Weinstein saiu nu e com uma ereção. Exigiu que a atriz Emma de Caunes deitasse na cama. “Fiquei assustada”, ela contou. “Ele era como um caçador no encalço de um animal selvagem.” CREDITO: DON EMMERT_AFP VIA GETTY IMAGES
O predador
Os assédios em série do produtor cinematográfico Harvey Weinstein
Ronan Farrow | Edição 160, Janeiro 2020
Em 2017, o produtor de cinema Harvey Weinstein, um dos homens mais poderosos da indústria de entretenimento norte-americana, foi acusado de abusar sexualmente de várias mulheres, entre elas as atrizes Mira Sorvino, Rosanna Arquette e Asia Argento. Os abusos cometidos ao longo de décadas vieram à tona graças a duas reportagens: uma feita por Jodi Kantor e Megan Twohey para o jornal The New York Times, em 5 de outubro; outra por Ronan Farrow para a revista The New Yorker, publicada cinco dias depois. As revelações levaram à prisão de Weinstein (depois libertado, sob fiança) e à criação do movimento #MeToo, contra o assédio e o abuso sexual na indústria cinematográfica. No ano seguinte, os três jornalistas receberam o Pulitzer, principal prêmio de jornalismo dos Estados Unidos, na categoria Serviço Público.
Formado em direito, Farrow, de 32 anos, é filho do diretor Woody Allen e da atriz Mia Farrow. Depois que uma de suas irmãs, Dylan Farrow, acusou o pai de ter abusado dela na infância, o jornalista deu seu apoio a ela, contra Allen, e mais recentemente escreveu que havia uma campanha na mídia para proteger o diretor.
No livro Operação Abafa: Predadores Sexuais e a Indústria do Silêncio (editora Todavia), do qual piauí publica o trecho a seguir, Ronan Farrow conta os bastidores de sua investigação a respeito de Weinstein, desde o momento em que a rede de tevê nbc desistiu de prosseguir com a apuração do caso até o dia em que a reportagem encontrou abrigo na New Yorker. No meio-tempo, Farrow foi intimidado por advogados, passou a ser seguido por detetives particulares e viu sua carreira correr o risco de desmoronar.
Em setembro de 2017, finalmente consegui falar com Mira Sorvino. Filha do ator Paul Sorvino, Mira havia ficado famosa nos anos 1990. Ganhara um Oscar em 1996 por Poderosa Afrodite, um dos filmes de Woody Allen distribuídos por Harvey Weinstein. Durante um ou dois anos após o lançamento do filme, Sorvino tivera uma verdadeira carreira de estrela de cinema, culminando no papel de protagonista em outro filme de Weinstein, Mutação.[1] Depois disso, ela praticamente sumiu.
Em nosso primeiro telefonema, Sorvino pareceu apavorada. “Eu já perdi tanto da minha carreira por causa dessa história”, ela me disse. “Essa história” era o padrão de assédio sexual de Weinstein na época em que os dois trabalharam juntos. No Festival Internacional de Cinema de Toronto, em setembro de 1995, quando estava promovendo Poderosa Afrodite, ela se viu em um quarto de hotel com Weinstein. “Ele começou a fazer massagem nos meus ombros, o que me deixou muito desconfortável, e depois tentou aumentar o contato físico e meio que me perseguiu pelo quarto”, disse. Quando ele tentou beijá-la, ela conseguiu escapar, improvisando modos de afastá-lo, dizendo que era contra a sua religião se relacionar com homens casados. Ela então saiu do quarto.
Algumas semanas mais tarde, em Nova York, seu telefone tocou depois da meia-noite. Era Weinstein, dizendo que tivera novas ideias de marketing para Poderosa Afrodite e pedindo um encontro. Sorvino propôs irem a um restaurante que funcionava 24 horas, mas ele disse que ia passar no apartamento dela e desligou. “Eu surtei”, ela me contou. Sorvino ligou para um amigo e lhe pediu que fosse à casa dela e fingisse ser seu namorado. O amigo ainda não havia chegado quando Weinstein tocou a campainha. “Harvey tinha conseguido passar pelo meu porteiro”, ela disse. “Abri a porta, apavorada, com o meu chihuahua latindo no colo, como se aquilo fosse adiantar alguma coisa.” Quando ela disse a Weinstein que seu novo namorado estava a caminho, ele pareceu chateado e foi embora.
Mira Sorvino disse que ficou com medo e se sentiu intimidada; quando contou sobre o assédio para uma funcionária da Miramax, a reação da mulher “foi de choque e horror por eu ter mencionado o assunto”. Recordava “a expressão do rosto dela, como se eu de repente tivesse ficado radioativa”.
Sorvino tinha certeza de que, depois de rejeitar Weinstein, ele a havia retaliado, posto seu nome numa lista negra e prejudicado sua carreira. Mas reconhecia a dificuldade de conseguir provar isso. Ela ainda estrelou alguns filmes produzidos por ele após Poderosa Afrodite. Em Mutação, quando Weinstein e seu irmão Bob [Weinstein] demitiram o diretor, Guillermo del Toro, e fizeram um corte no filme contra a vontade dele, Sorvino se opusera a tudo isso e defendera Del Toro. “Não posso dizer com certeza se foi a briga do Mutação ou se foram as investidas”, ela me disse, “mas tenho a forte sensação de que sofri retaliação por ter recusado e depois denunciado o assédio por parte dele.” Mais tarde, suas desconfianças seriam confirmadas: o diretor Peter Jackson disse que, quando estava pensando em chamar Sorvino e Ashley Judd para fazer O Senhor dos Anéis, Weinstein interferiu. “Lembro que a Miramax nos disse que elas eram um pesadelo no trabalho e que deveríamos evitá-las a todo custo”, contou Jackson a um jornalista. “Na época não tínhamos motivo para questionar o que os caras estavam nos dizendo. Mas, em retrospecto, vejo que muito provavelmente era o auge da campanha da Miramax para prejudicar as duas.”
Sorvino me disse que se debateu durante anos com a questão de revelar ou não sua história, e argumentou – comigo, e pelo visto também consigo mesma – que sua experiência talvez não fosse grave o bastante para isso. Mas sua denúncia, assim como outras que envolviam investidas indesejadas, embora sem agressão, foi fundamental para estabelecer o modus operandi de Weinstein.
Mira Sorvino era um assombro. Havia se formado magna cum laude em Harvard. E defendera causas beneficentes relacionadas ao abuso de mulheres, tendo sido inclusive embaixadora da Boa Vontade para a Prevenção e Combate ao Tráfico de Pessoas, da ONU. Desde as nossas primeiras conversas, ficou evidente que ela vinha fazendo uma análise cuidadosa da situação e que sua ideia sobre compromissos éticos mais amplos tinha forte influência nessa análise.
“A primeira vez que você me escreveu”, ela disse, “eu tive um pesadelo no qual você aparecia com uma câmera de vídeo e perguntava sobre como tinha sido trabalhar com Woody [Allen].” Ela sentia muito pela minha irmã, afirmou. Eu respondi – de modo canhestro, falando depressa demais, mudando de assunto – que metade dos meus amigos na indústria cinematográfica havia trabalhado com Allen, que isso não desmerecia a atuação dela, que aquele era um problema da minha irmã, não meu, que ela não deveria se preocupar. Mas mesmo assim pude sentir que estava preocupada, e que estava refletindo.
Sorvino decidiu ajudar, e em vários telefonemas deu declarações on-the-records. Mas o medo em sua voz nunca desapareceu. “Quando as pessoas se insurgem contra os poderosos, há uma punição”, ela disse. Percebi que sua preocupação ia além de considerações sobre a carreira. Ela perguntou se eu estava cuidando da minha segurança, se havia considerado o risco de desaparecer, de sofrer algum “acidente”. Eu disse que estava bem, que tomara precauções, mas em seguida perguntei a mim mesmo que precauções estava tomando de fato, a não ser a de olhar bastante para trás. “Você deveria tomar cuidado”, ela disse. “Infelizmente ele tem outros contatos além dos profissionais. Contatos nefastos que podem machucar pessoas.”
As vozes continuaram a se acumular. Depois que os agentes de Rosanna Arquette deixaram de me atender, encontrei a irmã dela, que prometeu transmitir o pedido de entrevista. Passados alguns dias, Arquette e eu nos falamos por telefone. “Eu sabia que esse dia iria chegar”, ela disse. “O nervosismo que estou sentindo agora… Você nem imagina.” Ela tentou se controlar. “Um alarme de ‘perigo, perigo’ disparou aqui dentro”, afirmou.
Arquette me contou que, no início dos anos 1990, havia aceitado jantar com Weinstein no Beverly Hills Hotel para pegar o roteiro de um filme novo. Ao chegar, informaram que o encontro seria no quarto dele. Ela recordava que Weinstein abriu a porta vestido com um roupão branco de banho. Ele falou que estava com o pescoço dolorido e precisava de uma massagem. Arquette respondeu que tinha uma boa massagista para indicar. “Então ele agarrou minha mão”, disse. “E a colocou em seu pescoço.” Quando ela arredou a mão, Weinstein a agarrou outra vez e a empurrou na direção do próprio pênis, que estava visível e duro. “Meu coração estava totalmente acelerado, eu precisava decidir se lutava ou se fugia”, contou. “Eu jamais vou fazer isso”, ela disse a Weinstein.
Ele respondeu que ela estava cometendo um erro imenso ao rejeitá-lo, e citou o nome de uma atriz e de uma modelo que, após cederem a seus avanços sexuais, foram consequentemente ajudadas por ele em suas carreiras. Arquette respondeu: “Eu jamais vou ser como essa pessoa.” E foi embora. A história dela era importante por causa de sua semelhança com outras que eu ouvira: pretexto profissional para um encontro, reunião transferida para o quarto de hotel, pedido de massagem, roupão.
Arquette compartilhava a opinião de Sorvino de que sua carreira tinha sido prejudicada pelo fato de ela ter rejeitado Weinstein. “Ele tornou as coisas muito difíceis para mim durante anos”, disse. Seu pequeno papel em Pulp Fiction de fato foi posterior ao episódio no hotel. Mas ela achava que só conseguira atuar no filme por causa do tamanho do seu papel e da deferência de Weinstein ao diretor Quentin Tarantino. Isso também era um elemento recorrente: Sorvino desconfiava que seu relacionamento amoroso com Tarantino na época a protegera de retaliações, e que essa proteção havia se dissipado quando os dois romperam. Mais tarde, Tarantino declarou publicamente que poderia, que deveria ter feito mais.
Arquette, assim como Sorvino, tinha um histórico de defender pessoas vulneráveis e exploradas. Para ela, não havia como fugir do contexto geral. Mencionou que deveria se considerar não apenas Weinstein, mas uma conspiração mais abrangente e mais profunda. “Isso é o clube dos meninos grandes, a máfia de Hollywood”, disse. “Eles protegem uns aos outros.” Após várias conversas, ela concordou em participar da reportagem.
Quando contei que Weinstein já estava ciente da minha reportagem, Arquette disse: “Ele vai se esforçar muito para localizar e silenciar pessoas. Para machucar pessoas. É isso que ele faz.” Ela não pensava que a história algum dia viria a ser revelada. “Eles vão desacreditar qualquer mulher que se pronunciar”, afirmou. “Vão perseguir as garotas. E de repente as vítimas vão virar agressoras.”
A essa altura, a agência privada de investigação Black Cube já tinha distribuído um dossiê.[2] Neste, havia uma avaliação sobre a probabilidade de que Arquette falasse, citava sua amizade com a atriz Rose McGowan, seus posts nas redes sociais sobre conduta sexual inadequada, e até mesmo um membro da sua família que havia sofrido abuso sexual.
Fontes vinham me dizendo havia meses que a atriz italiana Asia Argento tinha uma história sobre Weinstein para contar. O pai de Argento, Dario, era um diretor famoso por seus filmes de terror. A atriz interpretara uma glamourosa ladra num drama policial distribuído por Weinstein, B. Monkey,[3] e por um curto período Hollywood avaliara seu potencial de femme fatale exótica, papel que ela desempenhou valentemente no filme Triplo X,[4] com Vin Diesel. Mas a combinação foi imperfeita. Argento tinha uma característica diferente, um quê de escuridão, ou talvez de trauma.
Assim como ocorreu com tantas outras, minhas conversas com seus agentes e empresários tinham empacado. Mas eu passara a seguir Argento nas redes sociais, e tínhamos começado a “curtir” as fotos um do outro. No dia em que falei com Rosanna Arquette pela primeira vez, Argento e eu também trocamos mensagens. Pouco depois, conversávamos por telefone.
Argento estava apavorada; sua voz tremia. Ao longo de uma série de entrevistas demoradas e muitas vezes carregadas de emoção, ela me contou que Weinstein a tinha agredido quando eles trabalharam juntos. Em 1997, foi convidada para o que imaginava ser uma festa organizada pela Miramax no Hôtel du Cap-Eden-Roc, na Riviera Francesa. O convite fora enviado por Fabrizio Lombardo, chefe da Miramax Itália[5] – embora vários executivos e assistentes tenham me dito que esse era um cargo de fachada, pois seu verdadeiro posto era o de “cafetão” de Weinstein na Europa. Lombardo negou isso na época, e vem negando desde então.
Ele negou também o que Argento me contou em seguida: que a levou não a uma festa, mas ao quarto de hotel de Weinstein. Ela se lembrava de Lombardo ter dito “Ah, chegamos cedo demais”, antes de deixá-la sozinha com Weinstein. No início, Weinstein se mostrou solícito e elogiou o trabalho dela. Então saiu do quarto. Ao voltar, estava de roupão e segurava um frasco de loção. “Ele me pediu para fazer uma massagem. Eu disse: ‘Olha aqui, cara, eu não sou trouxa, porra’”, me contou Argento. “Mas agora, pensando bem, eu sou trouxa, sim.”
Argento disse que, depois de aceitar com relutância fazer uma massagem em Weinstein, ele levantou sua saia, forçou-a a abrir as pernas e fez sexo oral nela, enquanto ela lhe pedia repetidas vezes que parasse. “Aquilo não acabava”, Argento me contou. “Foi um pesadelo.” A certa altura, parou de dizer não e fingiu sentir prazer, pois pensou que seria o único jeito de dar fim à agressão. “Eu não queria”, ela me disse. “Falei: ‘Não, não, não’… É uma perversão. Um homem grande e gordo querendo te chupar. É um conto de fadas de terror.” Argento, que insistiu em contar a história em toda a sua complexidade, disse que foi incapaz de reagir fisicamente, algo que lhe provocou anos de culpa.
“Como costuma acontecer com quem é vítima, eu me senti responsável”, ela disse. “Porque, se eu fosse uma mulher forte, teria dado um chute no saco dele e saído correndo. Só que eu não fiz isso. Então me senti responsável.” Argento descreveu o incidente como “um trauma horrível”. Segundo ela, após o ocorrido, “ele não parava de me ligar”. Foi como “uma perseguição, praticamente”. Durante alguns meses, Weinstein pareceu obcecado e ficou lhe oferecendo presentes caros. O que complicava mais ainda a história – admitiu Argento sem dificuldade – era que ela acabara cedendo às investidas dele. “Ele fez como se fosse meu amigo e realmente gostasse de mim.” Ela teve encontros sexuais esporádicos com Weinstein nos anos seguintes. A primeira vez, vários meses depois da suposta agressão, foi antes do lançamento de B. Monkey. “Eu me senti obrigada”, ela afirmou. “Porque o filme ia sair e eu não queria deixá-lo com raiva.” Achava que Weinstein arruinaria sua carreira se ela não cedesse. Anos mais tarde, quando era uma mãe solteira e certa vez precisou resolver com quem deixar os filhos, Weinstein se ofereceu para pagar uma babá. Ela disse que se sentiu “obrigada” a ceder às suas investidas sexuais. Descreveu os encontros entre os dois como unilaterais e “onanistas”.
Essa era a complexa realidade da agressão sexual para muitos sobreviventes: muitas vezes, esses crimes eram perpetrados por chefes, parentes, pessoas que você não podia evitar em seguida. Argento me disse que sabia que os contatos que tivera com ele posteriormente seriam usados para atacar a credibilidade da sua denúncia. Deu várias explicações sobre os motivos que a levaram a se encontrar de novo com Weinstein. A perseguição a deixou intimidada e exausta. A primeira agressão a fazia se sentir impotente e subjugada toda vez que o encontrava, mesmo anos mais tarde. “Sempre que o vejo, fico me sentindo pequena, burra e fraca.” O esforço de explicar a fez cair em prantos. “Depois do estupro, ele ganhou”, disse.
Mais que qualquer outra fonte, Argento personificava complicações conflituosas. Após sua participação na minha reportagem, ela fez um acordo financeiro com um ator, Jimmy Bennett, com quem supostamente manteve relações sexuais quando ele tinha 17 anos. Estava sendo acusada de abuso de menor. Na Califórnia, local do ocorrido, segundo Bennett, a relação seria ilegal e considerada estupro. O advogado de Argento mais tarde contestou a versão de Bennett, acusando-o de “atacar sexualmente” a atriz e afirmou que, embora o pagamento fosse um gesto de apaziguamento, o acordo não impedia Bennett de revelar sua denúncia. A imprensa, porém, notou a hipocrisia do uso de um acordo por parte de Argento, se levada em conta sua própria denúncia de ter sido vítima de alguém que utilizava acordos como esse de forma rotineira.
Um acordo posterior não teve influência alguma sobre a verdade inegável: a história de Argento sobre Harvey Weinstein se confirmou, corroborada por pessoas que tinham visto coisas ou ficaram sabendo delas na época. Agressores sexuais podem também ter sido vítimas de abuso. Qualquer psicólogo experiente em lidar com eles dirá, na verdade, que isso geralmente acontece. Mas essa ideia encontrou pouco apoio num ambiente em que se esperava que as vítimas fossem santas, e, caso não fossem, as descartava como pecadoras. As mulheres que falaram comigo naquele verão eram apenas pessoas. Reconhecer que todas elas realizaram um ato de coragem – inclusive Argento – não justifica nenhuma escolha que tenham feito nos anos subsequentes.
Antes mesmo desse outro escândalo, Argento estava no olho do furacão. Por mais angustiante que fosse o estigma social para todas as fontes da reportagem, o contexto cultural era ainda mais cruelmente sexista. Depois das alegações de Argento contra Weinstein, a imprensa italiana a rotulou de “prostituta”.
Em nossos telefonemas naquele outono, Argento parecia consciente de que sua reputação era muito controversa, e o clima na Itália por demais agressivo, para que ela sobrevivesse ao processo. “Estou pouco me lixando para minha reputação, eu mesma já a destruí ao longo dos anos devido a muitas experiências traumáticas, inclusive essa”, ela me falou. “Isso com certeza vai destruir minha vida, minha carreira, tudo.” Eu lhe disse que a decisão era só dela, mas que achava que aquilo ajudaria outras mulheres. Enquanto Argento refletia, seu companheiro, o chef Anthony Bourdain, interveio diversas vezes. Ele disse para ela continuar, que valia a pena, que faria diferença. Argento resolveu dar uma entrevista on-the-records.
As histórias se multiplicavam. Mira Sorvino me indicou Sophie Dix, atriz inglesa que, anos antes, tinha lhe contado uma história de terror. Dix fizera uma participação, com Colin Firth no filme Entre a Luz e as Trevas,[6] distribuído por Weinstein no início da década de 1990, e em seguida sumira do mapa. Quando nos falamos, ela a princípio se mostrou apreensiva. “Estou com muito medo que ele venha atrás de mim”, escreveu em determinado momento. “Talvez fosse melhor eu não fazer parte disso.” No entanto, ao longo de meia dúzia de ligações, ela me contou que Weinstein a convidara para ir ao seu quarto de hotel assistir trechos do filme que fizeram juntos, então a empurrou para cima de uma cama e começou a arrancar as roupas dela. Dix fugiu para um banheiro, onde se escondeu por um tempo, depois abriu a porta e deu de cara com Weinstein se masturbando. Conseguiu fugir quando o serviço de quarto bateu à porta. Foi um “caso clássico” de “alguém que não entendeu a palavra ‘não’”, ela me disse. “Devo ter dito ‘não’ umas mil vezes.”
Como todas as alegações que acabaram entrando na reportagem que fiz, o relato de Dix foi corroborado por, entre outras coisas, depoimentos de pessoas a quem ela havia contado o que ocorrera em detalhes na época. Seus amigos e colegas demonstraram empatia, mas nada fizeram. Colin Firth, assim como Tarantino, viria a se juntar ao grupo de homens da indústria cinematográfica que pediram desculpas publicamente por ter ouvido sem de fato escutar. Dix contou a um número suficiente de pessoas que Weinstein lhe telefonou depois e disse: “Me desculpe, tem alguma coisa que eu possa fazer por você?” Apesar do pedido de desculpas, ela pressentiu um quê de ameaça. Desligou o telefone depressa. Mais tarde, desiludida com a indústria cinematográfica, Dix começou a abandonar a carreira de atriz. Quando nos falamos, ela estava trabalhando como roteirista e produtora. Temia as consequências da entrevista entre os colegas dos quais agora dependia para fazer seus filmes. A atriz Rachel Weisz fez parte de um grupo de amigos que a convenceu de que o risco valia a pena. Dix também incluiu seu nome na minha reportagem.
Asia Argento, por sua vez, me ajudou a entrar em contato com a atriz francesa Emma de Caunes, que me contou ter conhecido Weinstein em 2010, numa festa no Festival de Cannes, e alguns meses mais tarde recebeu um convite para almoçar com ele no Ritz, em Paris. Durante a reunião, Weinstein disse a De Caunes que iria produzir um filme com um diretor importante, a ser rodado na França, com um papel feminino forte. Como na história de Sophie Dix e Ally Canosa,[7] houve uma desculpa para transferir a reunião para o quarto: o projeto, segundo ele, era a adaptação de um livro cujo título ele poderia lhe dizer caso subissem para pegar o exemplar.
Desconfiada, De Caunes respondeu que precisava ir embora, pois já estava atrasada para um programa de tevê que apresentava. Mas Weinstein insistiu até ela concordar. No quarto, ele desapareceu num banheiro, deixando a porta aberta. Ela imaginou que ele estivesse lavando as mãos, até ouvir o chuveiro ligado. “Pensei: que porra é essa? Ele está tomando banho?”
Weinstein saiu nu e com uma ereção. Exigiu que ela deitasse na cama e lhe disse que muitas mulheres já tinham feito aquilo antes. “Fiquei apavorada”, contou De Caunes. “Só que eu não queria mostrar a ele que estava apavorada, porque podia sentir que, quanto mais eu surtava, mais excitado ele ficava.” Acrescentou: “Era como um caçador atrás de um animal selvagem. O medo o excita.” Ela disse a Weinstein que ia embora. Ele entrou em pânico. “A gente não fez nada!”, ela se lembra de tê-lo ouvido dizer. “É como estar num filme do Walt Disney!”
De Caunes me contou: “Eu olhei para ele e disse – precisei de toda a minha coragem, mas disse: ‘Sempre detestei os filmes do Walt Disney.’ Então fui embora. Saí batendo a porta.” Nas horas seguintes Weinstein ligou insistentemente, oferecendo presentes e repetindo que não havia acontecido nada. Um diretor com quem De Caunes estava trabalhando no programa de tevê confirmou que ela chegou abalada ao estúdio e contou o ocorrido.
Com 30 e poucos anos na época, De Caunes já era uma atriz reconhecida. Ela ficou imaginando o que poderia acontecer com mulheres mais jovens e mais vulneráveis na mesma situação. Também acabou me dando uma entrevista on-the-records – por essas mulheres. “Eu sei que todo mundo – todo mundo mesmo – em Hollywood sabe que isso está acontecendo”, ela disse. “Ele nem sequer esconde. O modo como ele age, tem muita gente envolvida e vendo o que está acontecendo. Mas todo mundo tem medo demais para dizer qualquer coisa.”
Quase todo dia eu topava com becos sem saída. Algumas acusadoras se negavam a falar. Eu passara o verão correndo atrás de Lauren O’Connor, ex-caçadora de talentos literários na Weinstein Company. Em 2015, ela escrevera um memorando interno reclamando do comportamento de Weinstein com as subordinadas. Ele a tinha agredido verbalmente, e ela ficara sabendo do seu comportamento predatório. Certa vez, uma jovem esmurrou a porta do quarto de hotel dela, aos prantos, tremendo, e acabou contando aquela velha história do pedido de massagem de Weinstein. “Eu sou uma mulher de 28 anos tentando ganhar a vida e construir uma carreira”, escreveu O’Connor em seu memorando. “Harvey Weinstein tem 64 anos, é famoso no mundo inteiro e dono desta empresa. A balança de poder é assim: eu 0, Harvey Weinstein 10.” Mas O’Connor tinha assinado um acordo de confidencialidade e estava amedrontada demais para falar. No fim de setembro, um intermediário ligou e disse que O’Connor consultara um advogado e tomara sua decisão final. “Ela está apavorada e não vai falar. Com ninguém”, o intermediário me disse. O’Connor não queria que eu citasse seu nome.
Foi um choque. Eu tinha conseguido o nome dela em documentos. Mas o intermediário descrevera o pânico absoluto que ela sentia. Eu estava dolorosamente consciente de ser um homem que escrevia uma reportagem sobre assentimento feminino, diante de uma mulher que me dizia não querer ter a vida virada de pernas para o ar daquele jeito. Ela acabaria contando publicamente sua história. Mas na época prometi que não iria incluí-la.
E havia aquelas que hesitavam. A atriz Claire Forlani mais tarde postaria uma carta aberta nas redes sociais sobre o dilema entre me contar ou não que Weinstein a assediara. “Contei para alguns homens de quem sou próxima, e todos eles me aconselharam a não falar”, ela escreveu. “Eu já tinha dito a Ronan que falaria com ele, mas com base nos conselhos que me deram, e é interessante notar que esses conselhos foram dados por homens, não fiz a ligação.”
Passei um pente-fino em Hollywood atrás de mais pistas. Alguns contatos de Weinstein pareciam sinceros ao dizer que pouco sabiam sobre as denúncias que o envolviam. No fim de setembro, consegui falar com Meryl Streep, que tinha feito filmes com Weinstein por muitos anos, entre eles A Dama de Ferro,[8] biografia de Margaret Thatcher que lhe valera seu mais recente Oscar. Quando nos falamos, ela estava recebendo amigas de escola. “Estou recebendo e cozinhando, arrancando os cabelos”, escreveu.
“Parece que isso aí está fervendo”, eu disse por telefone. “Fervendo de hormônios”, ela respondeu, certeira.
Streep seguiu falando, luminosa e bem-humorada, e perguntou sobre quem eu estava escrevendo.
“Harvey Weinstein”, respondi. Streep ofegou. “Mas ele apoia causas tão boas”, foi o seu comentário. Weinstein sempre se comportara bem com ela. Observava e ocasionalmente participava de suas campanhas para angariar fundos para o Partido Democrata e de suas iniciativas filantrópicas. Ela sabia que Weinstein era truculento na sala de montagem. Mas só.
“Eu acredito nela”, falei para Jonathan[9] mais tarde.
“Mas acreditaria de todo jeito, né?”, ele respondeu, considerando aquilo um exercício mental.
“É, entendi.”
“Porque ela é a Meryl…”
“Porque ela é a Meryl Streep. Entendi.”
No caso de outros veteranos da indústria cinematográfica com quem falei, foi diferente. O comportamento predatório de Weinstein era um segredo de polichinelo, disseram eles, e, caso não tivessem visto nada, ao menos tinham ouvido falar de alguma coisa. Susan Sarandon, uma pioneira da ética que vinha se recusando havia anos a trabalhar com qualquer homem acusado de ser predador, me ajudou animadamente a pensar em pistas. “Ai, Ronan”, ela disse, adotando um tom de voz provocador e melodioso. Não que estivesse zombando, apenas adorando o drama prestes a se abater sobre mim. “Você vai se meter numa encrenca…”
Outros, ainda, pareciam ir contar para Weinstein. Quando falei com o diretor Brett Ratner, implorei que mantivesse a conversa no mais estrito sigilo. Disse a ele que havia mulheres vulneráveis que poderiam sofrer represálias caso Weinstein ficasse nervoso. “Tudo bem se, por elas, você não repetir nada do que eu disser?”, perguntei. Ratner prometeu não falar. Disse conhecer uma mulher que talvez tivesse uma história sobre Weinstein. Mas sua voz soava nervosa. Meses depois, seis mulheres o acusariam de assédio sexual numa reportagem do Los Angeles Times – embora Ratner tenha negado várias das denúncias. Ele informou Weinstein sobre o meu contato quase imediatamente.
“Harvey disse que Brett Ratner ligou pra ele, e agora ele está muito nervoso”, me disse Alan Berger,[10] com aquele tom de isso vai acabar comigo que àquela altura dominava nossas conversas. Berger havia demonstrado apoio à reportagem, ainda que de vez em quando ficasse preocupado com as minhas futuras possibilidades profissionais. “Isso está causando muita dor de cabeça”, ele disse. “Ou você publica ou parte para outra.”
Harvey Weinstein estava passando seu próprio pente-fino. Quase no final de setembro, início de outubro, entrou em contato com a pessoa–chave de sua alegação de que havia conflito de interesses em minha reportagem sobre ele.[11] Mandou seus assistentes fazerem a ligação. Num set no Central Park, outro assistente levou o telefone até Woody Allen.
Weinstein parecia querer um plano estratégico – tanto para invalidar as denúncias de agressão sexual como para lidar comigo. “Como você lidou com isso?”, ele perguntou a certa altura. Quis saber se Allen interviria a seu favor. Allen falou que não. Mas ele de fato sabia de coisas que Weinstein iria usar mais tarde. O cartão de crédito de Weinstein mostra que naquela semana ele comprou um livro de entrevistas com o diretor escrito por um de seus fãs aguerridos que documentava todos os argumentos inventados por Allen e seu exército de detetives particulares e assessores de comunicação para destruir a credibilidade da minha irmã, do procurador e de um juiz que sugerira que ela estava dizendo a verdade.
“Caramba, eu sinto muito”, disse Allen a Weinstein, por telefone. “Boa sorte.”
Weinstein também vinha ligando para minhas fontes, ocasionalmente metendo medo nelas. Um dia depois de eu receber a carta com as exigências jurídicas de Charles Harder[12] e companhia, Weinstein tornou a ligar para Ally Canosa. Era Yom Kippur, o dia do perdão judaico, mas esse sentimento não pareceu dar a tônica do telefonema. Ele disse a Canosa que sabia que havia gente falando. “Você nunca faria uma coisa dessas comigo”, afirmou. Sem saber se tratava-se de uma pergunta ou de uma ameaça, ela desligou, abalada. Eu disse a David Remnick[13] que as fontes estavam ficando ansiosas, que Weinstein parecia estar redobrando os esforços para fazer as pessoas se calarem. “Eu jejuo e ele ameaça”, respondeu Remnick. “O judaísmo tem muitas formas.”
Durante o mês de setembro, o trabalho da New Yorker na reportagem foi ganhando ritmo e intensidade. A editora Deirdre Foley-Mendelssohn, Remnick e o resto da equipe vasculharam o material acumulado e exami-naram versões preliminares. Eu ficava até tarde no World Trade Center,[14] apurando informações por telefone. Um dia, quando estava chegando em casa, quase ao amanhecer, vi um Nissan Pathfinder prata estacionado em frente ao prédio, parecido com o que tinha visto antes, e senti um arrepio ao reconhecê-lo. Ainda não tinha provas de estar sendo seguido, mas uma desconfiança nervosa persistia.
Alguns amigos tinham se oferecido para me hospedar naquele verão, e a maioria dessas conversas terminara com uma risada minha e a garantia de que eu estava bem. Apenas uma amiga, Sophie, filha de um rico executivo, contou estar acostumada com ameaças à sua segurança e me aconselhou a levar minhas desconfianças a sério. Disse-me que telefonasse para ela se precisasse de um lugar seguro para ficar. Finalmente liguei.
No fim do mês, fiz a mala e me mudei para o local que se tornaria meu refúgio: uma parte de um prédio em Chelsea no qual a família de Sophie possuía vários andares. O espaço era grande o suficiente para abrigar com conforto todas as pessoas que você já conheceu na vida. Os cômodos tinham as mesmas proporções de hangares de aviação – eram imponentes, lindos, e repletos de sofás rebuscados nos quais você tem medo de sentar e de objetos de arte que tem medo de tocar.
O local tinha vários níveis de segurança: cartão de proximidade para a entrada, chave física, código. Ali eu me senti mais seguro. Mas nem assim consegui me livrar da paranoia de que estava sendo vigiado. “Estou dizendo para você comprar uma arma”, dissera o produtor Gavin Polone. E eu ri. Depois, conforme outras pessoas iam dizendo a mesma coisa, comecei a considerar a possibilidade. Num estande de tiro em Nova Jersey, desenferrujei minha mira com pistolas e revólveres. Disse a mim mesmo que aquilo era apenas recreativo. Mas ao mirar no alvo com uma Glock 19, ao sentir seu peso e apertar o gatilho, fiquei nervoso e afogueado, e nem um pouco relaxado como alguém que estivesse só praticando um hobby.
Os indícios de que o New York Times estava chegando perto da história envolvendo Harvey Weinstein também aumentavam. Eu fiquei sabendo que duas respeitadas jornalistas investigativas – Jodi Kantor e Megan Twohey – encabeçavam a reportagem do jornal. Elas foram dois colossos e correram atrás de fontes com a mesma agressividade que eu. Depois de terem contatado Rosanna Arquette e Emily Nestor,[15] eu falei a elas que deveriam trabalhar com quem se sentissem mais à vontade. “No fim das contas é bom pra gente que várias pessoas estejam trabalhando nisso”, disse por mensagem de texto a Nestor. Eu me sentia sinceramente aliviado com o fato de o Times estar no mesmo barco, pois isso absorveria um pouco da pressão e garantiria que a história viesse à tona, fosse qual fosse o destino da minha reportagem. No íntimo, porém, também estava me sentindo competitivo, o que se misturava a certa pena que tinha de mim mesmo. Durante seis meses, o único apoio que tive foi o de Noah Oppenheim[16], torcendo o nariz e mantendo o jornalismo a uma distância segura, com medo de ser pego. Agora eu tinha por fim a New Yorker, mas talvez fosse tarde demais. Não fazia ideia do que o Times tinha. Até onde sabia, se eles publicassem primeiro, nosso trabalho na revista seria neutralizado. Essa corrida armamentista era mais uma fonte de pressão, outro elemento fortalecendo a sensação de que eu estava trabalhando numa cabine pressurizada, esperando para ser arremessado no vácuo.
No fim do mês de setembro, Rich McHugh[17] mandou uma mensagem de texto dizendo ter sido informado por suas fontes de que o Times estava prestes a publicar alguma coisa. A NBC o proibira de receber ligações sobre as denúncias de agressão sexual, mas ele continuara trabalhando na matéria sobre a amfAR, a instituição beneficente para pesquisa da Aids. Uma fonte havia chamado sua atenção para uma pequena linha na declaração de imposto de renda da instituição que sugeria o desvio de 600 mil dólares para o American Repertory Theater, onde o musical Finding Neverland, produzido mais tarde por Weinstein na Broadway, esperava para ser montado. McHugh havia pedido permissão para trabalhar nessa pauta. Richard Greenberg,[18] depois de conversar com Oppenheim, pareceu tê-lo autorizado. Mas a permissão havia sido obtida a duras penas, e McHugh teve a sensação de que em seguida o canal passou a relutar. “Eles foram lentos”, lamentou mais tarde. McHugh não tinha certeza se queriam que ele apurasse aquilo, ou se apenas queriam dar a impressão de não ter abafado em sequência duas pautas sobre Harvey Weinstein.
“Twohey mandou o texto dela hoje”, me escreveu McHugh. Conversamos sobre o que a matéria do Times poderia conter – se aquela seria mesmo sua principal reportagem sobre conduta sexual inadequada. “Seja lá como for”, disse McHugh, “a chapa do Harvey está esquentando.”
Weinstein e Dylan Howard, editor-chefe do jornal National Enquirer, estavam tendo uma conversa parecida naquele dia. O vínculo entre os dois homens continuava a se fortalecer. “Caro Dylan”, escreveu Weinstein depois de Twohey entregar o texto. “Só queria te avisar que o New York Times vai publicar a matéria deles hoje.”
No dia seguinte, houve um alerta de breaking news do Times sobre Weinstein. Cliquei na matéria. “É tudo sobre a amfAR”, disse McHugh por mensagem de texto. Fora alarme falso.
“Em quanto tempo você consegue publicar?”, perguntou McHugh. “Avise ao Remnick que o Weinstein está no noticiário. Você já tem a matéria. Está na hora de dar.” Ken Auletta[19] ligou, nervoso, e fez uma pressão semelhante: “Rápido! Fale com ele agora e ponha esse negócio online.”
Comecei a metralhar Foley-Mendelssohn e depois Remnick. Ele é muito competitivo, mas as prioridades da revista são a exatidão e a cautela. “Não vamos correr para passar na frente de ninguém”, disse Remnick. A matéria ficaria pronta quando ficasse, após um processo intensivo de checagem de fatos. “Somos um transatlântico, não uma lancha. Sempre soubemos que o Times poderia nos furar.”
Mesmo assim, Remnick mergulhou na edição do texto, me bombardeando com perguntas conforme avançava (“Onde fica a Weinstein Company? Por que ele vive se hospedando em hotéis?”). Quando eu não me encontrava em reunião ou ao telefone com alguma fonte, estava enfurnado com Foley–Mendelssohn ou com Remnick, burilando o texto da matéria. Discutimos sobre quando pedir a versão de Weinstein. “Quanto antes falarmos com ele, melhor”, escrevi para os editores.
Em prol da imparcialidade e para limitar a capacidade de Weinstein de importunar as mulheres cujos nomes iríamos revelar ao pedir sua versão, Rem-nick decidiu concluir o máximo possível da checagem de fatos antes de ligarmos para ele. Peter Canby, o ve-terano chefe de checagem da revista, mobilizou dois de seus funcionários a fim de aumentar a rapidez e o rigor do trabalho. Para o trabalho, Foley-Mendelssohn sugeriu E. Tammy Kim, ex–advogada de temperamento tranquilo e sério. Ao ser convidada, Kim cruzou os braços e perguntou, sem sorrir: “Vai ser reportagem sobre celebridade ou algo assim?” O outro escolhido foi Fergus McIntosh, jovem escocês que havia entrado na revista fazia dois anos, depois de se formar em Oxford. McIntosh tinha uma típica gentileza britânica e era um pouco tímido. No dia 27 de setembro, Kim e McIntosh começaram seu trabalho com o texto, em ritmo acelerado, com horários exaustivos, e foram ligando para todas as fontes.
Em Nova York, o forte calor vacilou, mas não cedeu. Tanto as minhas fontes como os intermediários de Weinstein, que ligavam periodicamente para fazer ameaças, estavam espalhados por vários fusos horários – Europa, Austrália, China. A qualquer hora do dia ou da noite, meu celular parecia uma bomba-relógio. O sono estava se tornando para mim um reflexo involuntário, um breve instante em que, num simples tlec seco como o de um interruptor de luz, eu piscava os olhos e as sombras mudavam de lugar, e então eu percebia que havia apagado por uma hora e estava com o rosto marcado pelo tampo da mesa de trabalho na New Yorker. Torci para que Jeffrey Toobin, Dexter Filkins ou qualquer outro jornalista jamais notassem toda aquela baba em seus mousepads. Quando eu conseguia voltar para Chelsea e dormir, era só um sono pela metade. Nos espelhos do apartamento, meu reflexo surgia emaciado, pálido e mais magro que no início do verão, como uma criança tísica no anúncio de um tônico da era vitoriana.
Conforme os checadores começaram a ligar para várias fontes, Weinstein se pôs a cumprir suas ameaças. Na primeira segunda-feira de outubro, mandou a primeira correspondência jurídica para a New Yorker. “Este escritório de advocacia juntamente com meus colegas David Boies, da Boies Schiller Flexner LLP, e Lisa Bloom, da The Bloom Firm, prestamos assistência jurídica em litígios para The Weinstein Company”, escreveu Charles Harder. A reportagem era “difamatória”, ele argumentava. “Solicitamos que vocês não publiquem essa matéria; que forneçam à TWC [The Weinstein Company] uma lista de todas as declarações sobre a TWC (incluindo as de seus funcionários e/ou executivos) que pretendem publicar.” Havia a esperada menção à NBC: “É importante notar que a NBC News estava trabalhando anteriormente com Ronan Farrow numa potencial matéria sobre a TWC. Entretanto, depois de verificar o trabalho do sr. Farrow, a NBC News rejeitou a matéria e encerrou o projeto. Seria preocupante se a New Yorker viesse a pegar o fruto do trabalho do sr. Farrow, rejeitado pela NBC News, e o publicasse – expondo assim a New Yorker a uma ação judicial e a enormes custos por danos morais a ela relacionados.”
A recente conversa de Weinstein com Woody Allen parecia dar a tônica da carta. Harder dedicava diversas páginas ao argumento de que a agressão sexual sofrida por minha irmã me desqualificava para conduzir uma reportagem sobre Weinstein. “O sr. Farrow tem direito a uma raiva particular”, escreveu Harder. “Mas nenhum editor deveria permitir que esses sentimentos pessoais criassem e levassem adiante uma reportagem difamatória, sem embasamento nenhum e fundamentada num rancor pessoal.” Ele então citava o livro do biógrafo de Woody Allen comprado por Weinstein e reproduzia o argumento de Allen de que eu fora submetido a uma lavagem cerebral para poder acreditar nas alegações de minha irmã.
Havia outros argumentos pessoais extravagantes. “Como um segundo exemplo, o tio de Ronan Farrow, John Charles Villiers-Farrow, foi julgado por ter abusado de dois meninos, assumiu o crime e foi condenado a dez anos de prisão. Ainda não encontramos nenhum indício de que Ronan Farrow tenha denunciado publicamente seu tio, e talvez ele o tenha apoiado publicamente. Seja como for, à luz das críticas explícitas do sr. Farrow ao pai, com quem rompeu relações, os atos do sr. Farrow levam a questionar sua credibilidade e seu discernimento como jornalista.”
Até onde eu podia lembrar, não cheguei a conhecer aquele tio. Mas, no meu entender, a denúncia contra ele era crível. Tanto minha mãe como minha prima haviam cortado seus laços com ele. Ninguém nunca havia me perguntado sobre meus parentes distantes que não fossem famosos. Caso isso tivesse ocorrido, eu teria evitado o assunto. Não estava claro o que aquilo tinha a ver com as alegações contra Weinstein.
Fiquei impressionado com a proximidade entre os argumentos contidos na carta e os pontos que Oppenheim havia me recitado. E me lembrei das matérias de opinião e das aparições televisivas de Lisa Bloom[20] dedicadas a defender a credibilidade da minha irmã e afiar sua própria espada como defensora das mulheres. Estava me acostumando ao espetáculo desagradável de gente contorcendo o corpo para se encaixar nas engrenagens da máquina de Harvey Weinstein. Mesmo assim, estranhei o nome de Bloom no final da carta, junto com o de Harder.
Na primeira semana de outubro, os assistentes de Weinstein mandaram um e-mail para Dylan Howard do National Enquirer: “Acabamos de tentar falar com você, mas Harvey queria ver se você poderia em vez disso encontrá-lo em frente ao prédio do New York Times na Oitava Avenida, perto da Rua 43. Ele está indo para lá agora, então deve chegar daqui a meia hora mais ou menos.” Inicialmente, Weinstein pedira à sua equipe que garantisse que Howard se encontraria com ele e com Lisa Bloom para irem de carro do escritório da Weinstein Company até o Times. Como Bloom e Weinstein saíram sem Howard, o editor do Enquirer teve que se virar sozinho para chegar a Uptown, com as mãos cheias de pastas de papel pardo contendo “basicamente os podres” das acusadoras de Weinstein, na recordação de uma pessoa envolvida. Howard mais tarde negou ter ido ao prédio do Times. O que ninguém contesta é que Weinstein pouco depois estava na reunião ouvindo que o Times se preparava para publicar uma matéria sobre conduta sexual inapropriada.
Quando fontes conseguiram entrar em contato comigo para transmitir o mesmo recado, eu estava num táxi. Tentei ligar para Jonathan, depois tentei outra vez. Ele estava cada vez mais ocupado com o trabalho, e eu cada vez mais carente e chato.
“Que foi?!”, ele disse, ríspido, quando afinal retornou. Estava saindo de mais uma reunião.
“O Times vai publicar”, falei.
“Tá”, ele disse, um pouco impaciente. “Você sabia que eles poderiam fazer isso.”
“É bom que esteja saindo”, afirmei. “Mas é que… esses meses todos. Esse ano inteiro. E agora estou sem emprego.” Eu estava perdendo a cabeça, na verdade já começava a chorar. “Eu mirei alto demais. Apostei demais. E talvez, no fim das contas, nem matéria eu tenha. E estou deixando na mão todas essas mulheres…”
“Calma!”, gritou Jonathan, fazendo–me sair do surto. “Tudo que está acontecendo agora é que você não dorme nem come há duas semanas.”
Uma buzina soou lá fora.
“Você está num táxi?”, ele perguntou.
“Hum-hum”, funguei.
“Meu Deus do céu. A gente vai conversar sobre isso, mas primeiro você vai dar uma baita gorjeta para esse taxista.”
Depois que a carta de Weinstein e Harder chegou, Remnick me chamou à sua sala junto com o advogado Fabio Bertoni e Foley-Mendelssohn. A argumentação jurídica de Weinstein, em ordem crescente de absurdo e decrescente de seriedade, era que qualquer coisa negativa a seu respeito era difamação; que não eram permitidas reportagens sobre empresas que usassem acordos de confidencialidade; que ele fizera um acordo com a NBC; que minha irmã fora agredida sexualmente; e que havia um molestador de crianças entre meus parentes. (Jonathan uivou de tanto rir ao ler a carta. “Que carta mais fofa”, ele disse. “Amei essa carta.”) Mas eu já tinha visto uma empresa de jornalismo engolir argumentos fracos uma vez. Quando entrei na sala de Remnick, parte de mim ainda estava preparada para vê-lo capitular ou se mostrar amedrontado. Ele disse textualmente: “Essa é a carta mais nojenta que já recebi sobre qualquer matéria.”
Ainda um pouco apreensivo, lembrei a Remnick que Weinstein também estava ameaçando me processar pessoalmente e que eu não tinha advogado. “Eu quero ser claro”, ele disse. “Nós vamos defender você na Justiça, não importa até onde Harvey Weinstein vá.” Bertoni mandou uma resposta breve para Harder: “Com relação às suas afirmações sobre a independência e a ética do sr. Farrow, nós consideramos absolutamente sem mérito algum as questões mencionadas por vocês.”
Quando eu estava indo embora do trabalho naquela noite, Remnick ligou para dizer que o companheiro de Asia Argento, Anthony Bourdain, entrara em contato com ele. Bourdain já tinha apoiado antes o fato de Argento se pronunciar, mas mesmo assim desanimei: em várias ocasiões, mulheres que recua-ram da reportagem haviam feito isso após a intervenção de um marido, namorado ou pai. Ser contatado por parceiros raramente era boa notícia. Mas toda regra tem exceção: Bourdain disse que o comportamento de predador de Weinstein era nauseante, que “todo mundo” já sabia disso havia tempo demais. “Não sou um homem religioso”, ele escreveu. “Mas estou rezando para vocês terem a força necessária para publicar essa reportagem.”
A New Yorker então se uniu em torno da reportagem, que ia se confirmando, denúncia após denúncia, sob a pressão dos checadores. Estávamos esperando que todas as alegações fossem inteiramente verificadas para pedirmos a versão de Weinstein. Mas vários intermediários dele já tinham entrado em contato, e seu tom não era combativo, porém resignado. Um integrante de sua equipe jurídica deu o passo extraordinário de ligar para a revista pouco depois de a carta de Harder chegar, dizendo que as ameaças nela feitas eram equivocadas, desaconselháveis. “Não se trata de uma situação em que eu esteja lhes dizendo que entenderam tudo errado”, disse esse advogado. “As denúncias de grave conduta inadequada… uma parte enorme desses casos é verdade.”
A temperatura aumentou, transformando a sala de Foley-Mendelssohn numa sauna. A editora e eu ficávamos debruçados sobre cópias impressas da versão preliminar, com gotas de suor na testa. Houve discussões acaloradas sobre a escolha de palavras, e Remnick pressionou a favor de cautela sempre que possível. Inicialmente, nós tínhamos excluído a palavra “estupro”, temendo que ela pudesse constituir uma distração ou ser prejudicial. Foley-Mendelssohn e a checadora Kim pressionaram no sentido contrário. Excluir a palavra seria amenizar. No fim, Remnick e Bertoni concordaram, e a palavra ficou.
Num daqueles dias, fui ao apartamento de Remnick no Upper West Side. Do lado de fora, colado à fachada de pedra calcária do edifício, havia um cartaz metálico dizendo: “Abrigo Nuclear.” Lá dentro, uma sala de pé-direito duplo forrada de livros. A mulher de Remnick, a ex-jornalista do Times Esther Fein, me levou até a cozinha e insistiu que eu comesse algo. O casal se conheceu no fim dos anos 1980 e foi para Moscou trabalhar para jornais rivais – Remnick para o Washington Post. A família tinha mantido, numa parede, as marcas da altura dos dois filhos e da filha ao longo dos anos, como nos filmes. Em seu pequeno escritório, Remnick e eu demos os toques finais na versão preliminar da minha reportagem. Eu estava exausto e sem dormir, e ele foi generoso, mesmo quando eu me enganava redondamente em relação a alguma modificação no texto.
Isso parecia uma calmaria, mas havia a sensação de que ela precedia uma forte tempestade. No início daquela primeira semana de outubro, Kim Masters publicou uma reportagem na revista Hollywood Reporter com o título “Advogados de Harvey Weinstein brigam com NY Times e New Yorker por causa de matérias com potencial explosivo”. Poucos minutos depois, a Variety divulgou sua versão. A tevê a cabo começou seu burburinho. Esse movimento teve a vantagem de encorajar as fontes. Naquele dia, a atriz Jessica Barth, que tinha participado dos filmes da franquia Ted, do diretor Seth MacFarlane, entrou em contato comigo para contar que Weinstein a assediara sexualmente durante um encontro num quarto de hotel – história que acabou sendo verificada. Mas aquelas matérias também fizeram com que eu me sentisse exposto. O que quer que acontecesse a seguir, iria acontecer sob os holofotes de um estádio.
O mundo estava mudando ao redor de Harvey Weinstein naquele mês de outubro. Ele parecia extenuado. Os acessos de raiva eram seu arroz com feijão, mas nesse mês os rompantes foram mais imprevisíveis que de costume. Dentro da Weinstein Company, ele começou a ficar desconfiado. Mais tarde se revelaria que vinha monitorando as comunicações profissionais de Irwin Reiter,[21] o mesmo que enviara as mensagens simpáticas a Nestor e que Weinstein havia qualificado de “polícia do sexo”. No dia 3 de outubro, Weinstein mandou um especialista em TI acessar e deletar um arquivo chamado “Amigas HW”, que mapeava a localização e as informações de contato de dezenas de mulheres em cidades mundo afora.
Na manhã de 5 de outubro, Weinstein convocou boa parte da equipe de defesa a seu escritório na Rua Greenwich, onde se improvisou um gabinete de crise em uma sala VIP. Bloom estava presente, bem como Howard. Pam Lubell e Denise Doyle Chambers, funcionárias veteranas da empresa que tinham sido chamadas de volta para ajudar a montar a lista das pessoas que seriam alvos, também estavam lá. Davis e Harder ligaram, e os assistentes os puseram no viva-voz. Enlouquecido, Weinstein gritava a plenos pulmões. A matéria do Times ainda não havia saído, mas ele ficara sabendo que a publicação era iminente. Rugia nomes e mais nomes para Lubell, Doyle Chambers e os assistentes, nomes de membros de conselhos e aliados na indústria do entretenimento que esperava que o defendessem quando as reportagens começassem a aparecer. Bloom e os outros se debruçaram sobre imagens impressas e digitais que mostravam a continuidade dos contatos entre Weinstein e mulheres na lista de alvos: Rose McGowan e Ashley Judd de braço dado com ele, sorriso educado no rosto. “Ele gritava para nós: ‘Mandem isso para os membros do conselho’”, recordou Lubell mais tarde. E, obediente, ela mandou.
Mais ao Sul da cidade, sentei diante de uma mesa vazia na New Yorker e liguei para a Weinstein Company para pedir a versão do produtor sobre as denúncias. Com uma voz nervosa, o recepcionista falou que iria verificar se Weinstein podia atender. Então a voz de barítono rouco de Weinstein soou. “Uau!”, ele disse, com uma animação fingida. “A que devo a honra?” Tudo o que se escreveu sobre ele antes e depois raramente se deteve neste detalhe: ele era um cara bem engraçado. Mas foi fácil esquecer isso à medida que ele, rapidamente, começou a se enfurecer. Naquele outono, Weinstein desligou na minha cara várias vezes. Eu lhe disse que queria ser justo e incluir qualquer coisa que ele tivesse a dizer. Então perguntei se ficaria à vontade caso eu gravasse nossa conversa. Ele pareceu entrar em pânico e, com um clique, sumiu. O padrão se repetiu na mesma tarde. Mas, quando consegui fazê-lo falar por um tempo razoável, ele abandonou a cautela inicial e não pediu que a conversa fosse em off, apenas se tornou intensamente combativo.
“Como você se identificou para todas essas mulheres?”, indagou.
Fui pego um pouco desprevenido.
“Dependendo do momento, eu descrevi com detalhes o veículo para o qual estava trabalhando.” Comecei a falar que aquilo não ia nos ajudar a ouvir o que ele tinha a dizer sobre as denúncias, mas ele tornou a interromper.
“Ah, sério? Como se você fosse um repórter da NBC. E o que seus amigos na NBC têm a dizer sobre isso agora?” Senti um rubor me subir às faces.
“Estou ligando porque queria ouvir o seu lado”, eu disse.
“Não. Eu sei o que você quer. Sei que está com medo, e sozinho, que seus chefes te abandonaram, e seu pai…”
Remnick a essa altura estava do lado de fora da sala, e bateu de leve no vidro. Balançou a cabeça e fez um gesto de “abrevie”.
“Terei prazer em falar com você, ou com quem você quiser da sua equipe”, falei.
Weinstein riu. “Você não conseguiu salvar alguém que ama, e agora acha que pode salvar todo mundo.” Ele de fato disse isso. Foi como se estivesse apontando um detonador para o Aquaman.
E Weinstein disse para mandar minhas perguntas para Lisa Bloom. No fim das ligações, ele sempre voltava a ser encantador, e me agradecia educadamente.
Pouco depois das duas da tarde, telefones tocaram e um assistente entrou na sala VIP da Weinstein Company com a notícia sobre o Times. “Saiu a reportagem”, avisou o assistente. “Ah, merda”, afirmou Dylan Howard, e pediu a subordinados que imprimissem cópias para todo mundo. Conforme a equipe lia a reportagem, a tensão se dissipou. Por um breve instante, Weinstein se sentiu aliviado. Era uma boa coisa a matéria ter saído numa quinta-feira, ele disse aos funcionários reunidos, e não num domingo, que considerava o dia preferido do Times para matérias importantes. Então foi encontrar sua mulher, Georgina Chapman, que estava participando de um desfile de sua marca de roupas, a Marchesa. “Ela falou: ‘Eu vou ficar do seu lado’”, contou Weinstein a vários membros da equipe presentes na sala. Mas ele estava se preparando para a reportagem que ainda iria sair. Depois da matéria da New Yorker, falou entre os dentes: “Ela vai me deixar.”
Foley-Mendelssohn e eu sentamos diante de Remnick, e lemos a matéria do Times, ele num monitor, nós dois rolando a tela dos celulares. Era uma matéria forte, na qual Ashley Judd enfim associava o nome de Weinstein ao relato feito havia dois anos à Variety sobre investidas indesejadas de um produtor, e finalmente fez sentido para mim a estranha conversa telefônica que eu tivera com Nick Kristof meses antes.[22] A matéria falava também da história contada por Lauren O’Connor sobre agressões verbais e das propostas no local de trabalho relatadas por Nestor, embora sem a participação delas.
Não havia nenhuma denúncia de agressão ou estupro. Lisa Bloom deu rapidamente uma declaração que se referia a essas denúncias, em sua maioria, como mal-entendidos. “Eu expliquei a Weinstein que, devido à diferença de poder entre o dono de um estúdio importante e a maioria das outras pessoas na indústria cinematográfica, sejam quais forem os motivos dele, algumas de suas palavras e comportamentos podem ser considerados inadequados ou até mesmo intimidadores.” Weinstein era só “um dinossauro velho aprendendo maneiras novas de se comportar”, ela argumentou. Quando os programas matinais do dia seguinte foram ao ar, Bloom já estava trabalhando para qualificar as denúncias da matéria do Times de pequenas indiscrições. “Vocês estão usando a expressão ‘assédio sexual’, que é um termo jurídico”, ela disse ao apresentador de tevê George Stephano-poulos. “Eu estou usando a expressão ‘conduta inadequada no local de trabalho’. Não sei se existe uma diferença de fato significativa para a maioria das pessoas, mas ‘assédio se-xual’ é grave e abrangente.” Disse ter aconselhado duramente Weinstein a não falar no trabalho “do mesmo jeito que você fala com seus amigos homens quando saem para tomar cerveja, sabe”. Em suas próprias declarações, Weinstein disse “ter se tornado adulto nos anos 1960 e 1970, quando todas as regras sobre comportamento e locais de trabalho eram diferentes”, e afirmou estar numa “jornada” de “aprendizado pessoal”, com “a orientação de Lisa Bloom”. Weinstein prometeu se dedicar a combater a National Rifle Association. Disse também que iria fazer terapia, criar uma fundação para diretoras de cinema na Universidade do Sul da Califórnia, e pronto.
Na sala de Remnick, ergui os olhos da matéria do Times. Meu celular vibrou em cima da mesa com uma mensagem de Jonathan. “O Times publicou. Falaram em assédio, não agressão”, ele escreveu. “Corre corre corre.” Então, logo em seguida, entrou uma mensagem de McHugh dizendo a mesma coisa. O Times, ele acrescentou, tinha “menos do que aquilo que fez a gente ser barrado”.
“É um trabalho bem sólido”, disse Remnick, ao erguer os olhos da matéria.
“Mas, perto do que nós temos, eles não tem nada”, disse Foley-Mendelssohn, com um alívio patente.
“Então vamos seguir adiante”, arrisquei.
“Vamos”, disse Remnick.
Trecho do livro Operação Abafa: Predadores Sexuais e a Indústria do Silêncio, que a Todavia lança este mês.
[1] Dirigido por Guillermo del Toro e lançado em 1997.
[2] A Black Cube, contratada por Weinstein, era formada por ex-agentes do Mossad e outros serviços de inteligência israelenses. Segundo Farrow, o objetivo do trabalho da agência de investigação era “interromper a publicação das alegações de abuso contra Weinstein”. Na New Yorker, Farrow escreveu que, usando identidades falsas, seus agentes teriam contatado jornalistas e personalidades do cinema, inclusive a atriz Rose McGowan – que acusou Weinstein de tê-la estuprado –, com o objetivo de coletar informações sobre eles e compilar perfis psicológicos “que às vezes se concentravam em suas histórias pessoais ou sexuais”.
[3] Filme dirigido por Michael Radford, lançado em 1998.
[4] Dirigido por Rob Cohen, lançado em 2002.
[5] A Miramax, produtora e distribuidora de cinema, foi fundada em 1979 por Bob e Harvey Weinstein. Em 1993, foi adquirida pela Walt Disney Company, mas os dois irmãos continuaram dirigindo a empresa até 2005, quando criaram outra produtora, The Weinstein Company. Em 2016, a Miramax foi vendida para o beIN Media Group, do Catar.
[6] Dirigido por Leslie Megahey e lançado em 1993.
[7] A produtora de cinema Alexandra (Ally) Canosa trabalhou anos com Harvey Weinstein e foi assediada por ele o tempo todo. Porém, permaneceu em silêncio, com medo de arruinar sua carreira. Apenas em 2018, decidiu processar Weinstein.
[8] Dirigido por Phyllida Lloyd, lançado em 2011.
[9] Jonathan Ira Lovett, companheiro de Ronan Farrow, a quem o livro Operação Abafa é dedicado.
[10] Agente literário de Ronan Farrow.
[11] Em razão das acusações de assédio sexual feitas contra Woody Allen, pai de Ronan Farrow.
[12] Advogado de Harvey Weinstein. A carta pedia que Farrow entregasse todas as entrevistas feitas por ele sobre Weinstein enquanto trabalhara para a rede de tevê e rádio NBC, e que passasse a mostrar ao escritório de advogados todas as declarações futuras de entrevistados a respeito de Weinstein, entre outras exigências.
[13] Diretor de redação da revista New Yorker, para a qual Ronan Farrow passou a fazer a reportagem sobre Weinstein, depois da ruptura com a NBC.
[14] De fato, One World Trade Center, para onde a New Yorker transferiu seus escritórios em 2015.
[15] Ex-funcionária da companhia de Harvey Weinstein que o denunciou por assédio.
[16] Presidente do canal televisivo de notícias NBC News.
[17] Produtor de Ronan Farrow quando este trabalhava na NBC News.
[18] Vice-presidente e editor executivo de jornalismo da NBC News.
[19] Kenneth B. Auletta, jornalista da New Yorker.
[20] Âncora de tevê e advogada que atuou em defesa de Harvey Weinstein, ex-amiga de Ronan Farrow.
[21] Então vice-presidente executivo do setor financeiro da Weinstein Company.
[22] Na conversa, Ronan Farrow pedira ao jornalista Nicholas Kristof, do New York Times, que tentasse convencer a atriz Ashley Judd a falar com ele. Farrow conta: “Quando eu disse que estava trabalhando numa reportagem sobre as mesmas questões de direitos das mulheres com que Judd tanto se importava, ele imediatamente me perguntou: ‘Por acaso essa matéria trata de uma pessoa cujo nome começa com H?’ Respondi que sim, e Kristof ficou mudo por um momento. Depois disse, bem devagar: ‘Não tenho liberdade para continuar essa conversa.’ Desligou o telefone rapidamente.”