ILUSTRAÇÕES: CARLA CAFFÉ_2019
Às voltas da casa
Não há saída sem a fronteira da porta
Marcos Siscar | Edição 158, Novembro 2019
ESTAMOS NA CASA
Todos precisam de casa. A casa acolhe as coisas do mundo. Acolhe necessidades. A necessidade da casa não é menos importante do que aquilo que ela acolhe. Nem mais nem menos. Mas a casa não é depósito. Estamos na casa como estamos na vida.
Algumas são azuis com portas amarelas e chão de cimento. Outras com piso de mármore. Ou perto de coqueiros. Encontram-se vermelhas. Branca cinza metálica marfim. Onde se entra é por ali que se sai. Por dentro os dias a fio as noites muito quentes anos longos e calafrios.
Casa de subúrbio de arrabalde de passagem. Casa de madeira de repouso de ferreiro de perdição. Floração plantada no topo da serra. Bolha oculta no formigueiro. À margem da sarjeta arremedo de mangue. Cercada de árvores coberta de sangue. Casas há. Mas a casa não é um universal.
MORAMOS JUNTOS
Uma casa não é um lugar. São suas pessoas. Dizem. Mas as pessoas só são essas porque existe a casa. E quando dizem casa referem-se à delas. Habitada por elas. Não apenas um teto. A possibilidade do haver. A possibilidade do acolher. Há a casa ou haverá. Quando a casa está por vir.
Numa casa moramos juntos mesmo que sozinhos. Paredes são gesso ou alvenaria. A vizinhança não é a casa. Mas possui sua divisa. A solidão é um dos casos da convivência. Do gerenciamento dos limites. Alguém se sente só porque diz não. Ou é forçado. A vizinhança é seu fantasma.
Para sair à rua é preciso ter casa. Não há saída sem a fronteira da porta. Mesmo que não haja interior. Quando se tem casa é preciso sair. Vamos sair? alguém me diz. Respondo: sim, vamos. As portas me chamam. Às vezes saímos de casa como estamos nela.
UM MODO DE ESTAR
A casa é um lugar para se estar. Casa é onde se está quando não se está ausente. A casa não diz o ser mas o estar. Quando alguém me pergunta digo: estou em casa. Ou então: não estou. A casa é a referência da situação. É seu lugar. Escrever é como estar.
Olho alguém e me pergunto onde mora. Onde tem sua ideia de casa. Como se levasse a casa nas costas. Ou tatuada no rosto. Como a expressão dos olhos. Mas na rua a casa pode ser um avesso. Uma simulação geográfica. O lugar em que se falta.
Casa às vezes é aconchego. É lugar escolhido para se estar bem. Algo a ver com o paraíso. Aquilo que acolhe refugia também. Mas estar em casa às vezes só faz jus ao vício. E não ao artifício. Tampouco dormir na rua se escolhe. Ou na rodoviária perto dos extintores.
Há condições para se falar da casa. E há condições de casa para se falar. E quando não se tem teto? Ter ou não ter é como ser ou não ser? Depauperado troncho sem regalia de palavra. Levado da força do despejo às traças do desejo. Não ter casa é um modo de estar?
ONDE NÃO ME ENCONTRO
Casa é um lugar para voltar. Mas a volta não se consolida na casa. Tampouco a casa se consolida na chave. A casa não é um sólido. Tampouco um bólido um meteorito um astrólito. Um puro quarto de hotel. Se é que existe. Um puro tráfego? Um infinito? Não. Nem isso. Casa é aquilo que existe.
Quando volto não me encontro. Depois de um tempo fora a casa não é mais a mesma. Não sou mais quem pensei que era. Já não sou. Não me encontro onde deveria. Mas é precisamente ali que não me encontro. Onde poderia me reencontrar. Eu próprio. Mas não.
Uma casa antiga por exemplo. Uma casa cheia de memória. Cheia da surpresa do que foi esquecido. A amnésia sujando paredes. A insuportável alegria de ter partido. Ou então os cômodos pequenos. E o incômodo da reincidência. É bom voltar. Medir as distâncias. Recalcular o ônus. Voltar para casa é como sair.
Voltar para casa é como andar às voltas. Às voltas com aquilo que falta. Não para o que deve ser recuperado. Ou preenchido. Voltar é como habitar-se. Não novamente. A casa me esvazia. A casa me transborda. A casa me desloca. Nela me transformo. Como fazer da casa casa?
REINVENTAR A SITUAÇÃO
Não há lugar que queira tanto ser feito. Casa é onde dói diz a canção. Uma pedra no peito. Voltar à casa é como tirar a casca e reabrir a ferida. Reconsiderar a vizinhança. Reexpor a situação. Reinventar o que se chama de casa. Quando piso em casa é como se escrevesse um poema.
A tentação é sempre grande de trazer o fora para dentro. De passar a vida tentando fazer do fora a casa. De fazer de si mesmo a transformação do fora em casa. Viver fora é como viciar-se de casa. Expandir o vício aos mínimos recantos da terra. Neutralizar aquilo que dói.
Mas sair e ficar não são o mesmo. O quanto se sai e o quanto se volta. Muitos são os ritmos. O ritmo é alternância e regularidade. É um desenho de intensidades. Há ritmos longos e curtos. Tudo depende de quando nos sentamos no banco da praça diante da casa. E como.
Como uma casa que tem goteiras. Muitas goteiras. Que tem sombras na sala. E só esperamos o momento de deixá-la. Na iminência de uma outra casa. À espera da casa. Que não seja lugar de guarda-chuva. Conter-se à espera da casa. Situação para muitos baldes.
ENDEREÇOS DA CASA
Confesso que há dias em que giro em torno sem entrar. Não quero entrar. Ou não há portas. A casa não está ali. Ou é tudo o que está em torno dela. Chamo casa de casa como se a ofendesse. Giro à volta desatento como se não tivesse minha cara. As paredes permanecem mudas e impenetráveis.
E se perdesse a chave e o rumo? Roubado chapado desencaminhado. Não soubesse para onde voltar. Ou como entrar. Onde deixaria minhas tralhas? Meus livros minhas vidas? Todo esse peso. Todo esse lastro. Essa memória de voo. Esquecer-se da casa. Seria uma liberação?
Quando falo da casa me lembro das coisas que abandonei. De onde vieram as coisas que trago. Dos diversos endereços que tive. De fotos em que não me reconheço. Das diferentes maneiras de chegar ou de sair. De partes do corpo espalhadas pelos cômodos. Ou daquele dia em que só passei em frente tantos anos depois. A casa é um deslocamento? Ou dá muitas voltas?
CONSTRUÇÃO E REFORMA
A casa não se limita a conter. Ela requer um discurso em torno dela. É preciso cerni-la envolvê-la acariciá-la com uma nuvem de situações. Não há como confirmá-la. A casa não tem forma fixa. A forma da casa é a impressão que ela deixa no gesso das palavras? Ou é aquilo que dela se deixa envolver?
Nem isso. Há também reforma. Ou construção. Uma casa em transformação nos deixa divididos. É motivo de alegria e aflição. De um dia para o outro tudo muda. O projeto sofre. A geometria entra em contraste com seu material pesado e bruto. Há pedreiros que desprezam projeto. Há arquitetos que não sujam a mão.
A casa não é a forma que me delimita. Nem a re-forma que me adequa. A casa é onde há matéria de mim. É onde circulo. A casa são as possibilidades de brecha que me mantêm. As paredes externas são vísceras em carne viva. Por dentro vê-se meu olho vazio. Quando alguém aperta a campainha o olho sai pela porta da frente. Ou então se volta para dentro das tripas.
MEU ANIMAL E MINHA PLANTA
É como me sinto e como me visto. É todo meu sustento. Toda minha doença toda minha rotina. É o cabo que se prende a mim do alto do que me assedia. Meu animal e minha planta. É como não podia deixar de ser. Toda minha força meu estreito meu nó.
É o que me sustenta. São os ossos. São as veias que irrigam. São os nervos que transitam. Sinapses soltas mensagens elétricas matemáticas encarnadas. A matéria orgânica e seus intestinos. A elasticidade dos olhos. Meu corpo sob a luz. O cheiro da minha pele. O ruído das minhas juntas.
É o que se deixa. É o que se arrebenta. O que se trava. Aquilo que se degrada. Que se entende em outra clave. O que erra quando hesita. O que aborrece. O que maltrata. É o que mais ofende o que contrasta o que desmente. Aquilo que faz água.
A CASA É SUA
À custa de muitas voltas é outra casa. Repare bem. Para além do retorno. Como se nunca tivesse sido. Como se sempre tivesse estado. Estrangeira. Trancada por dentro. Ou de agora em diante aberta há tantos anos. Um tapete estendido à vista de todos. O apego é sempre o mesmo. E os sapatos cheios de barro. A mesma hospitalidade. A mesma hostilidade. Esta é a porta. Este é o risco. É sua casa. A casa é sua.
Trecho do livro Isto Não É um Documentário, a ser lançado neste mês pela 7Letras.