Manifestação desta terça nas ruas de Paris - Foto: AFP
A reforma fora dos trilhos
Para fechar a conta da Previdência francesa, Macron propõe mecanismo que, na prática, eleva a idade mínima de aposentadoria; nas ruas, governo enfrenta efeitos de uma greve imprevisível
Philippe Policarpe trabalha entre 6h30 e 9h30 nos estoques do Le BHV Marais, uma das mais tradicionais e concorridas lojas de departamentos de Paris, no Centro da cidade, ao lado da prefeitura. Seu objetivo: juntar dinheiro para, um dia, dar a volta ao mundo. Suas manhãs são de trabalho intenso, mas nada comparado aos 27 anos em que foi ferroviário em outra “instituição” da França, a Régie Autonome des Transports Parisiens (RATP), a empresa pública de transportes ferroviários conhecida em todo o mundo pela extensa rede de metrôs que cruzam a cidade. Esse tempo ficou para trás em 2017, quando o ferroviário se aposentou aos 53 anos, após 31 como trabalhador.
Mesmo aposentado da RATP, Policarpe participa dos protestos em defesa dos direitos de uma das últimas categorias com o incrível poder de paralisar a França. Desde 5 de dezembro, metroviários da RATP e condutores da SNCF (Société Nationale des Chemins de Fer Français), empresa pública dos transportes que opera a rede de trens, incluindo os trens-bala do país, estão de braços cruzados para garantir que não apenas eles, mas seus sucessores nos postos de ferroviários, terão o mesmo regime especial de aposentadoria. Para esta terça (17) foi convocada uma manifestação nacional, a terceira desde o início da paralisação, mas a primeira com a adesão de todos os principais sindicatos do país, incluindo os moderados. No início da tarde, milhares de pessoas já se concentravam na Place de la Republique, em Paris, para o cortejo sindical. Ao meio-dia, de acordo com o balanço das autoridades públicas, na SNCF 32,8% dos funcionários estavam paralisados, mas entre eles estavam 75,8% dos condutores, o que na prática interrompe três quartos do serviço. Na educação, a greve mobilizava 20,7% dos professores.
Em um país ainda convalescente dos meses de violenta revolta social iniciada em novembro de 2018 – pelos coletes amarelos – a reforma da Previdência voltou a incendiar o debate público, multiplicando manifestações. Com elas veio a ação de grupos de black blocs, que há anos confrontam a polícia em batalhas campais em Paris. Nesta terça-feira, milhares de policiais também foram deslocados para regiões comerciais, como a Avenida Champs-Elysées, com o objetivo de impedir a ação de 500 a 600 participantes desses grupos.
Ferroviários como Policarpe são a ponta-de-lança do levante que os profissionais de 42 carreiras estão protagonizando contra o governo de Emmanuel Macron. De modo geral, eles são funcionários públicos, advogados e magistrados, jovens médicos em residência ou professores que se sentem lesados pela reforma da Previdência Social apresentada pelo primeiro-ministro, Édouard Philippe, na última quarta-feira – já em meio à greve “preventiva” convocada pela Confederação-geral do Trabalho (CGT) e pela Força Operária (FO), dois dos maiores e mais radicais sindicatos do país. A revolta diz respeito à extinção dos 42 “regimes especiais” de aposentadorias dos quais algumas carreiras se beneficiam em relação ao resto da população.
O objetivo do texto a ser enviado ao Parlamento em janeiro é estabelecer um sistema único de aposentadorias para todos os franceses, baseado na capitalização por pontos. Trocando em miúdos, cada euro de contribuição à Previdência dará a todos os cidadãos do país acesso aos mesmos direitos, com o objetivo de extinguir o que o governo considera vantagens ou distorções na Previdência.
Condutor de metrôs e de trens suburbanos, os RER, Policarpe viu na aposentadoria precoce que Macron tenta extinguir uma maneira de garantir uma renda mínima, ao mesmo tempo que preserva sua saúde. Metroviários têm regime especial, e a aposentadoria varia de acordo com idade e tempo de contribuição, mas há casos de aposentadoria aos 52 anos. Um estudo realizado em março por especialistas contratados pelo jornal Le Parisien mostrou que, de fato, a qualidade do ar no metrô de Paris é, em média, 12 vezes pior que a de céu aberto, e que em algumas estações a medida pode ser 30 vezes pior graças à maior concentração de partículas finas, as mais nocivas para a saúde. “Tive motivos pessoais para me aposentar. Vi colegas partirem não para a aposentadoria, mas direto ao cemitério, por causa de câncer etc. No metrô não respiramos o odor de rosas. O ar é poluído. Nos anos 1960, havia muito amianto, produtos químicos nos ateliês de reparação, etc.”, explica Policarpe, que ganha 1,8 mil euros por mês (cerca de R$ 8,1 mil), entre 800 e 900 euros a menos que quando estava na ativa na RATP. O salário mínimo francês é de 1.520 euros. “Eu vi a aposentadoria como uma oportunidade. Tenho uma mulher que trabalha para o setor privado, e um filho de 8 anos que quero aproveitar.”
A reforma da Previdência brasileira, promulgada em novembro, também falava em reduzir privilégios e o déficit do sistema, que em 2018 chegou ao valor recorde de R$ 290 bilhões no ano. Modificada em vários pontos no Congresso, a reforma instituiu a idade mínima (62 anos para mulheres, 65 para homens), e mudou o cálculo para o valor da aposentadoria, aumentando o tempo de contribuição. O regime de capitalização defendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ficou de fora, e o texto tampouco incluiu as Forças Armadas. No Chile, o regime de capitalização tem sido alvo de críticas e motivo de protestos. Se uma mudança como a que está sendo empreendida na França fosse aplicada ao Brasil, juízes, desembargadores e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), vereadores, deputados, senadores, prefeitos, governadores, ministros e presidentes também teriam seus privilégios extintos e se submeteriam aos mesmos direitos que um policial, professor, enfermeiro ou agricultor têm – claro que de forma proporcional à contribuição feita ao longo da carreira.
A proposta de Macron, esmiuçada ao longo de sua campanha à Presidência, há dois anos e meio, parece igualitária – e, segundo experts, de fato o é. O texto que o hoje presidente defendeu com unhas e dentes durante o pleito tinha inspiração no modelo escandinavo e fora criado, entre outros, por dois economistas franceses de renome internacional: Jean Pisani-Ferry, professor de política econômica do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) e da Hertie School, de Berlim, e Philippe Aghion, economista e professor de Harvard, da London School of Economics (LSE) e da Escola de Economia de Paris (PSE), além do prestigiosíssimo Collège de France.
Em teoria, a proposta engendrava um mecanismo de transferência de renda, elevando o piso de quem ganha menos e reduzindo os benefícios das carreiras que hoje dispõem de regimes especiais. O projeto tinha por objetivo criar um sistema previdenciário mais adaptado ao século XXI, em que o trabalho está mudando de forma radical. Carreiras diferentes empreendidas por um mesmo trabalhador – que pode ser independente, profissional liberal, funcionário público e trabalhador da iniciativa privada ao longo de sua vida ativa – obedeceriam a um mesmo cálculo previdenciário, dando mais homogeneidade e clareza ao sistema. Tudo isso respeitando um prazo de transição e levando, em tese, na ponta do lápis, todos os fatores para que a maior parte da população receba no fim das contas a mesma aposentadoria que receberia no sistema antigo.
Profissões como a dos agricultores, surrada pela dureza do trabalho e pelo uso de agrotóxicos, e agora também pela revolução digital e as novas exigências de ética na produção, seriam beneficiadas com um aumento do piso da aposentadoria, que chegará a mil euros (R$ 4.5 mil), contra 850 euros hoje (R$ 3.8 mil). Sindicatos da categoria, como a poderosa Federação Nacional dos Sindicatos de Agricultores (FNSEA), apoiam o texto. David Leger, produtor de aves com técnicas orgânicas, confirma essa impressão. “Nem me interessei muito pelo assunto, para dizer a verdade”, conta. “A FNSEA nos disse que seria bom para a categoria e que era a favor.”
A questão é que, como ocorre com frequência nos meios políticos, uma reforma de caráter estritamente social, que visava reorganizar um sistema desigual e torná-lo universal, reduzindo grandes benefícios e elevando o piso, foi na última hora atingida em cheio pela lógica contábil. Para os mais radicais, o regime de capitalização em si é o problema, mas a maioria dos opositores ao projeto entende que esse aspecto é só o meio de cálculo previdenciário, e que portanto é neutro. O grande ponto de insatisfação é o fato de que os regimes especiais desaparecem, e que o governo no fundo estaria tentando fazer economia de gastos sociais.
Ao ser apresentado pelo primeiro-ministro, o projeto de lei previa o que todos os sindicatos, dos mais oposicionistas aos mais moderados, já temiam: mexer na idade da aposentadoria. A reforma prometida por Macron não incluía, e o presidente havia sido muito claro a respeito, nenhum aumento da idade mínima, hoje fixada em 62 anos na França – um patamar mais baixo do que em outros países da Europa, como a Alemanha, em que a idade mínima varia de 65 a 67 anos, dependendo da data de nascimento. Tecnicamente o atual texto não mexe nesse quesito, mas inclui uma variável, a “idade de equilíbrio” ou “idade pivô”, o que na prática postergaria em até dois anos a aposentadoria como pensão plena. Ou seja, um trabalhador ainda poderia se aposentar aos 62 anos, mas teria 10% de desconto em relação à pensão mensal que receberia se se aposentasse aos 64. Aos 63, o corte seria de 5%. Objetivo: reduzir o déficit do sistema previdenciário.
De acordo com um relatório apresentado em setembro pelo Conselho de Orientação das Aposentadorias (COR, na sigla em francês), um organismo multilateral com a participação de sindicatos, o déficit do sistema francês está estimado entre 0,3% e 0,7% do PIB em 2025, ou seja, entre 7,9 bilhões e 17,2 bilhões de euros. O número se choca com o saldo atual do regime geral da Seguridade Social na França, que em 2019 alcançará seu primeiro superávit desde 2001, com um excedente de € 700 milhões. Logo, a perspectiva de um rombo de longo prazo se torna menos urgente diante de um superávit no curto prazo.
Por essas e outras razões, a introdução da “idade de equilíbrio” – uma bandeira de Édouard Philippe, um político egresso da direita liberal –, transformou uma reforma vista por amplos setores da sociedade como consensual, modernizadora e até “emancipadora” pelos mais entusiastas, no que os sindicatos classificam como mais do mesmo: mais uma reforma que, no final das contas, retira direitos dos trabalhadores e posterga o acesso ao direito à aposentadoria. Como acontece em todo o mundo, dizem os sindicalistas, quem vive de rendas não será atingido, e só quem de fato vive do próprio trabalho paga a conta. E quem trabalha pesado, à noite ou em locais insalubres, ainda será pouco recompensado nos coeficientes de insalubridade do novo sistema.
“A idade de equilíbrio é completamente injusta porque penaliza as pessoas que começaram a trabalhar cedo”, diz Laurent Berger, presidente da reformista Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), maior central sindical do país, de perfil moderado e ainda assim contra a reforma. Berger defende que sua entidade passe a apoiar o texto se a idade de equilíbrio for abandonada, mas por ora está entre os grevistas. “Seria uma loucura se o governo não abandonasse esse ponto”, entende.
Dividida sobre o tema – pesquisas indicam aprovação de 50% à reforma e rejeição próxima a 50% –, a opinião pública, extenuada pela falta de alternativas de transporte coletivo e por 600 km de engarrafamentos na Região Metropolitana, teve de engolir mais uma pílula amarga no início da semana. Autor do texto da reforma, Jean-Paul Delevoye, alto-comissário da reforma da Previdência, foi flagrado por omitir salários mensais que recebia de uma consultoria e de uma presidência de honra que exerce. Na prática, o “senhor aposentadoria” do governo Macron foi pego sonegando impostos. Segundo o jornal Le Monde informou em sua edição desta terça-feira, 17, Delevoye teve a conivência do Secretariado-geral do Palácio do Eliseu (sede do governo francês), que sabia de seus empregos paralelos sem ter visto neles um potencial conflito de interesses, nem ter examinado suas contas para verificar impostos.
Os protestos de hoje foram reforçados pela presença de sindicatos reformistas, indignados com a “idade de equilíbrio”, e de profissionais de outras áreas que se sentem lesados pelo “estelionato eleitoral” de proposta social de Macron, transformada em cálculo contábil por seu primeiro-ministro. Para especialistas que apoiam a adoção do sistema de capitalização, mas consideram o aumento da idade mínima de facto um equívoco, o governo Macron incide em mais um erro de tecnocratas distantes da realidade popular. “O governo transformou uma reforma que traria transformações positivas em uma iniciativa financeira, quase punitiva, que coloca todo mundo na rua”, avaliou Marisol Touraine, ex-ministra de Relações Sociais e da Saúde, em entrevista ao jornal Les Echos. “O objetivo central deveria ser a simplicidade e a igualdade, mas isso foi obscurecido por considerações puramente contábeis.”
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