ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
O tempo é ilusão
Fãs tentam decifrar os enigmas de uma série alemã
Tiago Coelho | Edição 167, Agosto 2020
Caçador de filmes com tramas misteriosas, em geral de língua inglesa, Tiago Meireles arriscou dar uma olhada no primeiro episódio de uma série alemã, Dark, que, sem alardes, havia estreado na Netflix em dezembro de 2017. Quando o coordenador de tecnologia de informação apertou o play, deparou-se logo no prólogo com uma frase do físico Albert Einstein: “A diferença entre passado, presente e futuro é somente uma ilusão persistente.” Depois, viu aparecer na tela a imagem de uma parede com inúmeros retratos pendurados, formando uma intrincada árvore genealógica. Em seguida, uma cena explícita de suicídio e a imagem da carta deixada pelo homem que se matara, com uma advertência anotada no verso do envelope: “Não abrir antes do dia 4 de novembro de 2019, às 22h13.”
“Dark tem esse tom sombrio que nunca acaba. Quem procura alívio cômico não acha”, disse Meireles, 33 anos, baiano que mora em São Paulo há dez anos. Antes de conhecer a série alemã, ele tinha Breaking Bad e Game of Thrones como suas favoritas. Mas a história criada pelo casal Jantje Friese e Baran bo Odar (cuja mãe é de origem turca) ofereceu a Meireles enigmas ainda mais complexos e desafiadores que as narrativas norte-americanas. “Difícil encontrar série no mesmo nível”, ele disse. “Desde o primeiro episódio, você precisa ter foco para acompanhar. Não dá para assistir com o celular na mão. Conversas paralelas, nem pensar.”
Dark começa com o desaparecimento de um adolescente na pacata Winden, cidade fictícia do interior da Alemanha, em 2019. Um grupo de jovens vai à floresta em busca de pistas sobre o desaparecido, e um deles também some. Na caverna há uma fenda que permite atravessar as épocas. É então que a série começa a dar um nó na cabeça do espectador, pois os personagens passam a circular em diferentes períodos da história, passada e futura, de maneira não linear. Na primeira temporada, eles circulam entre 1953, 1986, 2019 e 2052. Na segunda, entre 1921, 1954, 1987, 2020 e 2053. Na última, a esses anos acrescentam-se vários outros.
Todos os personagens pertencem a quatro famílias e estão interligados por mistérios que envolvem três gerações. Por vezes, um deles esbarra consigo mesmo, em outro momento da história – a ponto de uma mesma personagem ser mãe de uma menina numa época e, em outra, filha de sua própria filha. Eles vão e voltam entre os diferentes períodos, tentando corrigir erros, modificar seus destinos individuais e evitar uma tragédia coletiva.
Por causa das conexões familiares embaralhadas, do trânsito emaranhado por diferentes anos e das digressões filosóficas sobre o tempo, o livre-arbítrio e o destino, o acaso e a fatalidade, é comum ler nas redes sociais relatos de pessoas que desistiram de assistir porque acharam a trama complicada. Apesar disso, Dark tornou-se a série de língua não inglesa mais assistida da Netflix.
Meireles percebeu que vários elementos – fotografias nas casas dos personagens, datas em jornais e até a trilha sonora – eram pistas que ajudavam a decifrar a infinidade de enigmas que se sobrepõem. Quem é parente de quem? Quem criou a máquina do tempo e por quê? Quem está por trás dos sumiços das pessoas que entram na caverna e qual o interesse em raptá-las? Para juntar as peças do quebra-cabeça, ele assistiu as duas primeiras temporadas mais de cinco vezes e passou a pausar as imagens da série, “printá-las” e fazer anotações das pistas. “Eu ia montando minhas teorias sobre os rumos das histórias. Cheguei a formular mais de cinquenta.”
Uma das primeiras coisas que chamou a atenção de Meireles foram as referências ao cristianismo e ao Velho Testamento. As viagens no tempo costumam acontecer em ciclos de 33 anos – o mesmo número de anos que Cristo tinha ao ser crucificado. “Além disso, tem personagens que se chamam Adam, Eva, Noah. Cheguei à conclusão de que Adam e Eva são a base para a existência de todos os outros, conectando as quatro famílias da série”, disse o profissional de tecnologia, que passou a compartilhar suas elucubrações numa página no Instagram – e depois em um canal no YouTube –, chamada O Padrinho Geek, na qual também dá dicas sobre Dark aos neófitos.
Diferentemente de outras séries da Netflix, que tiveram grande investimento de marketing – como a norte-americana Stranger Things, também com uma trama de mundos paralelos, mas mais palatável –, Dark conquistou seu público no “boca a boca” das redes sociais, à medida que ficava mais e mais desafiadora.
“Apesar dos inúmeros enigmas, a série é muito bem narrada. Os obstáculos te convidam a entrar nela”, disse o roteirista Pedro Reinato, professor de roteiro audiovisual da Faap (Fundação Armando Alvares Penteado) e da escola Roteiraria, em São Paulo. “A grande sacada é justamente o vai e vem da narrativa. A possibilidade de decifrar esse universo engaja o espectador.”
Para que o público conseguisse se situar mais facilmente na história, a Netflix criou um site-guia a respeito das linhas de tempo de Dark e das árvores genealógicas. “Tudo isso é pensado para ampliar o universo da série e expandir o fenômeno”, afirmou Reinato. Para ele, mais surpreendente ainda que a série é a plataforma de streaming ter bancado um produto tão audacioso. “A HBO sempre esteve na vanguarda das experimentações narrativas. Lançou The Wire, onde se perde facilmente o fio narrativo, ou Watchmen, de narrativa não linear. A novidade em Dark é a Netflix, plataforma que costuma visar um público popular e da tevê aberta, ter visto interesse numa história mais elaborada.”
Para quem desiste da série no meio, aturdido por citações de Schopenhauer e Nietzsche, por mistérios que se acumulam sem parar e por personagens que se desdobram em duplos ou triplos, o professor de roteiro garante: “A última temporada dá conta de fechar as pontas soltas das temporadas anteriores. Não é como Lost, que na reta final virou aquela chacrinha sem sentido.”
A terceira e última temporada de Dark estreou em junho, com grande estardalhaço entre os fãs. As próximas séries da Netflix dirão se, de fato, só é possível filosofar em alemão.