ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
À esquerda da esquerda
As primeiras eleições da UP, o novo partido político do país
Leandro Aguiar | Edição 167, Agosto 2020
Do alto de uma laje na Ocupação Eliana Silva, na região do Barreiro, periferia de Belo Horizonte, Leonardo Péricles, com a barba hirsuta e o cabelo black power pontilhado de fios brancos, discursa aos seus seguidores nas redes sociais. “Enfrentamos uma pandemia sem as condições para que a maioria de nós, trabalhadores, faça quarentena. Estamos sendo jogados à morte! Precisamos ir às ruas para derrubar esse governo fascista, o maior obstáculo para que a quarentena seja possível. É ilusão achar que o Congresso votará o impeachment sem pressão popular!”
Péricles, 39 anos, é o presidente nacional da Unidade Popular (UP), o novo partido que disputará as eleições de 2020. A UP foi gestada nas manifestações de 2013. Durante os protestos, organizações como o Movimento de Mulheres Olga Benario (MMOB) e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB, não confundir com MBL, que atua no terreno oposto) se convenceram de que os partidos de esquerda estavam desconectados do que deveria ser sua base – os mais pobres. Decidiram formar uma nova legenda, a 17ª no espectro da centro-esquerda à esquerda no país.
A UP conseguiu cumprir as tarefas nas quais vem tropeçando a Aliança pelo Brasil, partido que o presidente Jair Bolsonaro quer criar. Para colher as quase 500 mil assinaturas requeridas pelo Tribunal Superior Eleitoral para a criação de um partido, os movimentos foram às periferias, aos pontos de ônibus e às portas das fábricas. Em agosto de 2019, protocolaram o pedido de registro. Em dezembro, o TSE reconheceu cumpridas as exigências e confirmou a UP como o 33o partido político em atividade no país, conferindo-lhe o número 80 nas urnas.
“Concordo demais com o discurso do Mano Brown na véspera do segundo turno, em 2018”, afirma Péricles. “Parte dos petistas não gostou, mas a verdade é que, com a vitória de Lula em 2002, houve uma burocratização, um distanciamento da esquerda em relação ao povo. Reconectar não é fácil.”
Para ilustrar esse ponto, o presidente da UP lança mão de um exemplo recente, a greve dos entregadores de aplicativos em 1º de junho último. “Foi um tapa nos partidos e sindicatos tradicionais, que achavam que esses trabalhadores não eram mobilizáveis, por estarem pulverizados.” Péricles diz que não viu nenhum deputado no dia da paralisação que ele ajudou a organizar em Belo Horizonte. “Nem um assessor! Se os mandatos não servem para auxiliar na luta, servem para quê?”
Foi um álbum dos Racionais MC’s, Sobrevivendo no Inferno (1997), que levou Péricles, aos 16 anos, a refletir sobre sua condição de negro e o preconceito que o atingia. Além das rimas dos rappers paulistanos, ele guardou dessa época um conselho do pai, Francisco Vieira, pintor de automóveis e, se fosse preciso, um entusiasmado grevista. Na oficina, os colegas costumavam troçar: “Ô, Chico, cuidado pra não ficar mais preto de tanto tomar café.” Ao que o pai retrucava: “Vou é tomar mais pra não descolorir.” E, depois, virava-se para o filho, dizendo: “Léo, você tem que se orgulhar dessa cor nossa.”
Incentivado pela mãe, Lourdes Rosária, que se desdobrou para custear a sua educação, Péricles ingressou no curso de técnico em eletrônica no Colégio Padre Eustáquio. Em 1999, uma mudança na concessão de bolsas ameaçou sua permanência no curso. Um colega, líder estudantil, o convidou a ajudar na organização de um protesto contra as novas medidas da escola. Pressionado pelos atos dos alunos, o tradicional colégio católico belo-horizontino suspendeu a mudança. Impressionado com a eficácia da manifestação, Péricles ingressou na militância política.
De mecânico, ele passou a estudante de biblioteconomia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mas Péricles não se adaptou ao novo ambiente. “A universidade não é projetada para os negros. A nova geração está fazendo um embate interessante para alterar a forma e o conteúdo universitário. Mas eu não me adequei”, conta.
Em 2007, as filas imensas no restaurante popular da UFMG inflamaram os universitários, e centenas de estudantes ocuparam o local durante três dias. A reitoria processou os alunos que considerou responsáveis pelo ato, entre eles Péricles. Isso o impediu de trancar sua matrícula no curso, como pretendia, para dedicar-se à militância na União Nacional dos Estudantes (UNE), em cuja direção tinha acabado de ingressar. Como escolheu seguir na UNE, acabou jubilado da universidade.
Cinco anos mais tarde, em 11 de maio de 2012, quatrocentos policiais, cumprindo uma ordem de reintegração de posse determinada pela Justiça, expulsaram 350 famílias de um terreno que, segundo a Prefeitura de Belo Horizonte, era área de proteção ambiental.
A Ocupação Eliana Silva – nome em homenagem a uma militante que morrera de câncer em 2009 – ganhou notoriedade dois dias depois, quando outro rapper cruzou o destino de Péricles. Emicida foi detido após um show na capital mineira em que, após discursar contra a expulsão das famílias, convidou o público a levantar o dedo do meio em riste para a polícia e gritar: “Somos todos Eliana Silva.” Péricles estava na linha de frente da ocupação, cujas famílias pouco depois se instalaram em outro terreno, próximo de onde haviam sido expulsas – e lá permanecem faz oito anos.
Foi nos primórdios da Ocupação Eliana Silva que Péricles conheceu Poliana Souza, com quem se casou e tem dois filhos. Com 33 anos, Souza foi vendedora ambulante, manicure, educadora e ajudou a fundar a UP. Hoje, o casal tenta conciliar os trabalhos que surgem com as atividades na ocupação, no MLB e no novo partido, pelo qual ambos se lançaram pré-candidatos em Belo Horizonte – Souza pretende concorrer a vereadora; Péricles, a prefeito.
A ambição da Unidade Popular, que estabeleceu sua sede em Brasília e tem 1,2 mil filiados e representantes em vinte estados, é contar com o maior número possível de candidatos nas principais capitais. Péricles acredita que as muitas redes de solidariedade que surgiram nas periferias durante a quarentena podem servir de guia para as campanhas da UP. “Precisamos ser menos políticos de gabinete e mais das ruas”, afirma. Entre as propostas do partido estão as de submeter juízes e desembargadores ao crivo eleitoral, estatizar os meios de transporte coletivos e nacionalizar o sistema bancário.
Péricles vê com bons olhos a formação de uma frente ampla contra Bolsonaro. Mas tem ressalvas. “Frente contra o autoritarismo, sim, mas com Temer? Com FHC? Com Santos Cruz? Essas pessoas contribuíram imensamente para o Bolsonaro estar aí”, diz. Para ele, é um erro tentar conciliar interesses inconciliáveis – e, nessa lógica, Péricles não poupa o principal líder da esquerda: “Lula foi o carro-chefe dessa tentativa, fortalecendo os que pulariam do barco depois.”
Leia Mais