“Quando Sergio Moro mandava prender ou fazer conduções coercitivas contra a previsão expressa da lei, prejulgando a causa antes mesmo de haver uma acusação formal, Bolsonaro e seus seguidores sequer cogitavam contestar o magistrado” ILUSTRAÇÃO: LOREDANO_2020
O ovo da serpente
Começaram com Moro e seus discípulos os ataques ao STF que hoje ameaçam a democracia
Fábio Tofic Simantob | Edição 166, Julho 2020
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, virou persona non grata no Palácio do Planalto ao proibir a nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. O ministro argumentou que o ato de nomeação de um amigo da família presidencial estava contaminado por desvio de finalidade em “inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”. Logo veio a resposta. No dia seguinte, o presidente da República Jair Bolsonaro disparou uma saraivada de críticas e até ameaças contra o STF e Moraes.
Adotou a mesma postura com relação a Celso de Mello – depois que o ministro tornou público o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril e pediu uma avaliação da Procuradoria-Geral da República sobre a conveniência de apreender o celular do presidente. Atacou outra vez Moraes, quando este autorizou um conjunto de mandados de busca e apreensão em endereços de pessoas próximas ao presidente. Depois que seus apoiadores promoveram uma chuva de fogos de artifício sobre a sede do STF, Bolsonaro tentou suavizar seus ataques ao tribunal, enviando até uma comitiva a São Paulo para conversar em privado com Moraes. Fez isso movido pelo temor de que decisões futuras do tribunal possam lhe prejudicar, e não porque adquiriu um súbito respeito às funções dos ministros.
A animosidade do presidente contra o STF, contudo, é anterior a esses fatos. Todos se lembram da fala do deputado federal Eduardo Bolsonaro (SP) de que bastavam um cabo e um soldado para fechar o Supremo. O STF costuma ser o alvo preferencial também de apoiadores do presidente, que gostam de se juntar na rampa do Planalto para atacar a democracia e a Justiça, e até se aglomeraram à porta do STF com máscaras e tochas na mão – uma encenação sinistra inspirada em bandos fascistas do passado. O presidente não censura esses atos. Pelo contrário, estimula-os.
O presidente tem uma visão distorcida, quando não infantilizada, a respeito do Supremo e do ofício de julgar. Mas não é apenas a imaturidade psicológica que o impede de compreender o sentido da Justiça para além de algo que lhe favoreça no momento oportuno. Muito tempo antes de assumir a Presidência, Bolsonaro já praticava ataques à democracia e às instituições democráticas, recorrendo a um discurso que, em outros tempos, costumava desqualificá-lo de imediato para o debate político. Algo aconteceu no Brasil nos últimos anos que permitiu que esse discurso deixasse de ser visto como caricato e ganhasse a atenção de parte dos brasileiros.
A crise das esquerdas e do PT pode ter contribuído para o fortalecimento da direita, mas isso não seria suficiente para cacifar alguém do talhe de Jair Bolsonaro, tanto mais que havia várias outras opções eleitorais, nas diferentes esferas da vida política. O que de fato mudou o cenário foi a Operação Lava Jato, na qual o discurso do presidente encontrou solo fértil. Não me refiro aqui a essa ou àquela condenação gestada em Curitiba, mas sim ao proselitismo antissistema que encontrou eco entre muitos, propagando-se para fora dos autos – na imprensa, em artigos e entrevistas. Foi uma luta de guerrilha. Sergio Moro não virou ministro por causa de Jair Bolsonaro. Foi Bolsonaro quem pegou carona no discurso de Moro.
Em diversos momentos, procuradores da Lava Jato deixaram seus afazeres em Curitiba para empreender campanhas contra a classe política e a cúpula do Poder Judiciário. Os direitos e garantias fundamentais foram demonizados, a Constituição foi transformada em reles escudo para delinquentes. Esse discurso já se difundira, de certa forma, em parte da opinião pública, sendo usual ouvi-lo até mesmo da boca de participantes de programas de rádio e televisão. Foi com Moro e a Lava Jato, entretanto, que encontrou o “refinamento” social de que precisava para penetrar nos salões de baile da sociedade brasileira.
O bastão moral que Bolsonaro empunhou para vencer as eleições foi o da cruzada antissistema ou da luta contra tudo que está aí, principalmente contra os direitos e liberdades. Suas manifestações contra o STF, portanto, vão muito além de uma discordância de momento. Visam atacar a própria observância e o respeito às liberdades garantidas na Constituição.
Bolsonaro disse uma vez, num arroubo absolutista nos moldes atribuídos a Luís XIV, que “eu sou, realmente, a Constituição”. É natural, e até legítimo, que ele tenha um senso de justiça próprio. Cada um tem o seu. O ser humano não nasce com capacidade inerente para descrever os fenômenos físicos da natureza, mas bastam alguns anos de vida para já se achar apto a dizer o que é justo e o que não é. Durante muito tempo, vive num mundo binário, maniqueísta, onde justo é tudo o que lhe agrada, e injusto, tudo o que lhe prejudica. Mesmo quando chegam à vida adulta, quase todas as pessoas pressupõem que ser justo é tomar partido. Isso fica evidente quando há um conflito entre nações: a questão não é qual país é o mais justo, mas, sim, de que lado estamos.
Esse sentimento comum a todo ser humano é tão poderoso que as próprias instituições jurídicas o solicitam em determinadas situações. Algumas sociedades democráticas até hoje confiam a jurados, homens e mulheres escolhidos aleatoriamente entre pessoas comuns, a tarefa de julgar um réu, a partir da avaliação de determinados fatos e provas. No Brasil, são pessoas comuns que julgam casos de homicídio e outros crimes dolosos contra a vida.
O filósofo suíço Henri-Frédéric Amiel (1821-81) disse que um físico, um químico, um matemático e um jurista são capazes de dar respostas tão justas aos problemas da alma humana como as que daria um barbeiro. Mas, se todos estão habilitados a emitir juízo sobre o justo e se há tantos juízos justos diferentes e até antagônicos, de onde vem a legitimidade de uma Suprema Corte numa sociedade democrática? Por que confiar a onze ministros, ou, em maior escala, a milhares de juízes de direito, o poder de dizer o que é justo para toda uma nação?
Ocorre que julgar o próprio direito é tarefa de especialistas. Não é a mesma coisa que fazem os jurados ao examinar os conflitos da alma humana ou afirmar a ocorrência de fatos criminais. A aplicação do direito exige aprendizado teórico e técnico, e não deve por isso ficar sujeita à noção de justiça que emana do senso comum.
Essa forma de enxergar o julgamento técnico é antiga. Aristóteles, no prólogo de Ética a Nicômaco, alertou que, em questões gerais da vida, o bom juiz é o que dispõe de cultura geral, mas, no que diz respeito a um domínio determinado, o julgamento deve ser feito por especialistas. O juiz de direito não recebe o cargo para julgar de acordo com sua cultura geral, suas convicções íntimas ou sua forma especial de ver o mundo, como às vezes se acredita. A aprovação em concurso público lhe confere salvo-conduto para aplicar o direito de acordo apenas com o conhecimento técnico-jurídico que aprendeu na universidade. Para ingresso na magistratura, a prova é de direito, e não de cultura geral ou de senso de justiça. Até para ser nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal o requisito fundamental é ter notório saber jurídico, e não um senso de justiça aguçado. O juiz é um especialista, como é o advogado, o dentista ou o veterinário.
Investido, como juiz, do poder de aplicar a lei e nada mais do que isso, Moro tornou-se a figura do juiz rebelde, do juiz símbolo da subversão da letra fria da lei, do herói combatente das injustiças que, no seu entender, cismam em permanecer incrustadas como parasitas nos textos legais. As regras que estabelecem onde um caso deve ser julgado – se em Curitiba ou em Brasília, por exemplo – foram jogadas para debaixo do tapete. A capital do Paraná se tornou o lugar do juízo universal do combate à corrupção, com prisões sendo decretadas aos borbotões como antecipação de pena, com o objetivo de forçar delações premiadas. Em um dos primeiros habeas corpus que chegaram ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, questionando a legalidade de dez prisões decretadas por Moro, um procurador da República, Manoel Pastana, deixou escapar que a prisão estava sendo usada para extrair confissões.
O próprio Moro, em artigo publicado em 2004 no qual faz uma análise da Operação Mãos Limpas, ocorrida na Itália, antecipava alguns métodos que seriam empregados dez anos mais tarde pela Lava Jato. Ele diz, por exemplo, que o combate à corrupção passava necessariamente por um exercício de deslegitimação do sistema vigente – o que se traduziu na deslegitimação de todos aqueles que não aceitassem se dobrar aos métodos da sua futura investigação. Aludia ainda aos “juízes de ataque” – pretori d’assalto, como se diz na Itália –, prontos a usar a caneta para espalhar seu senso de justiça à população. Era como Trussótzki, o bufão do romance O Eterno Marido, de Dostoiévski, que creditava as grandes ideias da humanidade a sentimentos profundos, e não ao conhecimento adquirido ao longo de séculos.
Moro era a própria encarnação do juiz de ataque. E ai do desembargador ou do ministro que ousasse questionar esses métodos. Eram logo apontados como defensores da corrupção, amantes da impunidade, arautos dos poderosos. Teriam que enfrentar a fúria da opinião pública, mobilizada rapidamente feito tanques Panzer, pilotados por integrantes da força-tarefa da Lava Jato. O direito virou refém do arbítrio dos justos.
A estratégia de deslegitimar o direito e os sistemas jurídico e político tornou-se, a certa altura, tão militante, que alguns procuradores passaram a atacar ministros do STF mesmo em casos em que não atuavam. Em 3 de julho de 2016, Carlos Fernando dos Santos Lima e Diogo Castor de Mattos, dois dos principais integrantes da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, assinaram um artigo no jornal Folha de S.Paulo atacando o Supremo por causa de um habeas corpus concedido a um réu que respondia a processo em São Paulo.
O artigo comparava a decisão ao salto duplo twist carpado da ginasta brasileira Daiane dos Santos e, de maneira velada, levantava uma série de suspeitas sobre os motivos que teriam levado o STF a conceder o habeas corpus. Aproveitando-se da raiva da opinião pública e da incompreensão que esta tinha da matéria jurídica, os procuradores buscaram deslegitimar o papel do STF como garantidor de liberdades individuais, criando uma espécie de ruptura entre a sociedade e a Corte. O direito passou a ser visto como a trava que impedia o país de prosperar, o obstáculo para alçá-lo a outro nível de civilização. Como se, para progredir, o Brasil precisasse ultrapassar o direito, deixar que os justos reescrevessem as leis e a Constituição.
Bolsonaro é o subproduto político dessa visão de mundo.
Não deixa de ser curiosa a indignação de Jair Bolsonaro com a decisão de Alexandre de Moraes. Ele acusa o ministro de usar sua caneta de juiz para corrigir injustiças de outro poder da República, o Executivo, exatamente o tipo de decisão que, como deputado e depois como candidato, aplaudia com fervor. Agora, exige que o Judiciário adote postura inversa àquela que o ajudou a chegar ao Palácio do Planalto. Guia-se pela famosa frase atribuída a Getúlio Vargas, que poderia ser assim atualizada: “Aos meus inimigos, os mais profundos sentimentos de justiça do juiz Moro; a mim, a lei.”
Cabe ao STF julgar a validade do ato administrativo de nomeação feita pelo presidente da República, caso haja indícios de desvio de finalidade. O chefe do Executivo não poderia, por exemplo, nomear um filho para cargo público. Se o fizesse, ninguém censuraria a decisão do STF de anular a nomeação. Portanto, é cabível discutir se o ministro Alexandre de Mores acertou ou errou ao barrar a nomeação de Ramagem, mas é um casuísmo classificar sua decisão como “ativismo do STF”. Nem toda decisão errada é ativismo.
Em novembro de 2018, quando a ministra Cármen Lúcia deferiu liminar em ação proposta pela Procuradoria-Geral da República, suspendendo o decreto de indulto editado por Michel Temer, o presidente eleito Jair Bolsonaro não teceu uma única crítica ao STF, nem disse que o Supremo estaria invadindo a esfera do Executivo. O silêncio tinha razões óbvias. Bolsonaro é contra o indulto, salvo se estiver afinado com sua ideologia – como o que concedeu a policiais em 2019. Situação parecida ocorreu quando o ministro Luiz Fux suspendeu a parte do pacote anticrime que institui o juiz de garantias. Apesar de ter sancionado o artigo que previa esse tipo de juiz, Bolsonaro não tinha nenhuma simpatia pela proposta, que separa o juiz da investigação do juiz do julgamento – a antítese do que Moro sempre representou. De novo, Bolsonaro não deu um pio contra a decisão do STF.
Também não fez nenhum reparo ao Supremo quando Dias Toffoli, presidente da Corte Suprema, deferiu liminar suspendendo todas as investigações de lavagem de dinheiro no país baseadas em relatórios de informação financeira do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Nem poderia criticar, pois a medida atendeu a um pedido formulado por seu filho e senador, Flavio Bolsonaro, investigado no Rio de Janeiro por suposto crime de “rachadinha”, o confisco ilegal de parte dos salários dos funcionários de seu gabinete parlamentar. Tampouco o inquérito das fake news recebeu qualquer espécie de crítica do presidente – até o momento em que se voltou contra seus correligionários.
Extremistas de direita e de esquerda podem espernear, mas, no final das contas, todos querem se agarrar à Constituição para proteger seus direitos. E isso ocorre porque uma Constituição não existe apesar dos conflitos sociais, mas por causa deles. Mau sinal é quando juízes caem na tentação de atender a certas expectativas sociais do momento em detrimento das liberdades.
Para o historiador israelense Yuval Noah Harari, autor de Sapiens: Uma Breve História da Humanidade, não há justiça na história. O que não quer dizer que estão todos desculpados. O juiz rebelde dos séculos XVIII ou XIX – que se opunha às injustiças de um ordenamento jurídico opressor, construído sem a participação política da maioria da população – nada tem a ver com o juiz de assalto que Moro cita no artigo de 2004, um magistrado que se arroga o poder de cassar direitos e liberdades inscritos na Carta da República. Já não vivemos no século XVIII. O regime escravocrata dava espaço de participação política para apenas uma minoria, que governava o restante da população com mão de ferro, fazendo da lei um instrumento de opressão. Descumpri-la, portanto, era a única forma de enfrentar a tirania.
Hoje não. Nossa época é a “era dos direitos”, na definição do filósofo italiano Norberto Bobbio (1909-2004). O Estado moderno não é somente democrático, mas também de direito. O Parlamento é a mais sofisticada forma de representação democrática que o ser humano foi capaz de criar, apesar de suas limitações. A principal delas é que não consegue resolver problemas individuais, pois as leis são feitas com vistas ao interesse coletivo, de toda a sociedade ou da maior parte dela, sem se ater ao que diz respeito a um único indivíduo, especificamente. A segunda limitação do Parlamento é que essa instituição, por mais democrática que seja, nem sempre representa os interesses da sociedade inteira, mas apenas da maioria.
A Corte Constitucional moderna – no Brasil, o Supremo Tribunal Federal – serve principalmente para garantir que um indivíduo, mesmo que ele não disponha de representação no Parlamento, possa ter seus direitos garantidos. Por isso vemos, em boa parte do mundo, as supremas cortes descriminalizando o uso de certas drogas e legalizando o aborto. Estão fazendo o que o processo político muitas vezes não consegue: ampliar e garantir liberdades individuais.
Imagine um país onde uma das cláusulas pétreas – aquelas que, em nenhuma hipótese, podem ser alteradas – é o direito de os homens usarem roupas de todas as cores. A certa altura, porém, resolve-se fazer um plebiscito para proibir o uso de roupas cor-de-rosa por homens, e toda a população, exceto um cidadão, vota a favor da nova lei. O STF existe para garantir que aquele único cidadão possa continuar usando trajes cor-de-rosa sem ser preso, mesmo que isso contrarie a vontade da maioria. A Corte pode autorizar o uso depois de julgar seja uma ação direta de inconstitucionalidade da nova lei (ação que só algumas autoridades, organizações ou entidades estão autorizadas a propor, como o presidente da República, partidos políticos e a Ordem dos Advogados do Brasil), seja um pleito individual movido pelo cidadão proibido de usar cor-de-rosa. A decisão favorável a ele repercutirá em todo o sistema de justiça penal, permitindo que outros homens usem a mesma cor, caso queiram.
A união homoafetiva, reconhecida pelo STF há alguns anos, pode agredir a moral de determinada comunidade, mas ninguém em sã consciência cogita entrar com ação pedindo a anulação do casamento de dois homens, porque não existe um direito individual à não união de duas outras pessoas, mas no máximo uma expectativa social de que essa forma de enlace amoroso não seja tolerada.
O mesmo se pode dizer a respeito do uso de células-tronco para pesquisas, do aborto de anencéfalos, da prisão só após o trânsito em julgado ou o do sacrifício de animais em cultos religiosos, questões que também foram levadas ao STF nos últimos anos. Proibi-los seria negar direitos individuais à intimidade, dignidade da pessoa humana, liberdade de culto, presunção de inocência. Ao permiti-los, o STF não violou o direito de ninguém. No máximo, frustrou expectativas sociais da população, talvez até da maioria.
O papel do STF é garantir direitos e não corresponder às expectativas sociais de quem quer que seja. Um sinal de que uma Suprema Corte não vai bem é quando ela resolve inverter o seu papel. A pretexto de atender a vontade de suposta maioria, o Supremo resolve suprimir um direito individual qualquer – como o de homens usarem cor-de-rosa – sob alegação de que, embora esse direito conste da Carta da República, a maioria da população já não o tolera mais. Agir assim é como abrir a caixa de Pandora e se degenerar.
Como se vê, é papel difícil o de uma Corte Constitucional. Quando agrada apenas a um indivíduo ou a uma minoria, e desagrada a todo o resto, pode gerar indignação, mas não está senão fazendo valer direitos inscritos na Constituição. Está apenas desempenhando fielmente o papel que se espera dessa Corte em um Estado que não é só democrático, mas também de direito. Quando quer agradar a todos em detrimento do direito de um único indivíduo, desvirtua-se e enfraquece, passando a ser mero coadjuvante do processo de deterioração da vida democrática. Daí a se tornar presa fácil do discurso populista de um presidente da República é só um passo. É preciso distinguir, portanto, na atividade de uma Suprema Corte, entre a atitude de reafirmação de direitos e liberdades – que permite conquistas que o processo político jamais consagraria – daquilo que é ativismo puro e simples, com a indevida intromissão política.
O que Jair Bolsonaro chama de “ativismo” é, na verdade, fruto de sua imaginação binária. Ativismo para ele é tudo o que o STF decide contra suas expectativas pessoais. O que o presidente critica nas decisões do STF é a própria substância da Corte, ou seja, a reafirmação de direitos individuais inscritos na Constituição Federal – os mesmos que Bolsonaro despreza, como os dos índios, das mulheres, dos negros, dos homoafetivos e dos acusados no processo penal (a menos que sejam seus amigos ou familiares, claro).
A revolta do presidente com os inquéritos a respeito da difusão de fake news é fruto do seu garantismo de ocasião. Quando Moro se impunha em audiências da Lava Jato, encarnando a figura do juiz acusador, com protagonismo maior que o dos próprios acusadores, Jair Bolsonaro e seus asseclas ficavam em êxtase. De repente, passaram a cobrar o respeito ao sistema acusatório, sistema judicial em que o juiz não toma iniciativa e é um mero espectador do embate travado entre as partes – a antítese do que Moro e a Lava Jato representaram. Quando Moro mandava prender ou fazer conduções coercitivas contra a previsão expressa da lei, prejulgando a causa antes mesmo de haver uma acusação formal, Bolsonaro e seus seguidores sequer cogitavam contestar o magistrado. Da noite para o dia, entretanto, o presidente passou a criticar que o mesmo juiz do inquérito possa vir a ser também o juiz do julgamento final, no caso do inquérito do STF.
O próprio Moro vem exercendo sua defesa com uma amplitude que jamais garantiu aos réus que respondiam processo na sua vara. As investigações em Curitiba corriam em sigilo absoluto, com vazamentos seletivos, sem a possibilidade de qualquer intervenção da defesa dos investigados nos atos, menos ainda nos depoimentos de testemunhas ou colaboradores. O acesso à prova só era permitido depois que a Polícia Federal já havia devassado as residências, cumprido mandados de prisão e exposto o preso algemado em rede nacional de tevê, para deleite do clamor público.
Uma reportagem da Folha de S.Paulo, publicada no dia 8 de junho, revelou que, ao contrário da praxe judiciária brasileira, o inquérito que investiga se o presidente Bolsonaro interveio na Polícia Federal vem garantindo aos advogados dos investigados não apenas a sua presença nos depoimentos como também a possibilidade de fazerem perguntas às testemunhas, algo que só se costuma permitir na fase judicial. O modelo é digno de aplauso, pois consagra a ampla defesa e o contraditório, mas desde que se aplique a todos, e não apenas a “cidadãos especiais”.
O inquérito sobre a difusão de fake news provocou polêmica porque não é usual o STF fazer investigações, tanto mais quando a própria Corte é vítima. Mas a investigação está prevista num artigo do Regimento Interno do STF, que permite a esse poder instaurar inquérito para apurar fatos ocorridos em suas dependências. O Código Penal brasileiro considera consumados os crimes de ameaça no momento que as vítimas tomam conhecimento deles. Sendo assim, os ataques aos ministros, embora virtuais, teriam se consumado nas dependências do Supremo. Por outro lado, se o STF não puder julgar casos em que é vítima, quem então julgaria o presidente por crime contra a honra dos onze ministros? Ninguém? O presidente não responderia pelo crime? É o STF que, em última instância, interpreta as suas normas e o seu regimento. A Corte pode errar. E erra. E está sujeita a críticas. Mas não se pode dizer que está invadindo a competência de outro poder ou violando a harmonia entre os três poderes.
Continua muito atual o discurso proferido por Rui Barbosa no Senado em 29 de dezembro de 1914: “Em todas as organizações, políticas ou judiciais, há sempre uma autoridade extrema para errar em último lugar […]. O Supremo Tribunal Federal, senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa que deva ser considerada como erro ou como verdade.”
Esse privilégio de errar por último não implica desequilíbrio de forças com relação aos poderes Executivo e Legislativo, se lembrarmos que o STF é o único dentre eles cuja cúpula (seus onze ministros) é escolhida pelos outros dois poderes (o presidente nomeia, e o Senado aprova ou não). Ainda hoje, é mais prudente dar ao Supremo Tribunal Federal o privilégio de ser o último a errar – e não ao ocupante de ocasião do Palácio do Planalto.
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Nota: Fábio Tofic Simantob é advogado de diversos réus na Operação Lava Jato.
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