Quando a legenda tem perna curta
Redes bolsonaristas deturparam vídeo para acusar jornalista de ameaçar presidente
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, diz o título do vídeo publicado pelo canal oficial do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no YouTube e também na conta do Twitter do vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o filho Zero Dois, antes das 9 horas da manhã desta segunda-feira (24). As imagens, gravadas no dia anterior, mostram o momento em que o presidente ameaçou um repórter do grupo Globo: “Vontade de encher a tua boca com a porrada, tá? Seu safado!” No vídeo, apenas a frase de Bolsonaro está legendada, com pequenas modificações, e o restante do áudio tem qualidade baixa.
Com base nesse vídeo, diversos influenciadores bolsonaristas, além de sites e blogs, passaram a afirmar que o repórter atacado por Bolsonaro teria ameaçado o presidente dizendo “vamos visitar sua filha na cadeia”. Essa versão é falsa e não condiz com o que realmente foi dito, mostrou checagem feita pelo Comprova – coalizão que reúne 28 veículos de comunicação (incluindo a piauí) para verificação de boatos. Diferentes versões do mesmo vídeo circularam na internet, algumas com legenda e outras sem legenda, mas o fato é que em nenhum momento houve menção à filha de Bolsonaro.
Na realidade, a frase dita originalmente foi: “Vamos visitar nossa feirinha na catedral, presidente”. Além dos repórteres, o presidente era seguido por diversos apoiadores – e partiu de um desses homens o convite a Bolsonaro. Foi na sequência desse convite que ele ameaçou o repórter. Na ocasião, o presidente estava fazendo uma visita à Catedral Metropolitana de Brasília. Momentos antes, um profissional do jornal O Globo questionara o presidente sobre repasses de 89 mil reais feitos por Fabrício Queiroz, ex-assessor de seu filho, o senador Flavio Bolsonaro (Republicanos-RJ), à primeira-dama Michelle Bolsonaro. Os documentos fazem parte de uma investigação sobre prática de rachadinha envolvendo o filho mais velho do presidente.
Análise feita pelo Comprova mostra que vários perfis nas redes sociais seguiram técnicas semelhantes: publicaram o vídeo e depois apagaram, mas continuaram afirmando que o presidente foi atacado e estava se defendendo, ou simplesmente mantiveram o vídeo sem dar um contexto maior à publicação. Dessa forma, o conteúdo viralizou, mesmo sem incluir a gravação ou a legenda falsa. Porém, o conteúdo é falso desde a origem, já que nenhum repórter ameaça Bolsonaro ou a filha – ou seja, a afirmação de que houve ameaça é falsa.
Com base no vídeo, o blog Senso Incomum foi um dos que publicaram texto afirmando que o repórter teria ofendido Bolsonaro. Horas depois, porém, os responsáveis pelo blog apagaram a publicação e afirmaram nas redes sociais que isso foi motivado porque “alguns internautas ouviram ‘visitar nossa feirinha na catedral’, e não ‘filha na cadeia’, como entendemos. Reafirmamos que sempre cobramos Flavio Bolsonaro sobre Queiroz e comemoramos sua quebra de sigilo que ensejou sua prisão”. Outro blog, o Terra Brasil Notícias, publicou um segundo texto com uma errata na qual reconhece que “o repórter de O Globo não se dirige para a filha do presidente Jair Bolsonaro”. Porém, eles ainda mantêm a versão falsa no ar sem nenhum aviso ou correção – que, até a manhã desta terça-feira (25), tinha sido compartilhada por mais de 1 mil pessoas.
Em dezembro de 2018, um relatório do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) apontou que Fabrício Queiroz tinha movimentado mais de 1,2 milhão de reais em operações suspeitas enquanto funcionário de Flavio Bolsonaro e depositou 24 mil na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro. Na ocasião, o presidente Bolsonaro afirmou que os valores seriam superiores, de 40 mil reais, e que os cheques eram para pagamentos de dívidas. “Emprestei dinheiro para ele em outras oportunidades. Nessa última agora, ele estava com um problema financeiro e uma dívida que ele tinha comigo se acumulou. Não foram 24 mil reais, foram 40 mil. Se o Coaf quiser retroagir um pouquinho mais, vai chegar nos 40 mil reais”, disse ao site O Antagonista.
As revelações publicadas pela revista Crusoé, no dia 7 de agosto deste ano, reacenderam o debate sobre as movimentações de Queiroz para a primeira-dama e colocaram a versão original do presidente em cheque. Dados da quebra de sigilo bancário de Queiroz, autorizado pela justiça, mostram que ele depositou 72 mil reais em cheques, enquanto a sua mulher, Márcia Aguiar, depositou outros 17 mil.
Foi ao ser questionado sobre os depósitos feitos por Queiroz e pela mulher para a primeira-dama que Bolsonaro ameaçou o repórter do Globo. O assunto foi um dos mais comentados em todas as redes sociais e em toda a imprensa no domingo e na segunda-feira. No Twitter, diversos usuários, jornalistas e celebridades publicaram a mesma pergunta feita pelo repórter (“Presidente @jairbolsonaro, por que sua esposa, Michelle, recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz?”) como forma de pressionar o presidente e se posicionar.
Análise da consultoria de dados Arquimedes publicada na piauí mostrou que foram mais de 2,4 milhões de menções ao presidente apenas entre domingo e segunda-feira. Cerca de 85% das publicações eram de caráter negativo em relação a Bolsonaro.
As verificações citadas no texto foram feitas pela equipe do Comprova, com participação de jornalistas dos seguintes veículos: GaúchaZH, O Estado de S. Paulo, Folha de S.Paulo, Jornal do Commercio, Nexo Jornal, AFP, UOL e revista piauí. Você pode acessar todas elas no site do Projeto Comprova: https://projetocomprova.com.br/
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