ILUSTRAÇÃO: Andrés Sandoval_2019
Samba no vagão
A música como resistência
Julia Sena | Edição 160, Janeiro 2020
Apesar do céu nublado e da chuva fina, a animação contagiava todo mundo na plataforma 2 da Central do Brasil, naquele fim de tarde de segunda-feira, 2 de dezembro, no Rio de Janeiro. Sons de pandeiro, cavaco, tamborim e reco-reco davam o tom da festa, irradiando música por quase toda a estação.
O Trem do Samba partiu da Central pela primeira vez em 1996. Desde então, sambistas e aficionados passaram a se reunir ali todo ano para seguir viagem até o bairro Oswaldo Cruz, na Zona Norte. A comemoração criada pelo sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz homenageava as andanças de Paulo da Portela e outros compositores pela cidade na década de 1920, difundindo o samba quando este ainda era um gênero marginal.
A festa conquistou os cariocas, que aos milhares passaram a acorrer à Central do Brasil, sempre em 2 de dezembro, quando se comemora o Dia Nacional do Samba. Chamou atenção também da Prefeitura do Rio, que resolveu patrocinar o evento e incluí-lo no calendário turístico da cidade.
Há dois anos, quando o bispo evangélico Marcelo Crivella assumiu a Prefeitura do Rio, o apoio foi retirado. Como neste ano também não houve patrocínio da iniciativa privada, a comemoração foi cancelada.
Alguns sambistas ficaram indignados e decidiram se mobilizar para não deixar o Trem do Samba morrer.
O compositor e assessor jurídico Danilo Firmino e dois amigos dele, os músicos Paulinho José e Wagner Vagão, resolveram que era preciso produzir um “ato de resistência”. Por meio do Facebook, convidaram todos os aficionados a fazer o tradicional percurso de trem, mesmo sem qualquer tipo de patrocínio. Três mil pessoas aderiram à campanha na rede social.
“Para nós, o Trem do Samba não é só um evento no calendário da cidade. É uma celebração, e não pode estar condicionado ao patrocínio da prefeitura ou da iniciativa privada”, disse Firmino na plataforma da Central, vestido com um chapéu-panamá no estilo malandro carioca e camiseta estampada com o rosto de Ivan Milanez, compositor da Velha Guarda do Império Serrano que morreu no ano passado.
Discípulo de Milanez e de Barbeirinho do Jacarezinho, Firmino participa da festa há mais de uma década e foi um dos autores do samba-enredo História para Ninar Gente Grande, com o qual a Mangueira venceu o último Carnaval. “Ser sambista não é ser um artista qualquer: o samba é uma militância”, afirmou.
Às sete da noite, depois de ter pagado a passagem, o público do evento embarcou nos quatro vagões, junto com os passageiros em geral, todos embalados pelo samba Do Fundo do Nosso Quintal, de Jorge Aragão, tocado pelos músicos.
“Se o vagão descarrilar a culpa é do Crivella”, gritou a psicóloga paulista Sonia Correa, em tom de brincadeira, referindo-se ao prefeito do Rio de Janeiro. Ela participava do Trem do Samba pela quinta vez, mas sua história com o gênero musical é bem mais antiga. Começou na infância, quando se encantou pelas escolas de samba em São Paulo e chegou a desfilar em algumas delas, como a X-9 Paulistana – da qual foi passista –, Vai–Vai e Gaviões da Fiel. “O samba tem muita importância para o Rio, é arte. E um país sem arte é um país sem história. Não podemos permitir que o Trem do Samba acabe”, proclamou.
“Nas outras edições tinha muito mais gente branca do que preta. Agora, talvez porque não teve repasse da prefeitura, só veio preto. Prefiro assim”, comentou a também psicóloga Rosane Barbosa, que não deixou de tomar o Trem do Samba nos últimos dez anos. “Essa edição é especial porque foi uma iniciativa da população, dizendo não à falta de patrocínio. Tomamos um lugar que é nosso.”
Filha de migrantes nordestinos, Barbosa criou-se no bairro Oswaldo Cruz e recordou que, na infância, tinha uma vizinha, Ismênia, que, com os retalhos das fantasias que ela costurava para a Portela, fazia roupas para as crianças. “Eu vivia o samba fora da quadra, vendo as fantasias prateadas e azuis, era lindo.”
Quando o trem parou na estação Oswaldo Cruz, às 19h45, os músicos tomaram a frente na plataforma, conduzindo todos à saída – rumo ao Buraco do Galo, tradicional roda de samba que acontece no bairro sempre no primeiro sábado do mês. Atrás deles, uma jovem segurava na mão direita uma placa com o nome de Marielle Franco, onde a palavra “Rua” fora coberta e substituída por “Vagão”.
Já havia centenas de pessoas no Buraco do Galo no momento que os passageiros do Trem do Samba chegaram. As duas festas se juntaram numa só. Ao microfone, o apresentador de uma das rodas convidou o público a interagir. “Por favor, uma salva de palmas para quem fez o percurso do trem. Fiquei arrepiado”, ele exclamou.
Quem passasse no final da Rua Dona Vicência, local do Buraco do Galo, não poderia deixar de notar a presença de Teresa Cristina, considerada uma das melhores vozes do samba atual. De pé, ela apreciava discretamente as apresentações dos músicos. Sua discrição na festa, entretanto, era proporcional à sua indignação. “Nós temos um prefeito omisso”, reclamou a cantora. “Mas o samba é infinitamente maior que Crivella, Witzel e Bolsonaro. Muito maior.”
Passava das dez da noite, e o público só aumentava no Buraco do Galo. Na outra ponta da rua, o público aguardava uma apresentação no palco. De longe, era possível ouvir Coisa de Pele, conhecida na voz de Jorge Aragão. A música ecoava entre um grupo de pessoas, que repetia os versos: “Arte popular do nosso chão/É o povo que produz o show e assina a direção.”