Sai antígona
Nuno Ramos | Edição 167, Agosto 2020
A violência, real e simbólica, que estamos vivendo é de tal ordem, e tão profunda, que lembra a de uma guerra civil – instituições pouco confiáveis, mortes desnecessárias, mentiras para todo lado, incompatibilidade intransponível entre cidadãos. O inominável, o impossível de exprimir, vai aos poucos reivindicando seus direitos, como se a linguagem, essa conexão com o ser lá fora, com a prospecção, fosse ela mesma manchada de forma tão profunda e insuperável que, para não mentir, só pudesse silenciar. No trecho que selecionei de Antígona (o final da peça, a partir da condução da heroína a seu túmulo-em-vida), Creonte, o poderoso, perde absolutamente tudo – mulher, filho, autoestima, poder. Acho um texto atual, premonitório até, mas não saberia pronunciá-lo, muito menos encená-lo. Então retirei por inteiro o texto de Sófocles, deixando apenas as indicações e as rubricas (usei a versão da editora Zahar, em tradução de Mário da Gama Kury). Talvez só assim, no mais absoluto silêncio, seja possível ouvir a (nossa) tragédia.