A Greve Internacional Feminista tomou as ruas do Porto e de outras cidades portuguesas pela primeira vez em 8 de março, recomendando às mulheres que, naquele dia, não fizessem nenhum trabalho doméstico: “E se hoje não lavar a louça? E se não passar a ferro?”, diziam os cartazes CREDITO: JULIANO MATTOS_2019_ PROJETO ATIVISMO EM FOCO
As radicais
A novidade brasileira na cena feminista de Portugal
Adriana Negreiros | Edição 156, Setembro 2019
Julia Favero custou a acreditar no que via. Um dos pôsteres que ela afixara na cafeteria da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto havia sido adulterado. O cartaz em fundo vermelho convidava as alunas da FBAUP – “efebaupe”, como dizem os portugueses – a participar da primeira reunião do recém-inaugurado coletivo feminista formado na escola, o Fofolete Molotov, atualmente com vinte integrantes. O segundo “a” da palavra “alunas” fora grosseiramente transformado em “o” com uma caneta esferográfica azul, que, por causa da força empregada, quase rasgara o papel cuchê. “E os alunos?”, perguntava o interventor em um canto do pôster, dessa vez utilizando uma caneta branca – a mesma cor que a jovem escolheu para escrever sua resposta. “E mais uma vez tudo é sobre os homens…”, registrou, em letras maiúsculas. Logo abaixo, entre parênteses, em caligrafia cursiva caprichada, ela anotou: “Mulheres merecem um espaço só delas.”
A estudante tem 21 anos, um piercing no nariz, 27 tatuagens (desenhos e mensagens pelo corpo que incluem animais, palavrões, armas e flores) e vive no Porto desde setembro de 2018. Antes, morava com os pais, um químico e uma enfermeira, na Vila Madalena, em São Paulo, onde começou a estudar cinema em uma universidade privada. Como achava o curso fraco e não lhe apetecia o ambiente do campus, que julgava excessivamente liberal – do ponto de vista das ideias político-econômicas, não dos costumes –, abandonou as aulas. Durante uma pesquisa pelos sites das universidades europeias, gostou do plano de estudos da FBAUP e convenceu os pais a financiar sua mudança para Portugal.
De volta à cafeteria, dias depois, Julia sentiu um palpitar no peito ao dar de cara com novos rabiscos no cartaz. “Ler Virginia Woolf. Um quarto que seja seu. Ajuda a perceber o feminismo”, alguém recomendou, sublinhando a palavra “feminismo” com dois riscos. Também puxou uma seta a partir da resposta dela. “Porquê restringir a luta?”, indagou – e, no meio do cartaz, à guisa de gracejo, desenhou letras e sinais gráficos que, interligados, formavam o desenho de um porco.
O “porquê” interrogativo escrito à maneira dos portugueses e o uso do verbo “perceber” no sentido de “entender” fizeram a moça deduzir que seu interlocutor não era um brasileiro ou uma brasileira – há mais de 12 mil estudantes do país nas universidades portuguesas. Também supôs que se tratasse de um homem, pela natureza das críticas. Como o cartaz estivesse praticamente tomado por rabiscos, Julia arrancou uma folha do caderno pautado que trazia na bolsa para escrever uma resposta aos comentários. “Você tem a pachorra e a pretensão de insinuar que não sabemos o que é feminismo, que não lemos Virginia Woolf e que, no seu lugar extremamente privilegiado de homem, pode nos ensinar sobre o que é nosso próprio movimento”, registrou, com as palavras mais fortes, como “pachorra” e “pretensão”, destacadas em maiúsculas. Julia também se indignara com a citação de Virginia Woolf, pois uma de suas obras preferidas é, justamente, Um Teto Todo Seu (como o livro foi intitulado no Brasil). Ela sugeriu ao interlocutor continuarem a discussão pessoalmente e deixou anotado o número de seu celular. Não tardou a receber uma mensagem de texto.
De fato, conforme deduzira, tratava-se de um português e, como ela, estudante de graduação do curso de belas-artes. Trocaram por celular algumas ideias truncadas, que não progrediram a ponto de encaminhá-los para uma conversa pessoal. No coletivo Fofolete Molotov, as coisas também seguiam tensas, pois ela se deu conta de que a sua insistência em evitar a presença de homens nas reuniões talvez seja uma disputa inglória, ou mesmo uma perda de tempo – a proposta enfrenta a resistência não apenas dos rapazes, mas, para sua surpresa, também de boa parte das moças da universidade.
Na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Flup), distante 3,2 km do prédio onde Julia estuda, a capixaba Isabelle Rios, 22 anos, fazia certo esforço para que seu senso de humor não provocasse uma crise entre ela e as colegas portuguesas. Quando ouviu de uma estudante que os rapazes deveriam ser incentivados a se pronunciar nas reuniões do Coletivo Feminista de Letras, ela pensou, rindo por dentro: “Nossa, faz tempo que não escuto aquele timbre grave. Os homens nunca falam!” Uma portuguesa insistiu: “Precisamos saber o que eles pensam.” Em vez de verbalizar a ironia, Isabelle tentou ser didática. Mobilizou o conceito de “lugar de fala” e explicou que as mulheres devem falar por si, sem a mediação de um homem. “É muito complicado aceitar homens como protagonistas de um movimento feminista. Eles ainda não entenderam que chegou a nossa vez de produzir conhecimento”, ela me disse em uma cafeteria no Porto, durante uma tarde chuvosa.
Filha de um médico e de uma advogada, Isabelle largou o curso de história na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) para fazer faculdade de filosofia em Portugal. Mudou de área por influência dos autores com os quais teve contato no início do curso universitário, entre eles Simone de Beauvoir, Djamila Ribeiro, Sueli Carneiro e as americanas Angela Davis e Patricia Hill Collins. Ela fazia parte do coletivo feminista da Ufes e só deixou o Brasil por considerar que, em razão do clima político e da apologia ao anti-intelectualismo no país, talvez fosse mais seguro tentar uma carreira acadêmica no exterior – seu objetivo é ser professora universitária.
Isabelle é negra e tem cabelos cheios de cachos, que ela se esforça para manter altos e volumosos. “Quando comecei a estudar teoria, entendi a importância daquilo para mim. Eu não sabia que sofria racismo, e sofria diariamente, desde o nascimento. Perceber isso muda totalmente as coisas”, afirmou.
No Coletivo Feminista de Letras, Isabelle é a voz dissonante em relação à presença masculina nas atividades do grupo, com cerca de oitenta integrantes, incluindo homens e mulheres cis e trans. Aproximadamente um terço dos participantes é formado por brasileiras. Quando está no comando das assembleias, ela finge não ver quando um aluno levanta a mão e pede a palavra. “Ignoro mesmo. É uma atitude política”, explicou.
Por causa de sua defesa de um espaço exclusivo para as mulheres, Isabelle já foi acusada de preconceito. Alguns de seus opositores consideram sua atitude binária. Ao separar o grupo entre homens e mulheres, estaria se afastando da teoria queer, segundo a qual o gênero é uma construção social. “Se a pessoa é queer, então o coletivo dela é outro. Não é o de mulheres”, rebateu Isabelle, que tem um diagnóstico para o tipo de feminismo predominante em Portugal: “Suave, para passar pano morninho para os homens.” “Não sai do patriarcado”, avaliou.
A portuguesa Diana Pinto é estudante de história da Flup e tem 22 anos, embora as roupas elegantes e a fala articulada, sem gírias ou palavrões, deem-lhe um jeito de mulher mais madura. É uma feminista que vê os homens como potenciais aliados. Costuma agir com paciência quando escuta alguma barbaridade de um colega ou lê insultos dirigidos às mulheres, como a inscrição “Todas as gajas do coletivo são umas putas”, na porta do banheiro feminino da Faculdade de Letras.
“Minha tendência primeira é tentar educar. Sou programada para isso”, explicou-me, enquanto arrumava os óculos com aro de tartaruga, no rosto de pele muito alva emoldurado por cabelos lisos e acobreados, na altura do ombro. Nem sempre, porém, ela consegue manter a linha. Durante um encontro do coletivo, um rapaz interrompeu a reunião para afirmar que todas as feministas eram “feminazi” – junção de “feminista” com “nazista”. Diana pensou em explicar ao jovem porque ele estava errado, mas foi tomada pela irritação. “Não te devo nada”, reagiu, acrescentando que não iria perder tempo discutindo o assunto.
Nas conversas sobre feminismo com as colegas brasileiras, Diana costuma ouvir os argumentos contrários aos seus pontos de vista com especial atenção. Identifica-se com o feminismo interseccional (segundo o qual mulheres sofrem diferentes discriminações, conforme sua cor, orientação sexual e classe social, dentre outros aspectos), por considerá-lo o mais eficaz contra a opressão, mas se diz aberta a outras vertentes. Uma de suas opiniões que choca as companheiras do Brasil é a de que a reunião de vários grupos oprimidos em um mesmo espaço é positiva. “É um bocadinho difícil para a pessoa portuguesa compreender o fato de haver espaços diferentes para lutas diferentes, porque não estamos acostumados a fazer assim. Muitas de nós pensam que não termos divisionismo é antissectário. Estamos todos juntos pela luta de toda a gente, e isso é bom”, defendeu.
Uma das ações que a levou para a militância feminista foi a campanha da equidade menstrual. Durante uma viagem à Inglaterra, uma amiga sua, também integrante do coletivo, observou que absorventes higiênicos eram postos à disposição das mulheres em alguns banheiros públicos. A moça voltou decidida a lutar para que o mesmo ocorresse na Universidade do Porto. Ela e suas colegas arrecadaram dinheiro, compraram caixas, encheram-nas de absorventes e colocaram nos banheiros femininos – e também nos masculinos, em respeito aos transexuais. “Se entendemos o motivo do papel higiênico ser gratuito, pois toda a gente tem a necessidade de usá-lo, por que os produtos menstruais não são? Não posso escolher entre ter ou não período”, explicou.
Diana afirmou ter muito a aprender com as estrangeiras. Guarda a impressão de que, no Brasil, bem cedo as meninas se tornam feministas, ao contrário do que ocorre em Portugal, onde a descoberta do movimento costuma acontecer na universidade. A causa ganha força no período das celebrações acadêmicas, quando são frequentes as denúncias de abusos sexuais contra alunas alcoolizadas. Em 2017, uma estudante foi violentada em um ônibus do Porto após sair da Queima das Fitas, uma das principais festas estudantis da cidade. “Sempre há quem diga, como aconteceu ali, que a culpa é da rapariga, porque ela estava muito bêbada ou de calções [shorts]”, disse. “A minha ideia, como portuguesa, é de que as brasileiras são mais bem educadas para o feminismo do que nós, mais ainda para a causa interseccional. Aqui, o feminismo veio depois e como oposição ao machismo, principalmente em relação ao assédio.”
Quando morava em São Paulo, Julia Favero interessava-se pelo feminismo, mas não era uma ativista. Seguia perfis dedicados ao assunto nas redes sociais, lia artigos em blogs especializados e, nos momentos de maior dedicação ao tema, aventurava-se por leituras mais densas. Ficou particularmente impressionada com as ideias da americana Andrea Dworkin, famosa por combater a pornografia – num de seus livros mais populares, Intercourse, a escritora falecida em 2005 define o sexo heterossexual como uma violação. Julia identifica-se com o chamado feminismo materialista e anticapitalista, para o qual a opressão da mulher está relacionada às condições materiais de existência, e opõe-se ao feminismo liberal, individualista e mais brando – este luta por igualdades de oportunidades com os homens; o materialista quer destruir o patriarcado. Mas, dentre todas as vertentes do feminismo, é do interseccional que a estudante gosta mais.
Logo nos primeiros dias de aula, no ano passado, ela se aproximou de duas brasileiras, também estudantes de belas-artes, a capixaba Elisa Villela, 19 anos, e a carioca Sophia de Luizi, 20 anos, que, apesar do interesse pelo feminismo, também não eram ativistas. Identificaram-se umas com as outras não só por causa da trajetória parecida – abandonar os cursos no Brasil para iniciar uma nova vida acadêmica na Europa –, mas porque todas as três tinham a mesma reclamação imediata: não encontravam boas frutas nos mercados locais. Numa tarde, enquanto conversavam amenidades e trocavam impressões sobre o cotidiano em Portugal, tiveram a ideia de procurar o coletivo feminista da faculdade, que, imaginavam, poderia ser um bom ambiente para fazer novas amizades.
Na primeira reunião da associação de estudantes da qual participaram, resolveram se informar com as alunas veteranas sobre como fazer para integrar o coletivo feminista da escola. O tom da pergunta foi de total naturalidade, como se indagassem qual era o caminho do banheiro. Elas davam por certo que uma escola de belas-artes tivesse um espaço para as mulheres discutirem o feminismo. As colegas portuguesas, porém, fizeram ares de espanto. Não havia nenhum coletivo. “Mas por que não têm?”, indagou Sophia. “E por que precisaríamos de um?”, disse uma portuguesa. As três brasileiras se entreolharam, “chocadas”, como definiu Julia.
Nos dias seguintes, o assunto ocupou boa parte das conversas das três estudantes. Elas estavam decepcionadas, pois uma das expectativas em relação aos estudos na Europa era a de que encontrariam um ambiente acadêmico vibrante, com discussões acaloradas. “Mas encontramos um lugar apolítico, estranhíssimo”, contou-me Julia, no espaço cultural Maus Hábitos, no Centro do Porto, um dos principais endereços da cena alternativa da cidade. Enquanto fumava e mexia nos cabelos descoloridos – a raiz mantém a cor original, castanha –, ela narrou como o desalento deu lugar à empolgação. “Se não há um coletivo, então vamos criar um”, sugeriu às amigas.
Desse lampejo até o primeiro cartaz anunciando as atividades do grupo passaram-se quase dois meses. Em novembro, finalmente, decidiram criar um zine para divulgar a novidade. Em uma folha A4 dobrada ao meio, Favero desenhou no centro uma vagina com uma flor. A ilustração foi rodeada por palavras que sintetizavam os temas a serem discutidos no coletivo: “gênero”, “silenciamento”, “misoginia” e “patriarcado”, mas também “prostituição”, “pelos” e “boceta”. Durante a produção do zine, ela sugeriu, brincando, que talvez devessem desenhar uma Fofolete – aquelas bonequinhas vendidas no Brasil da década de 1970 até o início dos anos 2000, em caixas tão pequenas quanto as de fósforo. Elisa gostou da ideia e propôs colocar um coquetel molotov na mão da boneca. Surgiu, assim, o nome do coletivo – Fofolete Molotov. Oito exemplares do zine foram vendidos por 70 centavos de euro (cerca de 3 reais). Com o dinheiro arrecadado, as três compraram o material necessário para fazer os cartazes convocatórios para a primeira reunião do grupo.
Apesar de alguns protestos, como as adulterações nos pôsteres, as amigas conseguiram a participação de quinze mulheres – as três amigas eram e são as únicas brasileiras do grupo e, também, as mais atuantes. Na primeira reunião, em vez de discutirem as pautas dos próximos encontros, como planejado, elas passaram mais de uma hora explicando às presentes porque não fazia sentido aceitar homens no coletivo. Algumas portuguesas confessaram o temor de serem consideradas extremistas por isso. Chegaram a citar, com pavor, o termo feminazi. As três passaram a ser vistas, na Faculdade de Belas Artes, como tais – ou, na melhor das hipóteses, como “as brasileiras problemáticas”.
Até se mudar para Portugal, Isabelle Rios nunca tinha sido chamada de radical quando conversava sobre o feminismo. Julgava-se, inclusive, bastante moderada. Na primeira vez que participou da reunião de um coletivo no Porto e teve suas posições classificadas como extremistas, controlou-se para não cair na gargalhada. “Vocês não estão manjando, vocês não têm ideia do que é ser radical. Se eu fosse radical, nem estaria aqui, queridas”, pensou em dizer, mas preferiu sugerir às colegas que lessem e estudassem mais, como ela própria tem feito na maior parte do tempo livre desde que saiu do Brasil. Como prefere acordar cedo, Isabelle quase não frequenta as festas da juventude universitária do Porto, pois muitas começam depois das onze da noite, quando ela já está na cama.
Uma das conclusões a que chegou após uma série de leituras foi a de que as mulheres portuguesas, mesmo as mais jovens, ainda carregam as marcas da moral salazarista. No Estado Novo português, que durou de 1933 até a Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, a virtude da mulher estava associada à compreensão, à meiguice e à submissão. No livro Amor e Sexo no Tempo de Salazar, a jornalista Isabel Freire escreveu que uma mulher que seguisse à risca a ideologia estado-novista transformaria a sua vida em um “inferno de autodomínio”: “Toda e qualquer espontaneidade, física ou psicológica, era de evitar. Tudo estava sujeito a aviso, precaução, regulamentação e, na maior parte dos casos, proibição, nomeadamente a convivência com mulheres emancipadas, intelectuais, com as ‘indisciplinadas ou de espírito crítico’.” Segundo a jornalista, “o melhor era que a rapariga nunca tirasse o seu cinto moral de autocastidade”. Isabelle identifica resquícios dessa moral inclusive na forma como algumas de suas colegas se vestem. “Todas iguais, muito cobertas, no inverno ou no verão.”
Uma das principais autoridades em feminismo em Portugal, a escritora Manuela Tavares – autora de Feminismos: Percursos e Desafios (1947-2007) e pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Gênero da Universidade de Lisboa – avalia que “as fragilidades dos feminismos no país estão ligadas a um contexto de 48 anos de ditadura”. Ela explicou que, durante o Estado Novo, as lutas das mulheres foram menosprezadas até mesmo pelos movimentos de esquerda. “Havia a concepção de que a emancipação feminina só seria possível com um regime socialista. Teria que se lutar primeiro por esse novo regime, que de certa forma resolveria também a questão dos direitos das mulheres dentro da luta mais geral do proletariado.”
No Brasil, por outro lado, “o feminismo não deixou de existir por causa das ditaduras, seja no Estado Novo [de 1937 a 1945], seja no ciclo militar [de 1964 a 1985]”, conforme disse a historiadora baiana Iracélli Alves. Em seu doutorado na Universidade Federal Fluminense, ela investiga a experiência das feministas no Partido Comunista Brasileiro entre as décadas de 1940 e 1970 – e, como parte de suas pesquisas, passou uma temporada na Universidade do Porto, onde pôde se familiarizar com as lutas das portuguesas. De acordo com Iracélli, no Brasil o feminismo se reinventou durante os regimes de exceção. “Na década de 1970, as exiladas começaram a voltar, e a troca de experiências com as que ficaram ajudou na construção do feminismo no país.”
Em Portugal, apenas nos estertores da ditadura salazarista, no início dos anos 1970, ocorreram focos de um feminismo mais radical. Foi em 1972, dois anos antes da Revolução dos Cravos, que Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa publicaram Novas Cartas Portuguesas, livro prontamente tido como pornográfico e recolhido pela censura. Na obra, as “três Marias”, como ficaram conhecidas, denunciavam em prosa e verso a opressão contra as mulheres durante a ditadura salazarista. “Frágeis são os homens deste país de nostalgias idênticas e medos e desânimos. Fragilidade em tentativas várias de disfarce: o desafiar touros em praças públicas, por exemplo, os carros de corridas e lutas corpo a corpo. Ó meu Portugal de machos a enganar impotência, cobridores, garanhões, tão maus amantes, tão apressados na cama, só atentos a mostrar picha”, escreveram as autoras na obra – “picha”, no vocabulário de além-mar, tem o mesmo significado que “pica” no Brasil. As três Marias foram processadas pelo Estado, mas logo veio a democracia, e elas foram absolvidas pela Justiça.
Com o fim do salazarismo, as vocações mais extremas do feminismo não floresceram. “Em Portugal, a revolução foi de esquerda, com uma grande preocupação social em assegurar direitos para homens e mulheres”, avaliou Inês Amaral, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e coautora de um estudo que compara os ativismos feministas no Facebook em Portugal e no Brasil. Segundo ela, como algumas das principais reivindicações das feministas portuguesas foram atendidas pelos governos após o 25 de Abril, há menos terreno fértil no país para o cultivo de uma militância combativa. “O feminismo radical passou a não ter sentido, pois suas demandas foram resolvidas pelo Estado.”
Como exemplos de conquistas das mulheres, Inês citou o direito à interrupção voluntária da gravidez (o aborto é permitido em Portugal desde 2007) e as cotas em listas de candidaturas para a Assembleia da República, o Parlamento Europeu e os cargos municipais – as mulheres devem representar, pelo menos, 40% dos candidatos. “Claro que Portugal não tem tudo resolvido. Mas, aqui, o Estado é um parceiro das organizações das mulheres e do movimento feminista, ao contrário do que ocorre no Brasil. Se olho para o Senado brasileiro, quase não vejo mulheres. Lá, faz-se mesmo necessário um feminismo radical”, disse a professora. Em Portugal, a proporção de mulheres no governo do país e no Parlamento é superior a 36%. O número coloca o país em situação mais favorável do que a média da União Europeia – 30,2% nos governos nacionais e 29,9% nos Parlamentos. Os dados são do Eurostat, que produz as estatísticas da União Europeia.
A ativista Anabela Santos, do centro social A Gralha, sediado no Porto – “espaço organizado a partir dos princípios anarquistas da autogestão” –, discorda de Inês Amaral. Ela acredita que Portugal necessita, sim, de um feminismo radical. “O Estado ainda é patriarcal”, avaliou. Anabela cita a violência contra as mulheres como uma das evidências de que é preciso enfrentar sem concessões o machismo estrutural da sociedade portuguesa. Tida como bastante aguerrida pelas feministas locais, ela considera a militância em seu país excessivamente branca, heterossexual, jovem e institucionalizada, pois muitas vezes está vinculada a partidos políticos. Foi esse sentimento que a levou a ter um diálogo fecundo com as feministas vindas do Brasil. “Aprendo imenso com elas”, afirmou. Anabela admira especialmente o modo de agir das brasileiras que atuam na militância negra, como as mulheres do núcleo antirracista do Porto, coletivo fundado em junho deste ano.
“Temos uma novidade no feminismo português: a presença cada vez maior de mulheres que não pertencem a organizações ou coletivos e levam sua voz para o espaço público sem mediação”, contou Carla Cerqueira, pesquisadora da Universidade do Minho e coordenadora do grupo de Investigação e Políticas, da Global Alliance on Media and Gender, ligada à Unesco e focada na promoção da igualdade de gênero na mídia. Muitas dessas vozes, segundo Carla, são de brasileiras. “E, entre as organizações existentes, muitas são formadas fora das instituições”, ponderou.
Além de ocupar espaços ditos “horizontalizados”, em que não há liderança ou laços com outros grupos organizados, os brasileiros também têm frequentado espaços formais. No centro de estudos de gênero do Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade do Minho, nove dos dez integrantes são brasileiros (há ainda uma ucraniana). “A participação portuguesa ainda não vingou”, lamentou Sérgio Rêgo, de Carua-ru (PE), um dos fundadores do grupo. Em seu doutorado de sociologia, ele investiga os elos entre as publicações feministas acadêmicas do Brasil, de Moçambique e de Portugal – ou o que chama de “feminismo lusófono”. Para Sérgio, o movimento feminista em Portugal “é menos organizado e tem menor visibilidade” do que o brasileiro. Mas, diferentemente do que ocorria no Brasil, o pernambucano não se sente rejeitado entre feministas em Portugal. “No Brasil, por vezes, havia impedimentos à minha presença. Compreendo, mas não percebo a participação masculina como nociva. A sociedade deve romper com o patriarcado e, para isso, os homens devem ser educados tanto quanto as mulheres”, disse.
No início do ano letivo de 2018-19, Isabelle Rios almoçava com algumas amigas no refeitório quando um grupo de rapazes sentou-se à mesa. Um deles, brasileiro e autodeclarado discípulo do escritor Olavo de Carvalho, passou a criticar, de forma jocosa, a aparência dos colegas: o corpo, a idade e a orientação sexual deles. Isabelle pediu ao jovem que parasse com os comentários. “Cala a sua boca”, reagiu o olavista, conforme a versão da estudante. “Você é mulher e deveria estar na cozinha, lavando louça, e não aqui, dando opinião.” Ela contou que, ao ouvir o insulto, ficou paralisada. Só conseguiu reclamar com a direção da faculdade dias depois, passado o susto.
Quando recebeu a notícia de que o inquérito contra seu agressor seria arquivado, Isabelle perdeu inteiramente o ânimo de participar da Greve Internacional Feminista em Portugal. A manifestação tomou as ruas das principais cidades do país em 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Em Lisboa, o público estimado foi de 20 mil pessoas, segundo a Rede 8 de Março, que reúne diversas associações de movimentos sociais do país e convocou a greve. Além da decepção com o desfecho do seu caso pessoal, havia outro motivo para Isabelle não ir à manifestação: “As pautas não são as minhas. Eu ia ficar sobrando.”
“Se as mulheres param, o mundo para” foi o slogan da greve “laboral”, como foi chamada. As principais reivindicações incluíam a distribuição justa do serviço doméstico entre maridos e mulheres, e o fim da desigualdade salarial – as portuguesas recebem por mês, em média, 225 euros a menos do que os homens. As organizadoras recomendaram às mulheres que, naquele dia, não fizessem nenhum dos trabalhos domésticos. “E se hoje não lavar a loiça? E se não passar a ferro?”, conclamavam cartazes espalhados por diversos pontos das cidades. Orientaram também que elas não fossem ao supermercado nem buscassem as crianças na escola – as tarefas deveriam ser realizadas pelos maridos.
No Porto, a concentração ocorreu na Praça dos Poveiros, no Centro da cidade. Dali, cerca de 7 mil manifestantes, a maioria mulheres, marcharam até a Praça de dom João I – um trajeto de pouco mais de 500 metros. Em meio ao mar de cartazes e faixas com palavras de ordem, destacavam-se imensos pôsteres com a imagem da vereadora carioca Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018. Aos gritos de “Marielle, presente” misturava-se o xingamento “Ei, Bolsonaro, vai tomar no cu”, pronunciado de maneira ritmada e acompanhado pelo som de uma batucada. Um desavisado que acordasse no meio daquela confusão, poderia jurar estar em pleno Rio de Janeiro.
“Temos uma atenção especial ao que se passa no Brasil”, explicou a psicóloga Patrícia Martins, uma das principais organizadoras da greve de 8 de março, militante da associação feminista A Coletiva e do partido político Bloco de Esquerda. Ela afirmou que episódios de violência e retrocessos democráticos verificados em outros países, especialmente nos que têm maior afinidade com Portugal, põem os movimentos locais em alerta. O sentimento de solidariedade parece ser incentivado pelo ambiente político. Desde 2015, Portugal é governado por uma coalizão de centro-esquerda que rejeita as medidas de austeridade econômica e defende os direitos de minorias. Além disso, nas últimas eleições portuguesas para o Parlamento Europeu, em maio último, os liberais e a extrema direita tiveram desempenho pífio, sem conseguir nenhum assento.
Em 2016, dois acontecimentos aproximaram ativistas brasileiros e portugueses. Um deles foi o estupro coletivo, por 33 homens, de uma adolescente de 16 anos no Rio de Janeiro. Em Lisboa, no Porto e em Coimbra mulheres foram às ruas protestar contra a agressão. O outro foi o impeachment da presidente Dilma Rousseff, classificado por muitas feministas como um “golpe misógino”. “E, nos últimos tempos, também tem vindo muita gente do Brasil, de esquerda, a fazer mestrados e doutoramentos”, disse Patrícia, que tem 30 anos – e cria um casal de gatos chamados Virgulino e Chica da Silva, em homenagem ao cangaceiro Lampião e à famosa escrava do século XVIII.
Na sala da sede portuense do Bloco de Esquerda, onde conversamos, destaca-se a inscrição “Marielle, presente!”. A imagem e o nome da vereadora são frequentemente estampados em sedes de partidos políticos, associações culturais, livrarias, universidades e muros das cidades. Em julho, a Câmara Municipal de Lisboa aprovou uma proposta do Bloco de Esquerda para dar o nome de Marielle Franco a uma rua. O retrato dela também é usado para decorar camisetas, lenços e até convites para festas – o que deixa Julia Favero irritada. “É muita falta de noção”, diz.
Mais revoltante ainda foi, para ela, um coletivo de festas do Porto ter organizado um baile no aniversário de um ano de morte de Marielle. “Puta oportunismo com a morte de uma mulher negra. Dar uma festa para um bando de europeus ficarem bêbados: de que modo isso faz jus à memória de Marielle?”, questionou. Ela chegou a mandar uma mensagem aos organizadores da festa pedindo que reconsiderassem a ideia. De nada adiantou.
Das festas que não usam a imagem de Marielle Franco, Julia costuma voltar para casa a pé, frequentemente sozinha. Algumas vezes, enquanto caminha pelas ruas, faz videochamadas com amigos e parentes do Brasil, a fim de matar as saudades e mostrar como é importante para uma mulher sentir-se segura ao andar pela cidade de madrugada, com o celular à vista.
As portuguesas, no entanto, não parecem sentir a mesma segurança à noite. Como parte de sua investigação para um doutorado na Universidade de Brasília, a brasiliense Adriana Souza passou um ano em Lisboa conversando com as pessoas sobre o modo como exercitavam o direito de ir e vir pelas ruas da cidade. Queria comparar os resultados com os colhidos em Brasília. Para tornar a apuração mais objetiva, criou o “índice de caminhabilidade do medo das mulheres” e categorizou a sensação em cinco gradações: ausente, leve, moderada, intensa e extrema. Em Lisboa, prevalece o medo leve; em Brasília, o moderado. Outra diferença entre mulheres de Portugal e do Brasil é o horário em que o temor predomina. Em Lisboa, 82% das entrevistadas disseram sentir-se ameaçadas à noite, e apenas 30% delas durante o dia. Em Brasília, quase 80% afirmaram ter medo a qualquer hora.
O assédio nas ruas é um tema caro a feministas brasileiras e portuguesas – e a forma como umas e outras lidam com a questão intriga pesquisadoras da área. Adriana Souza discutiu os resultados de sua investigação em centros de estudos lusitanos e foi convidada a integrar a equipe do Plano de Acessibilidade Pedonal de Lisboa, cujo objetivo é melhorar as condições de locomoção a pé ou em cadeira de rodas pela capital. A experiência levou a pesquisadora à conclusão de que, apesar das gradações, a natureza do medo das mulheres é a mesma. Em Lisboa ou em Brasília, elas se sentem cerceadas em seu direito de ir e vir, “objetificadas, controladas e invisibilizadas”. No Brasil, no entanto, a experiência da violência é mais intensa, o que gera, conforme sua análise, “uma forma mais aguerrida de lidar com a dor”.
Além de ter medo de ser estuprada, a mulher brasileira teme sofrer outros tipos de violência. De acordo com a pesquisa, a possibilidade de sofrer agressão sexual lidera o ranking de medos tanto em Lisboa como em Brasília, mas nesta o medo de sequestro e assassinato aparece em segundo lugar. Quando Adriana perguntava às lisboetas sobre isso, elas olhavam espantadas, como se fosse absurdo uma pessoa temer ser sequestrada e morta no meio da rua. O que elas mais temem, depois do estupro, é o roubo.
A pesquisadora apontou que, embora o discurso das brasileiras contra a violência esteja num patamar avançado, as portuguesas têm muito a ensinar em termos de conquistas legais. Em Portugal, por exemplo, faz quatro anos que o piropo é crime.
Piropo é como os portugueses chamam os galanteios, ou as cantadas, como se diz no Brasil. “Piropo não é um elogio. Um piropo é um exercício de poder”, definiu a jornalista Liliana Borges, do jornal Público, em um artigo sobre seu confronto com um homem que, numa rua em Lisboa, lhe lançou um “olá, princesa”. “Não voltes a fazer isso”, disse ela para o sujeito.
Desde 2015, abordagens desse tipo podem render um ano de prisão – ou três, caso a vítima tenha menos de 14 anos. A condenação está prevista no artigo 170 do Código Penal português, que classifica como crime o ato de “importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de caráter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contato de natureza sexual”. A mudança no Código Penal se deu em decorrência da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica – chamada Convenção de Istambul –, em vigor desde agosto de 2014 e da qual Portugal é signatário.
No Brasil, a lei nº 13.718, de 24 de setembro de 2018, define como importunação sexual “praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou de terceiros”. Se, em Portugal, tem-se por certo que os piropos são contemplados pelo Código Penal – a ponto de o artigo 170 ser conhecido, popularmente, como “Lei do Piropo” –, no Brasil não há consenso entre os juristas quanto ao enquadramento das cantadas de rua entre os atos libidinosos.
Os dados do Ministério Público português mostram que os inquéritos instaurados aumentaram desde a mudança da lei. Em 2015, foram 659. No ano passado, 903. Entretanto, dos 2 262 inquéritos abertos entre 2015 e 2017, pouco mais de 5% resultaram em condenação nos tribunais judiciais de primeira instância. A resposta da Justiça aos crimes envolvendo mulheres é um dos pontos centrais da discussão feminista em Portugal. Para muitas das ativistas, a Justiça no país é machista, e a conduta dos magistrados contribui para o aumento dos casos de feminicídio. Em 2018, de acordo com levantamento do Observatório de Mulheres Assassinadas, da ONG União de Mulheres Alternativa e Resposta (Umar), a morte de 28 mulheres em Portugal – oito a mais do que no ano anterior – se enquadraria em crime de gênero. No Brasil, cuja população é 21 vezes maior que a de Portugal, 1 173 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2018, conforme levantamento do Monitor da Violência, uma parceria entre o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e o portal G1.
“Há quem diga que não temos os mesmos motivos que as brasileiras para ir às ruas. Parece-me um absurdo ouvir isso”, afirmou a hispano-portuguesa Aída Suárez Gutierrez, proprietária da Confraria Vermelha, livraria no Porto especializada em livros feministas. Aída foi uma das principais incentivadoras da campanha “Não sou só cona”, de 2016, versão local do “Chega de Fiu Fiu” – campanha contra o assédio sexual promovida pelo projeto feminista Think Olga, de São Paulo, em 2013. “Cona” é um termo vulgar para vagina.
Idealizada por um coletivo feminista, a campanha consistiu em espalhar adesivos com a hashtag #nãosousócona em alguns pontos das maiores cidades do país, como banheiros públicos, postes e lixeiras. Mulheres também foram incentivadas a ir às redes sociais e relatar casos de assédio. “Ele não tinha menos de 50 anos. Um grande carro, uma aliança baça no dedo, um fato coçado, a barba por fazer. E a comer com os olhos uma garotinha de 13 anos. Hoje, ter-me-ia enfiado pelo carro adentro e partia a prótese dentária ao gajo. Com 13 anos, só consegui correr”, relatou uma moça, no Facebook. “Passo por uma obra. Tem um obreiro. É simplesmente a milésima vez que ele mexe comigo. E vai ser a número 900 que faço um escândalo na rua”, escreveu outra.
Cada uma à sua maneira, Julia Favero e Isabelle Rios – que não se conhecem – vêm tentando impor suas ideias aos grupos feministas que frequentam.
Julia e suas amigas brasileiras ainda não conseguiram convencer as portuguesas a proibirem rapazes no coletivo Fofolete Molotov. A questão deve ser votada em setembro, logo no início do próximo ano letivo, e elas temem ser derrotadas.
Isabelle, por sua vez, tenta organizar o primeiro coletivo feminista de negras da Universidade do Porto – um espaço onde todas possam “falar a mesma língua e reivindicar as mesmas coisas”. Dez mulheres já se mostraram interessadas, a maioria delas de nacionalidade brasileira. Às amigas que perguntam o motivo de ela continuar participando do Coletivo Feminista de Letras, estressando-se com os rapazes que frequentam as reuniões e com o teor das campanhas, ela sempre dá a mesma resposta, nada radical: “Porque ainda tenho esperanças.”
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