ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2019
Black money
Uma livraria afrocentrada
Ana Carolina Santos | Edição 153, Junho 2019
Em 2011, Maicon Jackle Rodrigues abandonou o uso do nome que figura em seus documentos e adotou um novo: Mirembe Nombeko. Para ele, a mudança teve o sentido de um “resgate”. “O nome traz existência. Dentro da filosofia, se algo não tem nome, não existe”, justificou. “Quando os africanos foram trazidos à força para o Brasil, a primeira coisa que os colonizadores fizeram foi privá-los de usar os nomes de origem.”
O novo nome é de origem xhosa, um dos ramos etnolinguísticos do banto, palavra que designa o conjunto de línguas e povos que ocupa vasta porção do continente africano, de Camarões à África do Sul. “Mirembe” significa paz; “Nombeko”, respeito.
Estudante de ciências sociais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Nombeko, 35 anos, tomou consciência da questão racial principalmente por meio dos livros – e um deles em particular: Negras Raízes, do escritor americano Alex Haley. “Esse livro me deixou em crise existencial”, contou. “Ali foi o início de tudo.” No mesmo ano em que leu o romance, resolveu adotar o codinome.
Seis anos depois, cansado de procurar obras de temática negra e não encontrar, Nombeko resolveu criar um comércio itinerante especializado em autores negros de todas as partes do mundo, ou, como ele descreve, uma “livraria afrocentrada e pan-africana”. O investimento inicial foi de aproximadamente 1 500 reais. “Fazia alguns anos que eu tinha a ideia de abrir uma livraria. Quem me incentivou a colocar em prática foi ela”, disse.
“Ela” é sua noiva e sócia, Sheila Martins, de 33 anos, que sempre o acompanha nas feiras e eventos – e que estava ali do lado dele, naquela manhã de sábado, em meados de março, no prédio da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Como no auditório da escola ocorria a primeira aula do curso especial “História e cultura de África: Do século IV a.C. a XX”, os dois aproveitaram para expor, em uma mesa no corredor, várias obras de autores negros, como a americana Maya Angelou, a brasileira Conceição Evaristo e a ganesa Yaa Gyasi.
O casal deu início às atividades da livraria em agosto de 2017, quando participou da sétima edição do evento musical Resenha das Pretas, na Arena Carioca Fernando Torres, espaço cultural no Parque Madureira, na Zona Norte. “A gente não vendeu praticamente nada”, lembrou Martins.
Como não têm carro e moram em Bangu, na Zona Oeste, a cerca de 40 quilômetros do Centro, eles usam o transporte público para levar os livros. Durante os primeiros seis meses do negócio carregaram os quase cem volumes em malas sem rodinhas. Só em janeiro do ano passado conseguiram trocar a velha mala por uma nova, maior e com rodas, adquirida em seis prestações em uma loja do Madureira Shopping, no bairro que dá nome ao centro comercial.
Novembro é a melhor época para as vendas, pois as comemorações do Dia da Consciência Negra (20 de novembro) se irradiam por todo o mês e uma série de eventos afins ocorre na cidade. “É uma época em que a gente não tem tempo nem para respirar”, disse Martins. Os seminários, debates e feiras universitárias são o foco principal da livraria – por conseguinte, as férias escolares são o pior período de vendas.
Dois livros de Conceição Evaristo, que recentemente pleiteou uma vaga na Academia Brasileira de Letras, costumam ser os mais vendidos pelo livreiro, em qualquer ocasião: Olhos d’Água e Ponciá Vicêncio. A lista de best-sellers inclui ainda o pensador brasileiro Abdias Nascimento – com O Genocídio do Negro Brasileiro e O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista – e o ensaísta francês Frantz Fanon – com Os Condenados da Terra e Pele Negra, Máscaras Brancas.
No circuito itinerante da Livraria Nombeko, o casal tinha até pouco tempo uma espécie de porto seguro no Instituto Palmares de Direitos Humanos (IPDH), uma ONG criada na Lapa. Era ali que ocorria mensalmente o Encontro Preto, uma feira onde empreendedores negros expunham seus produtos – roupas, cosméticos e gastronomia. Um dos objetivos do encontro era gerar o chamado black money, ou seja, o consumo por pessoas negras de mercadorias vendidas por outros negros.
Em 29 de janeiro último, entretanto, o governo do Estado do Rio pediu reintegração de posse do local ocupado há 24 anos pelo IPDH. A ONG foi despejada e todas as suas atividades acabaram canceladas. “Perdemos o espaço, que atualmente está lacrado”, disse o livreiro. Seu objetivo, agora, é encontrar um endereço fixo para o negócio. “A princípio, queremos uma loja colaborativa com outros afroempreendedores.”
Nombeko e Martins aplicam a ideia de black money em várias instâncias de suas vidas. Privilegiam livros escritos por negros, procuram roupas de designers negros e até lanches rápidos, como uma coxinha, eles preferem comprar de vendedores negros. “Na rua, no trem, em camelôs, sempre compramos de pessoas pretas. É uma coisa micro, mas importante de se praticar”, afirmou Nombeko.