frente – é a “brecada”, o momento central da dança.
No meio da praça, uma roda de pessoas observava, fotografava e filmava Clara Araújo enquanto ela sacudia a pelve sem parar, acompanhada pelas outras quatro dançarinas do grupo As do Passinho S.A. – sigla de Santo Amaro, o bairro onde elas moram. As meninas com idades entre 12 e 15 anos estavam vestidas de tops de cor pink, curtíssimos shorts jeans e tênis.
Foi Araújo quem estimulou, por meio das redes sociais, a reunião de tanta gente no Encontro Clara Especial 10 K, uma batalha de passinhos para comemorar o que para ela representava um recorde: ter conquistado 10 mil seguidores no seu perfil no Instagram, no fim do ano passado. Porém, quando a festa aconteceu, em 8 de janeiro, os seguidores já eram mais de 20 mil. E em meados de fevereiro ultrapassavam a marca dos 100 mil. A adolescente negra de 15 anos, 1,55 metro e 52 quilos, havia se tornado em Pernambuco, indiscutivelmente, a “rainha do passinho”, como dizem seus fãs.
A festa na praça que é um dos cartões-postais do Recife conseguiu algo inesperado: quebrar o isolamento dos jovens de diferentes comunidades e fazê-los dançar juntos. “O povo da favela mostrou que tem diferença, que não tem só menino que quer estar em droga, a gente não é só favelado, também tem respeito”, disse Araújo, ao fim do encontro. Após ser solicitada para dezenas de fotos com fãs, ela se deu conta de que realizara um desejo da infância: tornar-se uma dançarina famosa. “Hoje, estou vendo que consegui. Não só eu como minhas amigas também.”
Nas comunidades pobres do Recife e redondezas, praticamente toda semana surgem novos grupos de dança de brega-funk, de influenciadores digitais, DJs e MCs (mestres de cerimônias e cantores). Dançarinos e dançarinas prestigiados – como Os Magnatas do Passinho S.A. e As do Passinho do Coque – quase sempre são convidados para atuar em shows dos MCs e cobram cachê. As garotas do As do Passinho S.A., que atuam juntas desde novembro, recebem 150 reais por hora de dança, quantia que é dividida entre as cinco. Às vésperas do Carnaval, esperavam aumentar bastante o número de apresentações. “A gente já tem um mói [um monte] de evento fechado”, contou Araújo.
O “passinho dos malokas” virou febre nas comunidades da capital pernambucana, de Olinda e de Jaboatão dos Guararapes no final do ano passado. Em fevereiro já era praticado nas festas da moçada de classe média. A dança é embalada pelo brega-funk – em que o funk dominante é misturado com variados gêneros, como o pagode baiano, o forró, o frevo, o reggaeton latino e, sobretudo, o brega. São essas misturas excêntricas do som que diferenciam o “passinho dos malokas” do Recife do “passinho” do funk das favelas do Rio e de outras capitais. Além disso, os dançarinos pernambucanos usam menos os pés, pois preferem mexer os ombros, os braços e a região pélvica.
Como no funk, as letras do brega-funk tratam, principalmente, de sexo. Os apelos machistas predominam e as reivindicações femininas aparecem muito pouco. “São os MCs que escrevem as músicas”, disse Araújo. “A gente só dança, gostamos da batida. Não tem nada de bom nas letras.”
Em 20 de janeiro, uma nova batalha do passinho, com milhares de jovens, tomou conta da praça do Recife Antigo. Absortos na dança, os participantes pareciam não dar importância à polícia, que resolveu fazer revistas aleatórias e rondar o local com viaturas. Nenhum incidente grave foi constatado pela PM. Naquele dia, Araújo dançou três horas seguidas sob um sol forte.
Maria Clara Damasceno Araújo é seu nome completo. “Mas não gosto de falar dessas coisas”, ela disse, referindo-se à sua vida pessoal. Prefere mostrar os vídeos de dança que fez ou as seis tatuagens – nos braços, nos ombros, na mão e na barriga. Em uma delas está escrito: “A força mais potente do universo é a fé.” Outra aconselha: “Para quem tem fé a vida nunca tem fim.” Embaixo desta, estampou o nome da mãe, Geane, que já morreu. Como também perdeu o pai, ela mora com a avó na comunidade conhecida como favela do Santo Amaro, no bairro do mesmo nome.
Araújo começou sua carreira como dançarina de swingueira, o pagode baiano. Depois de se converter ao brega-funk, passou a postar vídeos no Instagram, em junho passado, e logo se destacou por causa do requebro veloz, preciso e poderoso. Um de seus vídeos chegou a atingir 400 mil visualizações. Nessa época, abreviou seu nome para Clara Araújo, mas é bem mais conhecida como Clara do Passinho, a garota que, como diz a música, “tira braba na sentada” [arrasa muito].
Ela está cursando a 7ª série no turno da noite. Antes de ficar conhecida, passava os dias “morgada em casa”, conta. Com o lampejo de fama, começou a levantar cedo para enfrentar a agenda agitada. “Agora, acordo às sete da manhã para organizar tudo. Todo dia tem muita coisa pra fechar.” São shows, reuniões, entrevistas, além de postagens nas redes sociais. Se tudo der certo, seu plano é comprar uma casa própria.