ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
De volta à Rua do Ouvidor
Uma pequena livraria no Centro do Rio sobrevive à catástrofe econômica causada pela quarentena
Fernanda da Escóssia | Edição 166, Julho 2020
Tarde de 3 de junho, quarta-feira. No Centro do Rio, o livreiro Rodrigo Ferrari cruza a Rua do Ouvidor, deserta, e abre o térreo do sobrado do número 37, onde funciona a Livraria e Edições Folha Seca. Fosse um dia comum, ele estaria bastante atrasado – normalmente abria as portas da loja às dez da manhã. Mas a pandemia de Covid-19, além de esvaziar a cidade, embaralhou o tempo: já não há mais quartas-feiras, nem quintas ou sextas. Já não há nem mesmo os sábados, os dias mais animados da livraria, com tardes de autógrafos e rodas de samba.
Ferrari tinha ido à Folha Seca naquele dia para a faxina periódica que se obrigou a fazer durante a quarentena: limpar os livros, o chão e a vitrine. Sem clientes, restou-lhe tirar o pó, organizar o estoque e calcular os prejuízos desde que fechou a livraria, em 21 de março. Como nunca teve site para vendas online e muito menos serviço de entrega, Ferrari se viu num beco sem saída, com as despesas fixas se acumulando sem parar.
Teve, então, a ideia de apelar para um projeto de venda antecipada de livros. “Fiquei um pouco constrangido de início, mas não tive opção”, contou. O projeto foi lançado numa plataforma de arrecadação virtual: o cliente comprava vales com valores a partir de 50 reais, que poderá descontar em compras na livraria, assim que a vida voltar ao novo normal.
Para incrementar o projeto, Ferrari bolou kits com obras editadas pela própria Folha Seca e produtos da casa, como sacolas e banners. Fez também uma rifa com cinquenta números, cada um a 200 reais. Sua meta era conseguir 40 mil para cobrir as despesas até a reabertura do comércio. Para sua surpresa, ele obteve 116 mil reais com as vendas antecipadas. Tão importante quanto a quantia arrecadada foi, para ele, a mobilização das pes-soas com o objetivo de evitar que algo de muito ruim atingisse a livraria. Com isso, Ferrari teve certeza de que a Folha Seca era mais que uma loja: era uma comunidade.
E foi pensando nos clientes que ele optou por não abrir a livraria depois de o governo do Rio permitir a retomada parcial do comércio em horários reduzidos. “Acredito em vacina, Terra redonda e no perigo desse vírus. Só vou abrir quando houver segurança para os clientes”, afirmou.
É muito antigo o laço dos livros com a Rua do Ouvidor, uma das mais badaladas do Rio de Janeiro entre o século XIX e meados do XX. De todas as ruas da capital federal, a Ouvidor era “a mais passeada e concorrida, e mais leviana, indiscreta, bisbilhoteira, esbanjadora, fútil, noveleira, poliglota e enciclopédica”, escreveu Joaquim Manuel de Macedo, em suas Memórias da Rua do Ouvidor. Machado de Assis também deixou suas impressões sobre essa artéria do Centro, que aparece com frequência em seus romances: “Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloquente que exprime todos os sentimentos e todas as ideias.”
Na Ouvidor funcionaram algumas das lojas mais afamadas do Rio, além de jornais e editoras-livrarias, como a Garnier, que publicava Machado, Macedo, José de Alencar e vários outros autores ilustres, e a Francisco Alves, cujo prestígio avançaria pelo século XX. No início dos anos 1930, o número 110 passou a abrigar a Livraria José Olympio, que foi também a casa editorial de Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz e Marques Rebelo. A partir dos anos 1990, a decadência progressiva do miolo da cidade se fez sentir brutalmente na Ouvidor.
Carioca, flamenguista e boa praça, Ferrari – para quase todo mundo, Digão – cursou história na UFRJ, mas não concluiu, jogou muito futebol com o pessoal de psicologia da PUC e acabou virando livreiro. Criou a Folha Seca em 1998, especializada em livros sobre futebol, samba e assuntos do Rio de Janeiro. O nome é uma homenagem ao chute inventado por Didi, meio-campo do Botafogo e da Seleção Brasileira, bicampeão do mundo nas Copas de 1958 e 1962.
Na virada de 2003 para 2004, Ferrari decidiu se mudar para um casarão histórico na Ouvidor. O movimento deu certo. Quando resolveu abrir também aos sábados à tarde, coisa surpreendente à época, pois o Centro do Rio ficava praticamente vazio nesse horário, comerciantes próximos previram o pior: movimento zero e assaltos. Mas nada disso aconteceu. Os clientes continuaram a vir e, como era sábado, permaneciam mais tempo na loja. Uma roda de samba surgiu à porta da livraria e, pouco a pouco, acabou tomando a rua, que se transformou num grande boteco ao ar livre. Animados, alguns negócios ao lado tomaram a mesma decisão e continuaram abertos nos sábados à tarde.
A Folha Seca se tornou o estabelecimento-âncora de um novo cais no Rio, ao qual aportam músicos, artistas, intelectuais, jornalistas, escritores, historiadores, amantes do futebol e pessoas que têm em comum o amor pelos livros e o Centro da cidade. A vitrine e as paredes da loja, onde há uma foto do ex-presidente Lula, não escondem o engajamento do dono e do público em causas da esquerda, de “Não vai ter golpe” a “Lula livre”, passando pela defesa do SUS e por “Justiça para Marielle e Anderson”.
Antes da pandemia, a circulação (e a aglomeração) de pessoas e ideias era parte fundamental do modelo de negócio daquele trecho da Ouvidor. Mas agora, além do silêncio, paira na rua um amontoado de incertezas. Ferrari ainda não sabe ao certo como os vizinhos irão se organizar em tempos de vigilância sanitária. A recomendação das autoridades é para que os restaurantes espalhem mais as mesas e adotem máscaras e álcool em gel para os garçons. Mas como farão os clientes para tomar o chope e beliscar o torresmo? Vão desistir da empreitada ou vão se arriscar?
Certo é que o livreiro e seu único funcionário deverão trabalhar de máscara quando abrirem de novo as portas da Folha Seca, o que está previsto para agosto ou, com sorte, este mês. Nos dias de lançamentos, a entrada na loja será controlada para evitar superlotação nos 30 m2 do estabelecimento.
Ferrari planejava inaugurar o site da livraria antes da reabertura. E tão logo tudo volte a funcionar, quer entregar em mãos aos clientes as compras que eles fizeram antecipadamente na quarentena e agradecer um por um a solidariedade que lhe prestaram. Entregará também os prêmios da rifa. Os cinco sorteados receberão pequenas preciosidades do mundo do samba, como o livro-CD Memória do Jongo, editado pela Folha Seca, há muito esgotado, mas do qual Ferrari guardou alguns poucos exemplares. Os demais 45 compradores da rifa não sairão de mãos abanando: vão receber livros de brinde.
O grande evento do retorno, porém, é outro, e está sendo planejado com esmero. Ferrari quer colocar um piano na rua para uma memorável roda de samba. A ideia é reavivar de vez a antiga Ouvidor e espantar para bem longe os maus fluidos que infestam o país.