minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    INTERVENÇÃO DE PAULA CARDOSO SOBRE FOTO DA FOLHAPRESS

memórias do cárcere

Presos da Lava Jato unidos contra os ratos e o tédio

Condenados por crimes de colarinho-branco já caçaram roedores e fizeram faxina em complexo penal; transferidos para hospital penitenciário e sem ter o que fazer, gastam o tempo com dominó  

Felippe Aníbal | 11 set 2019_12h05
A+ A- A

Há três meses e meio, a principal ocupação do ex-ministro José Dirceu é escrever. Desde 18 de maio – quando foi preso pela quarta vez em decorrência de sua condenação no âmbito da Operação Lava Jato –, o petista ocupa uma cela improvisada no Hospital Penitenciário (HP), que faz parte do Complexo Médico Penal do Paraná (CMP), localizado em Pinhais, Região Metropolitana de Curitiba. O ex-deputado não está doente, e tampouco há leitos médicos no anexo: o hospital está desativado. As enfermarias foram adaptadas e passaram a servir como prisão a 36 detentos classificados informalmente pelo presídio como colarinhos-brancos – condenados ou que respondem por crimes financeiros. Do grupo fazem parte, além de Dirceu, o ex-operador do PSDB Paulo Vieira de Souza, conhecido como Paulo Preto, e o lobista João Augusto Henriques, ligado a Eduardo Cunha. 

Os colarinhos-brancos foram transferidos para o prédio do hospital em 16 de maio – dois dias antes de Dirceu voltar à prisão. Antes, eles ficavam detidos no bloco das galerias, separado do hospital pela rua que corta o complexo. As seis galerias, com capacidade para 659 presos, abrigam mais de mil pessoas. Desde as primeiras prisões da Lava Jato, em 2014, políticos, empresários e diretores de corporações passaram a ficar detidos na 6ª galeria – que já recebeu presos como o executivo Marcelo Odebrecht, o ex-deputado Eduardo Cunha e o ex-governador Sérgio Cabral, hoje transferidos para outras unidades. No princípio, as instalações eram inóspitas, com ratos e baratas em meio ao cheiro de mofo e creolina. As condições só melhoraram a partir da iniciativa dos “Lava Jatos”, que passaram a cuidar da faxina em regime de escala, com materiais de limpeza levados pelas próprias famílias. Nas outras galerias, ficam custodiados com transtornos psiquiátricos (na 1ª e 2ª), detentos com doenças contagiosas, de tuberculose a Aids (3ª e 4ª), e presos de outras unidades que estão ali para tratamento médico (5ª).

Na enfermaria adaptada para os colarinhos-brancos, no pavilhão posterior à entrada, aos fundos, tudo é improvisado, mas eles escaparam da superlotação. As seis salas onde havia leitos hospitalares agora alojam 36 presos. No outro canto, há celas com mais 26 vagas, somando 62 no total. A enfermaria tem cerca de cem metros de comprimento e, em cada uma das extremidades, há um solário aberto aos presos do início da manhã ao fim da tarde. Durante o dia, os detentos podem circular pelas enfermarias e pelas celas e tomar banho de sol. 

Logo após a transferência, não havia camas e os detentos dormiam em colchões no chão. Agora, improvisaram-se estrados de madeira e camas de pinus feitos na Colônia Penal Agrícola, outra penitenciária da Região Metropolitana de Curitiba. Como não há armários nem prateleiras, malas e pertences dos presos ficam amontoados pelos cantos. Os detentos cuidam da faxina em regime de escala e comem da mesma quentinha servida ao restante dos presídios – nesta terça-feira, 10, por exemplo, o cardápio era “mais do mesmo”, segundo fontes do sistema penitenciário: arroz, feijão, macarrão e carne (desta vez, bovina). Hábitos da época da 6ª galeria foram mantidos, como a jogatina de dominó, caminhadas e os exercícios físicos usando garrafas pet como halteres. Não há canteiros de trabalho nem salas em que os presos possam frequentar cursos ou ter aulas.

Por decisão própria, Dirceu permanece isolado dos demais. Enquanto os outros dividem espaços maiores, ele fica sozinho em seu canto. A intenção do ex-ministro é redigir, ainda no cárcere, seu segundo livro de memórias. Como praticamente não há móveis, arquitetou uma espécie de mesa, usando uma caixa de papelão, reforçada com compensado de madeira. Sem cadeira, senta-se à cama e usa seu mobiliário improvisado como apoio para escrever.

Quem vive a rotina do sistema penitenciário descreve Dirceu como um preso disciplinado e adaptado aos códigos de conduta do presídio. É de pouquíssimas palavras, de fala mansa e só se manifesta quando necessário, embora sempre com cordialidade. Mesmo com outros petistas que estiveram presos na unidade – como os ex-tesoureiros do partido João Vaccari Neto e Delúbio Soares –, ele só conversava o essencial. Sequer participa das rodadas de dominó, das quais Vaccari era um dos organizadores. Quando, eventualmente, cruza com algum agente penitenciário nos corredores, baixa a cabeça, posiciona as mãos para trás e se volta para a parede. Além da escrita, divide parte do seu tempo com a leitura. “Quando ele contou que estava escrevendo o livro, perguntei o que ele achava dessa reviravolta [na Lava Jato]. Ele disse: ‘A gente sabia que isso tudo ia acontecer, que de algum jeito a verdade viria à tona. Vamos esperar.’ Mas não disse com raiva ou ressentimentos. [Estava] muito calmo, tranquilo”, contou a advogada Isabel Kugler Mendes, presidente do Conselho da Comunidade da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba – órgão vinculado ao Judiciário e que tem por atribuição acompanhar as condições de dez presídios e de delegacias da região.

Em regra, de cada galeria acaba emergindo um líder, ainda que informal. Quando há vistorias ou alguma demanda do grupo, cabe a esse representante fazer a ponte com as autoridades. Entre os colarinhos-brancos, o papel já foi exercido por André Vargas, Marcelo Odebrecht e Eduardo Cunha. Agora, a liderança está com Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto, apontado como operador de propinas do PSDB. “Mas ele não gosta que chamem ele de Paulo Preto. É dr. Paulo”, avisou Mendes. “Isso tira ele do sério. Ele ameaça de processo. Disse que já está processando dezenove pessoas que chamaram ele de Paulo Preto”, contou outra fonte do sistema penitenciário. 

Preso preventivamente pela Lava Jato em fevereiro, Vieira de Souza tem duas condenações em primeira instância – uma, a 27 anos; outra, a 145 anos de prisão. Atrás das grades, apesar da implicância com o apelido, logo se destacou dos outros presos. Circula por praticamente todas as enfermarias e celas, toma parte nos jogos de dominó e conversa com todos os colegas, dos presos da Lava Jato aos implicados em casos locais de corrupção. Também chama a atenção pela elegância. Na maior parte do tempo, adere ao vestuário determinado pela direção do presídio: calça de moletom cinza e camiseta branca, trazidos pelas famílias – os uniformes alaranjados do sistema penitenciário do Paraná estão em falta. Em audiências judiciais ou reuniões com advogados, no entanto, o preso faz questão de usar calça social, camisa, paletó e sapatos lustrosos, além de carregar sua pasta de couro. Está sempre barbeado, de cabelos penteados e cheirando a perfume. “Ele é elegante e de bons modos, sempre bem-arrumado, direitinho. Muito simpático e inteligente”, definiu a presidente do Conselho da Comunidade.

Preso desde abril de 2015, Vaccari Neto era, até a última sexta-feira, o detento mais antigo da Lava Jato. Foi solto. Segundo agentes penitenciários, nos primeiros meses, reclamava de perseguição por parte do então juiz federal Sergio Moro, que decretou sua prisão preventiva. Quando conversas de procuradores e de Moro vieram à tona, reveladas pelo The Intercept Brasil, o ex-tesoureiro do PT foi um dos que se sentiu vingado pelo fato de a cúpula da força-tarefa ter sido exposta à opinião pública. Vaccari era um dos mais ambientados à vida na penitenciária. Quando André Vargas exercia o posto de líder dos colarinhos-brancos, Vaccari era como seu “vice”. Era bastante próximo de Delúbio, um dos presos com quem dividia uma das enfermarias. Vaccari foi autorizado pela Justiça a deixar o CMP para cumprir o restante da pena usando tornozeleira eletrônica – em um regime chamado “semiaberto harmonizado”. Terá que permanecer, no entanto, em Curitiba. Vai morar na casa de um tio e trabalhar na CUT.

Da outra vez em que esteve preso no Complexo Médico Penal, Dirceu trabalhou na biblioteca. Passava seis horas por dia no espaço – uma sala de pé-direito baixo e sem janelas, que dispunha apenas de uma mesa e cadeira e um computador sem acesso à internet, além do acervo de cerca de quatro mil livros. A cada três dias trabalhados, abate-se um da pena. Além de registrar os empréstimos, cabia ao ex-ministro sugerir livros aos colegas, de acordo com o gosto de cada um. Dirceu catalogou o acervo etiquetando exemplar por exemplar e começou campanha incentivando que os livros trazidos aos presos por familiares fossem doados à biblioteca, após a leitura. “A biblioteca estava jogada. Ele deu a cara que tem hoje”, resume Mendes.

Hoje o posto de bibliotecário é ocupado pelo ex-prefeito de Araucária (PR) Rui Alves de Souza. Para o Conselho da Comunidade, Souza é o único que efetivamente trabalha na prisão. A Sesp (Secretaria de Estado de Segurança e Administração Penitenciária do Paraná), no entanto, considera a faxina e o programa de remissão pela leitura, respectivamente, como trabalho e estudo.

O prédio do Hospital Penitenciário tem mais de cinquenta anos e foi interditado no início de 2017, quando o então governador Beto Richa (PSDB) liberou recursos para uma reforma. Em 2019, o próprio Richa viria a ficar preso por dois períodos curtos no CMP, mas no bloco das galerias. Iniciadas em maio de 2017, as obras só foram concluídas em março deste ano e consumiram 631 mil reais, quase 35% a mais que o previsto.

Além dos presos famosos, o hospital abriga ainda ex-prefeitos e um ex-diretor da Assembleia Legislativa do Paraná Abib Miguel, o Bibinho, condenado a mais de 225 anos de prisão pela participação em um esquema de funcionários fantasmas no Legislativo paranaense. Quando Beto Richa esteve preso na unidade, Bibinho o presenteou com um porta-retrato de papelão, que fez com as próprias mãos, e que continha uma foto de seu pai, o também ex-governador José Richa. Outro dos colarinhos-brancos é o lobista João Augusto Henriques, apontado como operador de propinas do MDB e próximo a Cunha. Fosse só pelo tempo em que está atrás das grades, desde setembro de 2015, Henriques já teria direito a progredir ao regime semiaberto. Falta cumprir a reparação de dano arbitrada pelo Judiciário – a devolução de mais 1,5 milhão de dólares, segundo sua defesa, aos cofres públicos. Com bens apreendidos – incluindo 4,2 milhões de dólares localizados em uma conta no exterior –, o operador alega não ter condições de ressarcir o erário. Aos 66 anos, Henriques já passou por dois transplantes de fígado e, no período em que está preso, um de seus netos nasceu e ele não pode conhecê-lo. Pelos corredores do CMP, atribui-se a Henriques a imagem de um homem cansado e um tanto deprimido. A defesa é conduzida pela mulher dele, Luciana Henriques, que se mudou do Rio para Curitiba e concluiu novo pedido de progressão de regime. Vamos pedir a progressão mais uma vez porque, para quem não precisa estar mais preso, cada minuto é uma eternidade absurda, afirmou ela.

A mudança dos colarinhos-brancos das galerias para o hospital foi motivada por um problema crônico do sistema penitenciário paranaense: a superlotação. São 21,2 mil vagas e 28,2 mil presos, ou seja, excesso de 30%. Com a transferência, a 6ª galeria passou a ser ocupada por presos acusados ou condenados pela Lei Maria da Penha. Paralelamente, há déficit de servidores – de profissionais de saúde a agentes penitenciários. Segundo o Sindicato dos Agentes Penitenciários do Paraná (Sindarspen), o Complexo Médico Penal dispõe apenas de cinco agentes por turno, para fazer a “movimentação” dos presos. No total, são sete médicos, cinco enfermeiras e uma assistente social. Não há psicólogos. “Cinco agentes para cuidar de seis blocos e fazer movimentações de mil presos é muito pouco. Viola os protocolos [do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça], que determina a proporção de um agente para cada cinco presos”, disse o presidente do sindicato, Ricardo Miranda. “Concluímos um relatório de vistoria das dez unidades prisionais [de jurisdição do Conselho da Comunidade]. O CMP é, hoje, a pior. Está sob risco constante de rebeliões”, resume Mendes. “Dois anos atrás, era a melhor. Em pouco tempo, piorou muito” observou.

Esses fatores provocaram duas crises agudas no CMP ao longo de agosto: no dia 16 de agosto, uma tentativa de rebelião terminou com dois agentes feridos. Dez dias depois, um preso foi encontrado morto em uma das celas. Na tentativa de rebelião, os colarinhos-brancos não chegaram a ouvir os gritos dos presos da 3ª galeria, que tentavam fazer refém um agente penitenciário. Só souberam do motim, quando, no início da tarde, foram levados ao bloco das galerias, onde recebem a visita de familiares, sempre às sextas-feiras. “Se ainda estivessem na 6ª [galeria], é claro que estariam correndo perigo. Eles são visados, né?”, disse uma fonte do sistema penitenciário, sob condição de anonimato.

No ano passado, uma carta supostamente escrita de dentro do CMP acusava Vaccari, Vargas e ex-senador Gim Argello de terem regalias. O manuscrito descrevia que eles teriam presos como “guarda-costas” e “cozinheiro”, além de banhos de sol e visitas íntimas fora de hora. A Secretaria de Estado da Segurança Pública e Administração Penitenciária do Paraná (Sesp) e fontes do CMP negam que tenha havido qualquer privilégio não só a Vaccari, mas a qualquer um dos colarinhos-brancos. “Ressalta-se que eles recebem o mesmo atendimento – e alimentação – dos presos de outras galerias”, consta de nota emitida pela Sesp. Com a mudança para a enfermaria, no entanto, Vaccari perdeu uma de suas principais ocupações: ele era um dos que mais frequentava cursos oferecidos dentro da penitenciária – e que ajudam a abater a pena.

À margem disso, a preocupação do Conselho da Comunidade e de agentes penitenciários diz respeito às condições de todos os presos do CMP. Com o hospital ocupado pelos colarinhos-brancos, o Paraná deixou de contar com um espaço voltado exclusivamente ao atendimento de detentos. Quando precisam de atendimento médico, os presos são levados a hospitais públicos, escoltados por agentes penitenciários. “Para os agentes, a falta de ambulatório nas unidades gera uma dificuldade. A gente tem que tirar o preso e levar a atendimento. Desfalca ainda mais o efetivo”, disse o presidente do Sindarspen. A Sesp disse, em nota, que o HP “sempre atuou apenas em nível ambulatorial”, oferecendo “apenas o atendimento primário e de baixa complexidade”. “Os casos de média e alta complexidade sempre foram encaminhados para o hospital de referência da rede pública de saúde.” Além disso, mesmo com a transformação do HP em prisão, o CMP continua superlotado: eram 1 050 detentos, em 30 de agosto. “O CMP foi desvirtuado de sua função. Hoje, é como uma unidade qualquer: um amontoado de presos”, definiu Isabel Mendes.

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí