Glauber Rocha esquecido – cinema brasileiro em questão
Capaz como poucas de desarrumar o arrumado, voz do cineasta baiano faz falta nessas horas
Quem é Glauber Rocha? A pergunta pode parecer absurda. Mas o presidente da República, pelo visto, não sabe. Ou então, como é mais provável, preferiu ser descortês e omitir o nome do cineasta ao discursar na inauguração do Aeroporto Glauber Rocha, em Vitória da Conquista, terceira maior cidade da Bahia, no sudoeste do estado, onde Glauber (1939-1981) nasceu e viveu até fazer 9 anos.
O pronunciamento para convidados, na semana passada, foi feito em frente a um grande painel onde estava escrito “Aeroporto Glauber Rocha”. Mesmo assim, o presidente não mencionou o cineasta. De costas para Glauber, tentou tirar proveito político em benefício próprio do investimento feito na obra pelo governo estadual e pela União nos governos Dilma Rousseff e Michel Temer. Vestiu chapéu de cangaceiro e fez declaração de amor ao Nordeste, dias depois de ter se referido aos governadores da região como “paraíbas”.
Glauber pode ter ficado satisfeito ao reconhecer no presidente traços de desvario do governador populista Felipe Vieira (José Lewgoy), de esquerda, e do político Porfírio Diaz (Paulo Autran), de extrema direita, personagens do seu filme Terra em Transe, de 1967. Talvez ele tenha até preferido ser ignorado na festa de inauguração do aeroporto batizado com seu nome, na qual se tornou, à revelia, um monumento de cimento, asfalto e vidro, nada afeito à sua permanente inquietação em vida.
Se o presidente tivesse algum interesse, ou não fosse tão grosseiro, teria sido fácil aprender ou lembrar quem é Glauber Rocha. Bastaria assistir ao breve trecho de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 1964, que Ismail Xavier selecionou para comentar, em 13 de julho, na Flip deste ano. São apenas 6 minutos e 31 segundos a partir de 17 minutos e 55 segundos do filme, nos quais estão sintetizadas a beleza e a potência dos melhores momentos da obra de Glauber.
Xavier indicou na mesa da Flip o que definiu como a “rima visual” entre, de um lado, a cruz de dois galhos tortos enfiados no monte de terra que cobre a cova da mãe do vaqueiro Manuel (Geraldo d’El Rey), e, de outro, o santuário no topo do morro de Monte Santo para onde Manuel e sua mulher, Rosa (Yoná Magalhães) partem, ao iniciar sua jornada, em busca da guarida do Santo Sebastião (Lidio Silva).
O Magnificat de Villa-Lobos e a pregação do beato fazem a passagem da cruz sobre a cova para o caminho de pedra que leva à igreja da Santa Cruz. Irrompe o coro e estandartes tremulam ao vento. A câmera enquadra Sebastião pela primeira vez. A pregação, que inclui trechos de frases de Antônio Conselheiro, conforme Xavier sublinhou, continua em off enquanto a câmera percorre o rosto dos seguidores do beato, atentos às suas palavras: “Andei por mais de cem lugares dizendo que o mundo vai acabar nesta seca, com o fogo saindo das pedra. […]” Os figurantes, filmados em 1963, têm estampada na cara o drama do povo brasileiro mais pobre de todos os tempos.
Manuel e Rosa vem subindo pelo caminho de três quilômetros e as profecias de Sebastião continuam em off: “[…] do outro lado de lá deste Monte Santo existe uma terra onde tudo é verde. Os cavalos comendo as flor e os meninos bebendo leite nas águas do rio. […]” O sopro forte do vento se mistura às palavras do beato. Manuel se aproxima depois de ter deixado Rosa para trás, caída no solo. “[…] E o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão” proclama o beato, em versão adaptada das palavras de Antônio Conselheiro, em Os Sertões, conforme Xavier sublinhou.
Beato: “O homem não pode ser escravo do homem. O homem tem que deixar as terra que não é dele e buscar as terra verde do céu. Quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus, e quem é rico vai ficar pobre nas profunda do inferno. E nós não vai ficar sozinho por que meu irmão Jesus Cristo mandou um anjo guerreiro com sua lança para cortar a cabeça dos inimigo.”
Manuel: “Tou condenado mas tenho coragem. Entrego minha força ao meu santo pra libertar o meu povo.”
Música. Proclamações e louvores a “nosso senhor Jesus Cristo.” Manuel beija os pés do beato. A câmera percorre o corpo de Sebastião dos pés à cabeça, passando pelos braços abertos, e faz panorâmica à direita para mostrar um estandarte tremulante ao vento e enquadrar o sertão ao redor a perder de vista.
A descrição nem de longe faz justiça à sequência que, revista na Flip, preserva inalterado seu impacto original e renova a merecida admiração devida a Glauber, a quem o presidente preferiu dar as costas em Vitória da Conquista.
O insulto poderia ter sido previsto. Dias antes o presidente havia se voltado contra o cinema brasileiro como um todo ao declarar que pretende “filtrar” filmes produzidos com recursos públicos, o que seria uma forma de fazer censura prévia proibida pelo inciso IX do Artigo 5º da Constituição Federal de 1988: “É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.” Além desse despautério, 48 horas depois de inaugurar o Aeroporto Glauber Rocha anunciou outro contrassenso – a intenção de extinguir a Agência Nacional do Cinema (Ancine).
Glauber se consagrou como cineasta em uma época já distante quando não existia financiamento público para produzir filmes. Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em Transe foram feitos com orçamentos modestos e empréstimos bancários. Foi só em seu último filme, A Idade da Terra, lançado em 1980, que ele contou com produção integral da Embrafilme, empresa estatal de economia mista. Morreu no ano seguinte, aos 42 anos, vencido por desalento e doença insidiosa.
A citação de Mário Faustino (1930-1962) em Terra em Transe continha algo premonitório: “Não conseguiu firmar o nobre pacto/Entre o cosmos sangrento e a alma pura. […] gladiador defunto mas intacto/(Tanta violência mas tanta ternura), […]”. Os versos provêm do poema Balada, escrito “em memória de um poeta suicida”.
Trinta e oito anos se passaram desde a morte de Glauber. Não se trata de ficar preso ao passado, apenas de fazer justiça, especialmente no momento em que o governo ameaça o cinema brasileiro. Sem apagar da memória a experiência acumulada, acertos e falhas cometidas de lá para cá devem ser admitidos. A disfuncionalidade da Ancine é notória. Mas a necessidade de reformar o modelo institucional e a política do setor cinematográfico deve prever um período de transição durante o qual projetos em andamento sejam finalizados e compromissos já assumidos honrados, evitando a todo custo medidas intempestivas que paralisem a atividade.
Onde estão os Ricardo Galvão da Ancine? A diretoria atual e as passadas estão devendo manifestações públicas em defesa de suas decisões, contraditando declarações do presidente com o mesmo destemor e contundência de Galvão, diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que considerou a atitude de Bolsonaro “pusilânime e covarde” ao acusar o Inpe de estar “a serviço de alguma ONG”.
Capaz como poucas de desarrumar o arrumado, a voz de Glauber faz falta nessas horas.
Exemplo de coragem é o de Josias Teófilo, diretor do documentário Jardim das Aflições, de 2017, segundo o qual “se Bolsonaro acabar com a Ancine será o dilúvio. Vai acabar com o cinema brasileiro”. Ele declara que o presidente “está muito mal assessorado”, tanto em relação ao seu filme quanto aos dos outros (O Globo, 27/7/2019).
Teófilo recusou a proposta feita por Bolsonaro de que desistisse da autorização recebida da Ancine para captar 530 mil reais, por meio da Lei do Audiovisual, para financiar a produção do seu novo projeto, o documentário Nem Tudo se Desfaz. Em troca da desistência, receberia apoio para promover uma campanha de crowdfunding. Teófilo foi claro: “apesar dos graves efeitos que as falas do presidente podem ter sobre meu filme, esta situação me deu a independência que sempre tive, mas que ninguém conhecia”.
A nova geração de caciques do cinema brasileiro que se reuniu com o secretário de Comunicação do governo no mesmo dia em que o presidente anunciou a intenção de extinguir a Ancine parece bem orientada. Segundo declarações do produtor Rodrigo Teixeira, dadas a Mônica Bergamo (Folha de S.Paulo, 27/7/2019), é possível discutir o aperfeiçoamento da estrutura e como ela “pode melhorar através do diálogo produtivo” – premissa correta, desde que não resulte em mera acomodação que perpetue deformações existentes.
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