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    Ilustração de Paula Cardoso

questões da política

A professora de caligrafia de Bolsonaro

A história da ex-eleitora de Dilma que se endividou na crise pré-impeachment, converteu-se ao bolsonarismo e foi “cancelada” pela esquerda após viralizar na portaria do Palácio da Alvorada

Allan de Abreu | 17 abr 2020_14h57
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Fátima Dantas Montenegro, 52 anos, acordou mais cedo os filhos Gabriela, 16 anos, e Ian, 8, naquele dia 2 de abril, uma quinta-feira. Queria levá-los até o tradicional cercado que, todos os dias, reúne os simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília. “Eu ensino a eles que precisam amar a nossa pátria. Por isso meu desejo era que vissem tanto o hasteamento da bandeira nacional quanto o nosso presidente”, diz a professora de caligrafia, que já votou no PT mas hoje é bolsonarista convicta.

Ela afirma que não havia planejado discurso para aquela manhã, sob sol forte, no espaço apinhado de pessoas – nenhuma delas usando máscara para se proteger da covid-19. Mas, ao ver Bolsonaro a poucos metros, a professora desandou a falar contra as restrições da quarentena – dois dias antes, o governo do Distrito Federal havia estendido a quarentena até maio. “Não tem condições de a gente viver nesta situação, vai faltar coisa para os meus filhos. Estou aqui pedindo para o senhor: põe os militares nas ruas”, disse Montenegro, diante da plateia em silêncio. “Não quero que o governo banque nossa vida, isso é para vagabundo. Abre esse comércio.” O presidente ouviu o discurso de três minutos em silêncio. No fim, respondeu, lacônico: “Pode ter certeza de que a senhora fala por milhões de pessoas.”

A professora diz que só se deu conta do que havia falado quando o vídeo do seu discurso, gravado pelo celular de um assessor de Bolsonaro, viralizou na internet. Montenegro passou a receber críticas e ameaças pelo celular, cujo número ela divulgava no Facebook para atrair novos alunos para os seus cursos de caligrafia. Entre palavrões, havia algumas ameaças explícitas. “Diziam que sabiam onde eu morava e que era para eu não sair de casa. Fiquei quatro noites inteiras sem dormir.” Ela afirma ter copiado todas as mensagens e entregue para a polícia.

Até a fama súbita, os telefonemas mais desagradáveis que Montenegro recebia vinha dos bancos e empresas especializadas em cobrança, por conta de dívidas que ela acumulara nos últimos anos. “Dever não é crime. Ameaçarem a mim e aos meus filhos, isso sim é criminoso. Não fiz mal a ninguém”, diz, com a voz embargada. A dificuldade financeira, que era grande, tornou-se insuportável a partir de março, com a quarentena por conta do coronavírus. Montenegro, divorciada há oito anos, perdeu todos os alunos do seu curso de caligrafia, sediado em um espaço de coworking. “Eu recebia alunos de São Paulo, Rio, Curitiba. Todos desistiram. Eu fiquei em pânico.” Desde então, sua renda se resume a uma ajuda financeira paga pela ex-sogra, viúva de militar, já que o ex-marido, segundo a professora, não trabalha. O valor, diz, é suficiente apenas para pagar o aluguel do apartamento no Setor Sudoeste da capital federal. “Estou preparando um curso de caligrafia online, para voltar a trabalhar”, afirma. Ela se diz preocupada com a atual pandemia de coronavírus, mas, perguntada pela piauí se tem seguido à risca a quarentena, não respondeu.

Montenegro já havia tido um contato anterior com Bolsonaro em frente ao Alvorada. Em janeiro, do mesmo cercadinho de simpatizantes do presidente, ela ofereceu a ele um projeto para implantar a disciplina de caligrafia no ensino brasileiro. Bolsonaro pediu para ela entregar o portfólio a um de seus assessores. “Depois um funcionário do Ministério da Educação me ligou para dizer que a proposta estava em análise. Aí não tive mais retorno.”

Nascida em Brasília, Fátima cursou Administração no Centro Universitário UDF, entre o fim dos anos 1980 e o início da década seguinte – recentemente ela também concluiria o curso de Pedagogia. Durante a graduação em Administração, começou a estagiar no Instituto de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (Idhab-DF). Depois de se formar, foi nomeada em 1994 pelo então governador Joaquim Roriz para o cargo de “secretária administrativa auxiliar da Diretoria de Administração e Finanças”. Nessa época, diz, surgiu o seu interesse por caligrafia. “Vi um documento escrito à mão por um diretor do instituto com uma letra linda. Aquilo me encantou profundamente.” O emprego público durou dois anos: em dezembro de 1996, ela acabou exonerada pelo novo governador, Cristovam Buarque, então no PT. “Não ficou mágoa alguma. Era um cargo de confiança e é normal que o governante que entra troque a equipe.”

Fora do serviço público, Montenegro decidiu apostar na caligrafia. Fez cursos na área e desenvolveu um método próprio que alia a escrita à correção de postura e à coordenação motora. Em 1997, ela e o então marido abriram a empresa Curso de Caligrafia ABZ, para cursos técnicos (voltados aos que têm dificuldade em escrever) e artísticos (para quem deseja aprender técnicas mais refinadas de grafia), com duração entre 30 e 45 dias. Mas o negócio não prosperou e a empresa foi encerrada com dívidas tributárias ainda pendentes – atualmente, a ABZ está inapta na Receita Federal. 

Em 2010, surgiu a oportunidade de Montenegro dar aulas de caligrafia em um curso preparatório para concursos públicos em Brasília. Abriu uma nova empresa, agora sem o marido, para prestar serviço ao cursinho, mas a aposta também fracassou e a empresa também foi encerrada com dívidas tributárias e bancárias. Mesmo assim, seguiu lecionando. 

Quando começou a pré-campanha eleitoral de 2018, a professora decidiu abraçar a candidatura de Jair Bolsonaro à presidência. “Ele pensa como eu: é patriota, contra o aborto e contra a liberalização das drogas. Homossexualidade não sou contra, mas não concordo com cartilhas na escola falando sobre esse tema. A criança tem o direito de crescer em uma família normal, e depois ela escolhe sua opção sexual”, argumenta.

Vestidos de verde e amarelo, Montenegro e os filhos foram à cerimônia de posse de Bolsonaro, em 1º de janeiro de 2019. Era o segundo evento do tipo ao qual ela comparecia: o primeiro ocorreu exatos dezesseis anos antes, na posse do petista Lula, em quem ela votou na ocasião. A professora também votaria em Dilma em 2010 – “era a primeira mulher na presidência, algo marcante” – mas não em 2014. Quando vieram as crises política e econômica que culminaram no impeachment de Dilma, dois anos depois, Montenegro não engrossou as multidões que saíram às ruas pedindo a saída da então presidente – diferentemente de 1992, quando engrossou o coro dos caras-pintadas que ajudaram a apear Collor do poder.

Enquanto Dilma balançava na cadeira presidencial e a economia do país derretia, a calígrafa tinha outras preocupações. O casamento acabara no início da década, com agressões e ameaças de morte por parte do marido – ele seria condenado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a cinco meses de prisão com base na Lei Maria da Penha. A partir de 2015, no auge da crise econômica brasileira, as dívidas de Montenegro começaram a ser protestadas pelos cartórios de Brasília – no ano passado, ela e os filhos foram despejados do apartamento em que moravam por falta de pagamento do aluguel. Desde então, têm sido frequentes as ligações telefônicas dos credores.

A calígrafa se diz decepcionada com o PT após a Lava Jato – “roubaram além da conta” – e afirma ter prometido a si mesma não mais votar em candidatos da sigla. Sobre Bolsonaro, não tem críticas. Diz que votaria nele de novo, com uma ressalva: “Espero que esse governo não nos traia como fizeram os outros antes dele e que [Bolsonaro] siga sempre o caminho da luz.”

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