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    Ilustração de Paula Cardoso sobre foto de acervo de Catalina Gómez Ángel

questões epidemiológicas

Tosse, dor, fraqueza: coronavírus? Repórter conta seu drama no Irã

Doença contaminou a vice-presidente e 23 parlamentares; 835 novos casos foram confirmados em um dia

Catalina Gómez Ángel | 03 mar 2020_17h38
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O vendedor me entrega luvas descartáveis quando entro numa floricultura no centro de Teerã, muito perto do bairro onde moram o Líder Supremo do Irã e muitos altos funcionários da República Islâmica. “Perdão, mas você vai entender a situação”, me disse ele, que também usava uma máscara, como muitos dos empregados e clientes do lugar. É sábado, 29 de fevereiro. Mas a rua deixou de ser divertida. Cinemas, teatros, concertos, conferências, entrevistas coletivas… tudo está fechado, tudo foi cancelado. Os restaurantes e cafés, mesmo que em sua maioria ainda abertos, não têm o dinamismo que costumam ter, especialmente nesta época, as semanas anteriores ao ano novo persa, em 21 de março, que parece ter caído no limbo para 84 milhões de iranianos. Com o passar dos dias fomos nos acostumando a não chegar perto uns dos outros, a não nos tocarmos e a passarmos mais tempo do que gostaríamos dentro de casa. O medo de contaminação é constante. 

Mas não era assim uma semana antes, ainda que o fantasma do coronavírus já rondasse as ruas de Teerã na manhã daquela sexta-feira de eleições, 21 de fevereiro. Na véspera, o governo havia anunciado a morte dos dois primeiros infectados com o vírus, em Qom, 150 quilômetros ao sul da capital e considerado o centro religioso do Irã, por ser o lugar onde residem os grandes aiatolás. Milhares de aspirantes a clérigos xiitas de todo o mundo estudam nos seminários da cidade, que é dominada pela imponente cúpula dourada do santuário de Fátima Masumeh, visitado anualmente por centenas de milhares de peregrinos de todo o mundo.

As poucas informações dadas até então asseguravam que os mortos eram idosos, e logo começaram a circular especulações, sem base em fatos, sobre quem teria levado o vírus até aquela cidade erguida no meio do deserto. Se algum comerciante que teria viajado à China, ou um grupo de chineses que trabalha no trem elevado da cidade, ou estudantes recém-chegados desse país, ou se seria consequência dos muitos voos que a companhia aérea local, Mahan, continuava realizando entre Irã e China, quando a maioria das empresas internacionais já havia cancelado, ou pelo menos restringido, as conexões com esse país.

No bazar Molavi, no centro de Teerã, as máscaras já eram vendidas 100 riais mais caras do que na véspera. E mesmo assim conseguir uma não era nada fácil, não por escassez, mas porque muitos comerciantes as guardavam para mais tarde especular sobre seu preço. Um dos comerciantes aceitou vender uma para mim, para fazer jus à amabilidade dos iranianos com os estrangeiros. Do contrário teria sido impossível.

Àquela altura, os bazaristas, muitos deles assíduos viajantes à China, comentavam que a expansão do vírus era muito maior do que o governo se dignava a reconhecer. “Eles [o governo] pensam que vão resolver tudo escondendo a verdade. Pode ter certeza que, depois das eleições, vão dizer que o vírus está muito mais espalhado, eu sei que tem muita gente doente”, comentava Ali, um vendedor de produtos para festas que já trabalhava de máscara e luvas.

“O problema aqui pode ser enorme”, disse. A maior desconfiança não era quanto à capacidade de reação do sistema de saúde – apesar de muito abalado pelas sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos –, e sim quanto à honestidade do regime para informar com veracidade o alcance da epidemia. Sua credibilidade estava praticamente a zero, em consequência da violenta repressão com que respondera aos protestos de novembro de 2019 – o governo nega o saldo de 304 mortos divulgado pela Anistia Internacional, mas se recusa a fornecer uma cifra oficial – e da derrubada acidental do avião ucraniano com 176 passageiros, a maioria iranianos ou de origem iraniana.

A proximidade do Ano-Novo é a melhor época para os comerciantes no Irã. Milhares de pessoas costumam fazer suas compras de fim de ano. E, naquele dia de eleição, o mercado fervilhava, contrastando com o marasmo dos locais de votação da zona central, cenário que se repetia no resto da cidade. Mais de vinte pessoas que consultei naquele dia em Teerã afirmaram que a decisão de não votar não tinha nada a ver com o coronavírus – por alguma razão as ruas comerciais continuavam cheias –, e sim com a falta de credibilidade do governo, com sua postura nada transparente e repressiva, além da interferência do Conselho de Guardiães, que seleciona os candidatos antes da reta final… Mas acima de tudo com a má gestão da economia, cujo descalabro a maioria dos iranianos atribui ao governo, mesmo entendendo o impacto das fortes sanções econômicas impostas pelos EUA depois da ruptura do acordo nuclear em 2018. E aí tem peso decisivo a corrupção pública que os cidadãos testemunham em seu dia a dia.

“Em quem e para quê que eu vou votar?”, foi o comentário de Mehdi, que administra um mercadinho no sul de Teerã. “Por aqui ninguém liga para as eleições, entende? Eles [quem faz parte do sistema] só se preocupam com eles mesmos”, dizia. E sua previsão se cumpriu. Num sistema em que o voto não é obrigatório, o comparecimento às urnas foi de 43%, o mais baixo da história da República Islâmica. E de apenas 25% em Teerã, com uma abstenção sem precedentes num sistema que faz de cada pleito um plebiscito de respaldo à Revolução.

Quando os resultados da votação foram divulgados, o país já nem se lembrava das eleições. O coronavírus dominava todas as conversas, por mais que o governo ainda se empenhasse em difundir a mensagem de que tudo estava sob controle. E nesse esforço acusava os inimigos do Irã de espalharem o medo entre a população.

A preocupação foi crescendo minuto a minuto, à medida que vieram a público os casos de autoridades infectadas pelo vírus. Alguns países vizinhos, como Turquia e Iraque, os dois maiores parceiros comerciais do Irã na região, com os quais este mantém o maior fluxo de pessoas, decidiram fechar as fronteiras e suspender os voos para cá. Com o passar dos dias, o país foi ficando praticamente isolado. “Por que eles fariam isso, se não tivessem razões de peso?”, perguntava-se Massoud Shirazi, um empresário que há uma semana fechou sua fábrica, com trinta funcionários. Quem pode, trabalha de casa. Escolas e universidades também suspenderam as aulas, até segunda ordem.

Mas não sem consequências. Dezenas de famílias de Teerã procuraram refúgio nas cercanias do Mar Cáspio, especialmente na província de Gilan, principal destino de veraneio dos iranianos. O resultado foi o contágio do vírus nessa região do norte do país, que é agora a terceira mais atingida pela epidemia, atrás apenas de Qom e Teerã. “Nosso maior problema foi não levarmos o problema a sério […] devíamos ter sido mais sérios e honestos”, escreveu no domingo passado um dos parlamentares eleitos por essa província num dos principais jornais de Teerã. A expansão do vírus em Gilan, somada ao fato de que muitos viajantes provenientes do Irã davam positivo ao chegarem a outros países, aumentava as suspeitas de que o vírus no país podia ter-se espalhado muito mais do que as autoridades diziam.

A primeira autoridade a confirmar que estava infectada com o vírus foi o prefeito do distrito 13 de Teerã, Morteza Rahman Zadeh, que dias antes tinha se reunido com o Conselho da Cidade. Então correram rumores de que mais pessoas ligadas aos círculos de poder teriam o vírus, o que logo se confirmaria. Entre eles o vice-ministro da Saúde, Iraj Harirchi, que na segunda-feira, 23 de fevereiro, acompanhou o porta-voz do presidente durante sua entrevista coletiva semanal. Estava ali para negar que em Qom houvesse mais de cinquenta mortos pelo vírus nas duas últimas semanas, como anunciara horas antes no Parlamento o representante da cidade, Ahmad Amirabadi Farhani, que já apresentava os sintomas da doença. A imagem de um homem desinfetando a cadeira de Amirabadi depois que este se retirou do recinto teve grande impacto entre a população. “Se o número [de mortos] for no mínimo a metade do que ele diz, eu peço demissão”, disse Harirchi na entrevista coletiva, em que pôde ser visto transpirando copiosamente.

No dia seguinte ele voltou a ser notícia, não porque tivesse pedido demissão do cargo, mas por anunciar que estava infectado pelo vírus. “Também estou com o corona”, disse em um vídeo divulgado nas redes sociais, onde assegurava que, com o apoio de todos, “derrotariam o corona”. Com o passar dos dias, foram aumentando os casos de autoridades infectadas pelo vírus. Duas delas morreram. Entre os mortos está Mohammed Mir Mohamadi, integrante do Conselho dos Especialistas, escolhidos diretamente pelo Líder Supremo. Também estão com o vírus pelo menos 23 parlamentares e a vice-presidente para assuntos da mulher, Masoumeh Ebtekar, além do filho de uma ex-parlamentar e ex-candidata à Presidência que tem laços de sangue com o Líder Supremo.

Nas redes sociais, choveram críticas à maioria dessas autoridades, principalmente àquelas que anunciaram sua doença em vídeos publicados nas próprias redes. “Por que ele aparece com essa cara saudável, quando outros doentes estão péssimos?”, perguntava um dos muitos críticos nas redes ao ver o post do parlamentar Mahmoud Sadeghi. Outras pessoas criticavam o cancelamento das sessões do Parlamento, enquanto eles deviam continuar comparecendo a locais onde se reuniam dezenas de pessoas. Começou a circular o rumor de que tudo não passara de uma encenação de personalidades do regime, para aparecerem aliviados poucos dias depois, dizendo que o Irã conseguia vencer o vírus.

“Eu não quis ser examinada com o kit, porque outras pessoas suspeitas de terem o vírus não têm acesso a ele por motivos econômicos, ou outros”, escreveu no jornal, nesta segunda-feira, 2 de março, a parlamentar reformista Soheila Jolodarzadeh, expressando sua preocupação com o fato de as pessoas “comuns” não poderem fazer todo o necessário para se protegerem de um vírus que não se manifesta da mesma forma em cada indivíduo.

Eu cobri o aniversário da Revolução em meio a milhares de pessoas, a campanha eleitoral – incluindo uma visita ao Parlamento – e as eleições legislativas. Nada me isenta de ter sido infectada, assim como outros colegas que deram positivo no exame. Faz alguns dias que sinto fraqueza nas pernas, certa dor no peito e uma leve dor de cabeça permanente. A esses sintomas foram-se somando problemas de estômago, dores nas costas e um leve catarro na garganta, mas preferi relacioná-los a cansaço ou a uma simples gripe. Afinal, não tenho febre, nem tosse, nem maiores dificuldades para respirar, que seriam os sintomas necessários para procurar uma clínica, conforme as indicações fornecidas à população na linha de consulta do Ministério da Saúde.

Os médicos me recomendam não sair de casa, descansar, tomar muito líquido e esperar alguns dias observando a evolução dos sintomas. Sugerem, além disso, evitar visitar os hospitais, pois muitas pessoas foram infectadas com o coronavírus em centros de saúde. Mas como faz uma pessoa que trabalha fora de casa, que deve cumprir um horário e cujos sintomas não são tão evidentes para pedir uma licença?

Ninguém sabe a verdadeira dimensão do vírus no Irã. As providências tomadas nos últimos dias, como a desinfecção das ruas das grandes cidades ou a construção de bases militares para controle do vírus, indicam que as autoridades perceberam que a situação pode desencadear uma catástrofe maior. Em 22 províncias do país, a oração das sextas-feiras foi cancelada. As imagens que circulam nas redes sociais de pessoas caindo nas ruas, embora não esteja comprovado que seja por causa do vírus, só ajudam a espalhar ainda mais medo entre a população. Um vídeo mostrou uma multidão incendiando um hospital que atendia pacientes com coronavírus. “O interessante é que agora querem fazer dessa situação uma guerra, e dos médicos os novos soldados”, explicava Gazal, uma artista de 28 anos. E enumera atitudes que teriam resultado em ser o Irã, depois da China, o país que mais tem ajudado a espalhar o vírus pelo mundo: “Não cancelaram as comemorações do aniversário da Revolução, não fizeram nenhuma campanha de educação em higiene antes das eleições parlamentares, não fecharam os santuários de Mashad, mas principalmente o de Qom, mesmo sabendo-se que o vírus surgiu dali”, diz a jovem, que acredita que ações de controle do vírus demoraram demais. 

A mortalidade pelo coronavírus no Irã, se os números fornecidos pelas autoridades estiverem corretos, rondaria os 3,2% – é o país com a taxa mais alta do mundo até esta terça, 3 de março, data em que estão confirmados 2.336 casos, com 77 mortes. De um dia para outro, enquanto eu enviava e atualizava este texto, foram 835 novas confirmações. Versões não oficiais que chegam de médicos e pessoas que trabalham no sistema de saúde asseguram que as cifras seriam muito mais altas. No caso do diagnóstico do vírus, a lentidão estaria ligada à dificuldade de acesso aos kits de exame, em consequência das sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos.

Embora os remédios e os equipamentos médicos estejam fora das sanções, elas afetam todas as transações econômicas e negociações do Irã necessárias à importação, o que as torna extremamente difíceis nas atuais circunstâncias. Dias atrás, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, falou em reduzir a pressão para permitir o acesso a esses insumos e equipamentos, mas ainda não houve nenhum avanço nesse sentido. A maior ajuda chegou da Organização Mundial da Saúde, que conseguiu importar os kits através do Iraque, e da produção realizada atualmente pela indústria de defesa local. Se os planos funcionarem, isso permitirá que mais de 300 mil equipes de militares visitem a residência de todos os iranianos para fazer os testes nos próximos dias. “Eles [o governo] acharam que podiam esconder o problema, como escondem tantas outras coisas. E nesse caso não foi assim. Agora estão tomando pé do alcance do problema”, diz um jovem médico que se identifica como Mehdi. 

Os sintomas mudam um pouco a cada dia. Não fiz exames laboratoriais para confirmar o vírus. Sigo em casa. Como não tenho febre, a recomendação é essa, pois 40% dos casos de contágio se dão em hospitais. Ninguém nega que o coronavírus pode alcançar a todos. As luvas, máscaras, a lavagem de mãos são parte de nossa vida e há um suspense para saber qual será o verdadeiro alcance da doença. Isso só saberemos à medida que o Irã consiga ampliar o número de exames, como a Coreia do Sul. Desde aquele sábado na floricultura, não saí mais à rua. Sigo as recomendações dos médicos com esperança de que o que sinto seja parte de uma pequena gripe ou um desequilíbrio do corpo, devido ao cansaço. No último ano, não têm faltado notícias neste país. O que sinto é menos forte que as gripes duríssimas que costumo ter a cada inverno. O mais preocupante a esta altura, caso eu esteja mesmo com coronavírus (tomara que não), é não contaminar ninguém. Sigo escrevendo e entrando ao vivo na rádio onde trabalho. A desconfiança diante de tantas informações desencontradas é um dos inimigos no combate ao coronavírus no Irã.

 

Tradução: Rubia Goldoni e Sérgio Molina 

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