Meu nome é Bastianoni
Um dublê de spaghettis no Rio
Gustavo Zeitel | Edição 158, Novembro 2019
O italiano Giancarlo Bastianoni enfrenta, aos 79 anos, uma rotina pesada como síndico do prédio onde mora, na Lagoa, no Rio de Janeiro. “Trabalho molto e tenho que conciliar os desejos de todos os moradores”, ele afirma, enquanto se levanta, com algum esforço, do sofá da portaria recém-reformada. Daqui a alguns minutos, começa a reunião na administradora do condomínio.
Naquela sexta-feira, 11 de outubro, a pauta da reunião será dedicada ao aumento da conta de água do edifício. “O prédio está quebrado!”, brinca o italiano, ao ler o valor do boleto. A água não é a sua única amolação: o funcionamento dos elevadores também preocupa o síndico, que cuida ainda de outro edifício, localizado no Humaitá, bairro vizinho à Lagoa.
Bastianoni mora há 33 anos no Rio. Antes de enfrentar a dura vida de síndico, o italiano de 1,91 metro de altura encarou perigos aterradores: montou cavalos furiosos, dirigiu um carro em chamas e saltou de precipícios. Tudo isso porque, nas décadas de 1960 e 1970, foi o principal dublê de Bud Spencer, grande astro de faroeste spaghetti e de filmes de ação.
O faroeste spaghetti foi inventado na Itália e tornou-se um grande sucesso em todo o Ocidente naqueles anos. Sem se importar muito com a veracidade, os diretores italianos recriaram o Velho Oeste na Europa e passaram a contar histórias de caubóis, mexicanos e peles-vermelhas em filmes dublados, cujos atores italianos costumavam ocultar sua origem recorrendo a pseudônimos americanizados.
Bud Spencer – que media 1,94 metro – era o pseudônimo do ator napolitano Carlo Pedersoli. Com o bonitão Terence Hill (pseudônimo do veneziano Mario Girotti), ele formou a parceria mais famosa do faroeste spaghetti. Juntos, os dois atuaram em dezoito filmes, entre eles o blockbuster Trinity É o Meu Nome, dirigido em 1970 por Enzo Barboni. O público foi seduzido pela “química” da dupla, que dosava com maestria a brutalidade e o humor. “Os filmes eram para piangere e ridere [levar às lágrimas e fazer rir]”, explica o ex-dublê, enquanto bebe um gole de licor Cointreau em seu apartamento na Lagoa.
Em Trinity É o Meu Nome, Hill encarna o papel-título: um pistoleiro e andarilho que por acaso se encontra com o irmão, vivido por Spencer. Os dois acabam se envolvendo num conflito por terras e se convertem de bandidos a mocinhos. “No Trinity, eu era apenas um dublê de briga, não corri tanto perigo”, afirma Bastianoni. A pancadaria fazia muito sucesso nos filmes. O dublê atuava nas cenas de perseguição a cavalo no lugar de Spencer, que, curiosamente, só montava quando o animal estava parado.
Em busca de locações que imitassem o Velho Oeste, os produtores de faroeste spaghetti corriam o mundo, sem pisar nos Estados Unidos. Também nos filmes de ação gostavam de variar os ambientes. O dublê italiano filmou no deserto de Almería (na Espanha), na antiga Iugoslávia, em Hong Kong e em Kuala Lumpur. “Eu ia antes para avisar a Bud Spencer se o hotel era bom, se a comida do lugar era boa…”, ele conta, saboreando as lembranças. “Bud Spencer era um napolitano simpaticíssimo. Já Terence Hill era mais fechado.”
Durante a produção da série de filmes chamada Piedone, entre 1973 e 1980, ocorreu o período mais intenso de viagens para o dublê. “Pô! Me pagavam para fazer Piedone em tudo quanto era lugar.” No total, foram quatro filmes, todos dirigidos por Steno (pseudônimo de Stefano Vanzina) e interpretados por Spencer, no papel do inspetor policial Rizzo.
Foi dublando outro ator, o norte-americano Gordon Scott, em Buffalo Bill, o Herói do Oeste (dirigido pelo italiano Mario Costa e lançado em 1965), que Bastianoni sofreu o pior acidente. Ao saltar do alto de uma cachoeira, bateu o corpo com força em uma pedra, no leito do rio. Teve de ser socorrido por um helicóptero.
A cena com o carro em chamas foi feita para o filme A Dupla Explosiva, dirigido por Marcello Fondato, em 1974. Spencer e Hill interpretam pilotos rivais de stock car que acabam enfrentando juntos um mafioso. Bastianoni teve de dirigir um buggy pegando fogo até perto de um posto de gasolina. “Essa era para morrer, mas me pagaram por isso”, conclui, gargalhando.
Filho de um dublê e de uma dona de casa, Bastianoni entrou para o cinema pela porta da frente, atuando em um clássico, Ben-Hur, dirigido por William Wyler. O filme era uma superprodução norte-americana, mas foi rodado em 1958 nos estúdios da Cinecittà, em Roma. “Entrei no filme, perché o dublê se machucou num acidente de lancha. A parte mais perigosa foi uma corrida de bigas. Eu podia me machucar, pois não tinha altura. Não tinha nem 18 anos.”
Nos anos 1980, em uma das viagens com a trupe do faroeste spaghetti, Bastianoni desembarcou no Brasil, onde conheceu a atual esposa, uma espanhola que morava no Rio, Ana Maria Masque. O dublê, então, mudou-se para a cidade e foi convidado pela Rede Globo para montar a equipe de dublês do seriado Armação Ilimitada (1985-88) e da novela Sassaricando (1987-88).
É quase noite e, na sala de seu apartamento, Bastianoni acende um abajur. Busca uma caixa de papel, de onde retira uma série de fotografias. Em uma delas, ele aparece ao lado de um elefante. O dublê também foi a contrafigura de Jack Palance em Revak – The Rebel (1960), dirigido pelo polonês-americano Rudolph Maté (mais famoso por seu trabalho como fotógrafo de clássicos, como A Paixão de Joana d’Arc, de Dreyer).
Nesse filme rodado na Cinecittà, o personagem Revak deveria escapar por pouco de ser esmagado por um elefante. Naturalmente, na hora da filmagem, quem ficaria embaixo da sola do paquiderme não seria Palance, mas Bastianoni. Para não correr riscos demasiados, o dublê achou melhor travar antes alguma relação com o animal, alimentando-o e dormindo ao lado dele por vários dias. Quando ligaram a câmera, o elefante cumpriu gentilmente o seu papel: deu tempo suficiente para que Bastianoni escapasse são e salvo de suas vigorosas patas.