ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
O sorveteiro e o prefeito
A pandemia numa cidade onde todo mundo se conhece
Luigi Mazza | Edição 164, Maio 2020
São José do Divino é uma cidadezinha do Norte do Piauí onde o maior acontecimento do ano costuma ser a Festa do Leite – uma competição que dura um fim de semana e premia os melhores leiteiros da região nas categorias “vaca”, “novilha” e “cabra”. Os donos dos animais mais produtivos recebem um cheque e um banho de leite.
O município fica a três horas de carro de Teresina. Tem uma igreja, uma churrascaria, uma lotérica e 5 mil habitantes – tanta gente quanto a que se estima morar no edifício Copan, no Centro de São Paulo. Ainda assim, foi em São José do Divino que se registrou a primeira morte por Covid-19 no Piauí, no final de março. E a vítima foi o prefeito Antônio Felícia (PT), de 57 anos.
O prefeito era diabético e hipertenso, o que fez com que a doença se agravasse rapidamente. Ele começou a sentir os sintomas por volta do dia 16, depois de se reunir em Parnaíba com o dono de uma indústria do leite – o empresário, que também foi contaminado, morreu semanas depois. Acometido por uma febre que ia e voltava, Felícia pensou que tivesse pneumonia. Na madrugada do dia 27, morreu. Houve uma pequena cerimônia de despedida em frente à prefeitura e um cortejo rápido até o cemitério. O prefeito foi sepultado com a bandeira de sua cidade. No dia seguinte, saiu o diagnóstico: Covid-19. São José do Divino decretou quarentena total.
“As pessoas ficaram em pânico, porque aqui todo mundo conhece todo mundo. O pessoal de idade toda hora quer medir a pressão”, conta Almir Pedro Cardoso, dono de uma sorveteria no Centro da cidade. Desde 28 de março, por força de um decreto da prefeitura, as pessoas estão proibidas de circular nas ruas depois das sete da noite. O comércio só pode abrir das sete às onze da manhã, sob risco de multa. Os horários são seguidos à risca; as recomendações para se evitar aglomerações, nem tanto. “A lotérica e o correspondente bancário ficam cheios, com uma fila imensa. Até as onze o pessoal não tem medo de coronavírus, depois todo mundo vai para casa”, diz Cardoso.
Ao fim da manhã, quando encerra o expediente diário, o sorveteiro fica enfurnado em sua residência com a mulher e os filhos de 8 e 11 anos. Passa muito tempo deitado na cama, mexendo no celular. As crianças, sem aulas, têm se entretido com seus smartphones e o computador da casa. Cardoso só liga a tevê para assistir a filmes. Não sabe ler muito bem – abandonou a escola na quinta série do ensino fundamental, porque já trabalhava –, mas consegue se informar pela internet, por meio dos portais de notícias da região.
Cardoso mora a três ruas de distância do seu estabelecimento comercial, onde um pequeno letreiro diz: Sorveteria 2 Irmãos (uma homenagem aos seus dois filhos). O imóvel é modesto, mas tem dez congeladores, com quarenta sabores de sorvete. As mesas foram retiradas para evitar aglomerações, e as vendas despencaram. O sorveteiro tem faturado em torno de 100 reais por dia – antes, fazia o dobro e às vezes o triplo. Às sete da noite, quando o toque de recolher se impõe, ele sai de moto para fazer entregas. A bola de sorvete a 2 reais, que sempre foi um atrativo do local, tem saído pouco. Hoje ele vende principalmente sanduíches, refrigerantes e biscoitos.
“Não sei como vai ser, porque o dinheiro que eu tinha guardado já tô gastando tudinho. Quando começou esse isolamento eu tinha acabado de receber um bocado de mercadoria de fornecedores”, lamenta Cardoso. No final de abril, ele se cadastrou para receber o auxílio emergencial de 600 reais aprovado pelo Congresso. Preencheu as informações necessárias usando o aplicativo do governo federal, mas teve o benefício negado – não sabe por quê, mas acha que digitou errado uma das respostas. Depois disso, o sorveteiro recorreu a um amigo para ajudá-lo a fazer um novo cadastro, e agora aguarda a chegada do dinheiro. “As contas já estão aqui. Se isso não der certo, mês que vem a gente não vai mais manter os compromissos da gente.”
Embora tenha apenas 35 anos, Almir Cardoso é mais velho do que São José do Divino, que ganhou status de município somente em 1992, deixando de ser um distrito de Piracuruca, a maior cidade da região. A história do sorveteiro é parecida com a do prefeito Antônio Felícia: ambos nasceram no então distrito, trabalharam na roça até a adolescência e depois conseguiram emprego longe dali – Cardoso viajou por vários estados como encanador industrial da Odebrecht, enquanto Antônio Felícia morou alguns anos no Pará, trabalhando para a Vale. Em 2014, depois de juntar dinheiro, Cardoso voltou para São José com a mulher e os filhos.
“O prefeito era muito querido, muito gentil com todo mundo”, diz Cardoso, que conhecia Felícia pessoalmente e votou nele. O vice-prefeito, professor Assis Carvalho (PSDB), que assumiu o governo, é também um velho conhecido: deu aulas de português para Cardoso no colégio municipal.
Apesar da morte do prefeito, o sorveteiro é cético quanto aos riscos da pandemia. “Falam que é muito contagioso, mas ninguém que era próximo do prefeito foi contaminado. O pessoal tá exagerando”, afirma. Ele não é o único a pensar assim, já que até mesmo no microcosmos de São José do Divino correm notícias falsas. Uma delas circulou via áudio de WhatsApp, em que uma mulher, que se apresentava como secretária da prefeitura, dizia que o diagnóstico de Covid-19 do prefeito havia sido forjado: “Eu peguei dinheiro da mão dele e até hoje estou bem. Isso aí tem falcatrua.” A prefeitura publicou uma nota desmentindo o áudio.
Com o tempo, os fatos se impuseram sobre as mentiras. No dia 6 de abril, uma das enfermeiras que atendeu o prefeito no hospital de Piracuruca, onde ele morreu, foi diagnosticada com o novo coronavírus e precisou se afastar do trabalho. Depois, foi a vez de um dos médicos plantonistas que teve contato com Antônio Felícia. No dia 8, dos dezessete testes que foram feitos em familiares e funcionários do prefeito – todos moradores de São José do Divino –, dois voltaram com resultado positivo para Covid-19. Os nomes das pessoas não foram divulgados. Com três casos entre 5 mil moradores, São José do Divino tinha, até o meio de abril, um número de contaminados proporcionalmente maior do que o de infectados na cidade do Rio de Janeiro.