Em um mundo livre de combustíveis fósseis, arquitetos imaginam uma plataforma de petróleo transformada em residência ecológica: risco climático está virando risco de investimento CREDITO: XTU ARCHITECTS
O dia seguinte
Como a pandemia afetou – e afetará – a indústria do petróleo
Consuelo Dieguez | Edição 168, Setembro 2020
Desde aquele momento longínquo do século XIX, quando começou a jorrar petróleo num poço da Pensilvânia, o mundo jamais vivera um dia como o 20 de abril de 2020. Era uma segunda-feira, e o preço dos contratos futuros de petróleo estava desabando, até que chegou a zero dólar por barril – e fechou o dia cotado em menos 37 dólares. Como as refinarias reduziram drasticamente suas compras por causa da queda do consumo, os produtores, sem ter onde estocar seu petróleo, passaram a pagar para se desfazer dele – e pagavam até 37 dólares para quem se dispusesse a adquirir um barril. Do dia para a noite, a principal matriz energética do mundo passara a ter valor negativo. Valia menos que nada. O fenômeno era resultado da redução acentuada do consumo de óleo na pandemia do novo coronavírus, que paralisou o planeta. O melhor retrato da crise são imagens de satélite mostrando enormes concentrações de navios-tanque parados na costa dos países ao redor do mundo por não terem para onde levar o combustível. Como num filme de ficção, o mundo pareceu não depender mais do petróleo.
“Foi um dia assustador”, lembra o presidente da Shell Brasil, André Araújo, que assistiu ao colapso dos preços na tela do seu computador, em sua casa, na Barra da Tijuca, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde ele cumpria a quarentena desde 16 de março, como a maioria dos funcionários da empresa. Em uma conversa virtual, em meados de junho, Araújo comentou que, embora o mercado soubesse que se tratava de uma situação passageira, era uma realidade chocante. “Muita gente que ainda tinha dúvida sobre o impacto da pandemia na indústria do petróleo se deu conta de que aquele era um marco”, afirmou. “Era um sinal muito forte para nós de que o futuro seria diferente.”
De sua casa de veraneio em Petrópolis, na Região Serrana do estado do Rio, onde se refugiara desde 13 de março, Roberto Castello Branco, presidente da Petrobras, a maior empresa de capital aberto do Brasil e a décima primeira maior produtora de petróleo do mundo, também acompanhou o derretimento do preço do barril, mas não se preocupou. Sabia que aconteceria, e sua maior inquietação, na verdade, ocorrera antes, em fevereiro, quando o mundo descobriu que a epidemia não ficaria restrita à Ásia. “Até então, nós ainda acreditávamos que a doença estacionaria em alguns países asiáticos, que já sabiam como lidar com este tipo de situação”, disse ele, durante uma conversa via Skype. “Então, o vírus chegou à Itália e nos demos conta de que aquilo viraria um problema muito maior do que estávamos esperando.”
A indústria do petróleo vivia um momento relativamente estável antes da pandemia. As duas grandes crises que havia experimentado – o choque do petróleo em 1973, provocado pela guerra árabe-israelense, e o de 1979, quando aconteceu a Revolução Iraniana – já eram parte da história. Em ambos os casos, contudo, o que ocorreu foi uma disparada dos preços pela redução da oferta. Depois disso, os preços sempre oscilaram, mas nunca de forma tão dramática como na década de 1970. Em parte, a estabilidade resultava do fato de que os preços do combustível vinham sendo ditados mais pelos Estados Unidos do que pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep). A produção norte-americana do óleo de xisto, que é extraído das rochas e a partir do qual se obtém petróleo, disparou nas primeiras duas décadas deste século. Com a nova fartura, os Estados Unidos conseguiam monitorar os preços, evitando as altas bruscas. No começo do ano, a situação, no entanto, tinha começado a se complicar. Em confronto com a Arábia Saudita, a Rússia decidira aumentar sua produção para reduzir preços e ampliar vendas. Em meio ao desacerto, a pandemia chegou, causando o que o mercado começa a considerar um terceiro choque do petróleo.
Roberto Castello Branco, cabelos grisalhos e olhos castanhos, tem uma fala lenta e pausada, típica de pessoas que não costumam perder o controle em situações-limite. “Acho que minha função, como executivo, é acalmar a equipe, principalmente em tempos de grande tensão”, diz. Mas ele precisou se esforçar porque, com uma dívida fabulosa de 85 bilhões de dólares, a petroleira teve que correr para evitar mais estragos nas contas quando o consumo começou a derreter junto com os preços. A estatal sacou as linhas de crédito de 8 bilhões de dólares que já tinham sido contratadas no final de 2019. “Tomamos essa decisão para, em caso de emergência, conseguirmos manter a liquidez da empresa”, contou. Ele usou uma metáfora de guerra. “Numa situação dessas, a última linha de defesa é o caixa, pois alguns eventos podem minar os seus recursos.” E prosseguiu, com a fala pausada. “A última coisa que eu queria era ver as pessoas morrendo pela pandemia e a companhia parando suas atividades. Atacamos então com um propósito único de proteger a saúde da companhia e dos funcionários, garantindo que fossem trabalhar com segurança.”
A Petrobras tratou de redobrar os cuidados com os trabalhadores nas plataformas e navios. Reduziu seu efetivo em unidades off-shore e colocou seus funcionários em isolamento por sete dias, em hotéis, antes do embarque para as plataformas. Ainda assim, em abril, 61 petroleiros foram contaminados pelo novo coronavírus numa instalação no litoral sul do Espírito Santo. Depois disso, a estatal passou a aplicar testes rápidos antes que os funcionários embarcassem. No início de agosto, no entanto, outros 42 estavam infectados na Bacia de Campos, no Rio de Janeiro. O sindicato da categoria, que levantou os dados de contaminação, afirma que a empresa não faz teste no pessoal terceirizado, razão pela qual seu combate ao vírus não consegue plena eficácia.
Entre 10 de março e o começo de maio, a Petrobras viveu seus momentos mais tensos em termos operacionais. Nesse período, tiveram que ser fechados o vistoso edifício-sede, no Centro do Rio de Janeiro, e vários outros prédios onde funcionam os setores administrativos da companhia no Rio e em outras cidades Brasil afora. Com queda de 60% na demanda de gasolina e 40% no caso do diesel, no final de março a produção das refinarias da estatal foi praticamente paralisada. O tombo mais espetacular, contudo, se deu no querosene para aviação, cujas vendas despencaram em torno de 90%, pois quase toda a frota das companhias aéreas no Brasil e no mundo estava no solo – das 24 mil aeronaves da aviação civil ao redor do mundo, 16,4 mil chegaram a ficar paradas na segunda quinzena de julho. A estimativa das associações de aviação civil é de que, entre março e abril, 2 milhões de voos foram cancelados em todo o planeta, uma redução brutal de 63% no volume habitual das viagens aéreas. As imagens de aviões estacionados, lotando os pátios dos aeroportos em todos os continentes, impressionam. (No Brasil, a crise na aviação levou a Latam a pedir recuperação judicial das dívidas em suas operações nos Estados Unidos. A receita da American Airlines caiu 86% em relação ao segundo trimestre do ano passado). “Ficamos muito preocupados com o aumento dos nossos estoques, temerosos de que teríamos que arrendar navios para guardar óleo, já que não havia para onde escoar”, contou Castello Branco.
A Cosan, empresa de energia e infraestrutura com sede em São Paulo, tem, entre suas subsidiárias, a Raízen, a maior produtora de etanol de cana-de-açúcar do Brasil, da qual a Shell detém 50% de participação. Além do etanol, a Raízen é dona de uma grande rede de postos de combustível no país e fornece querosene para a aviação, com 69 bases de abastecimento em aeroportos. Luis Henrique Guimarães, diretor-presidente da Cosan, um executivo entusiasmado que costuma participar de disputadas lives na internet, dadas as suas ideias inovadoras em defesa de energia renovável, contou que, a exemplo de todas as concorrentes, sua empresa também desabou na área de querosene. “Não temos o que entregar porque não temos clientes”, disse, de sua casa no Rio, onde se refugiou na quarentena, durante uma conversa virtual no final de uma manhã ensolarada de junho. “Nossa venda de querosene caiu 85%. Abril foi o pior mês.”
Em agosto, Guimarães ainda não nutria grandes esperanças de que o mercado de aviação se normalizasse em breve. “Antes da pandemia, só na ponte aérea Rio-São Paulo havia dois voos por hora por companhia. Até junho, eram apenas nove voos por dia. Acho que isso vai passar, mas não sei se voltaremos ao que era antes.” Em julho, a situação melhorou um pouco, mas muito pouco: o número diário de voos chegou a treze. Com receio de contaminação dentro dos aviões, os funcionários da Cosan começaram a formar grupos para viajar de carro entre o Rio e São Paulo.
Mas houve compensação. Se as vendas de querosene de aviação caíram, as de etanol, principalmente para exportação, aumentaram. Até junho, a Cosan vendeu 23% a mais. “Sabe aquela história, o telefone não para de tocar? Foi isso que aconteceu na empresa”, disse, animado. Guimarães está convencido de que o aumento do interesse pelo etanol brasileiro, principalmente por parte dos europeus, está relacionado à pandemia. “A pandemia está aumentando a procura das empresas e dos países por uma energia renovável. Ninguém aceita mais outro evento que paralise o mundo como agora. As consequências do aquecimento global serão muito maiores que as da pandemia. O mundo está acordando para o fato de que não existe vacina para o efeito estufa.”
O executivo acredita que a pandemia ajudou a reduzir as dúvidas sobre os riscos do aquecimento global. “Agora, a discussão se há ou não aquecimento global morreu. A discussão passou a ser como se faz para contê-lo”, disse. “Muitas grandes corporações estão comprometidas com a redução de emissão de carbono. Estão fixando metas e prazos para chegar à emissão zero”, afirmou. Um sinal disso veio antes mesmo da pandemia, quando Larry Fink, presidente da Black-Rock, a maior gestora de ativos do mundo, com 7 trilhões de dólares, divulgou sua carta anual aos investidores em janeiro. Depois de convocar o mercado a considerar as mudanças climáticas em suas decisões, ele afirma: “Acredito que estamos à beira de uma mudança estrutural nas finanças.” É um mundo em que o risco climático começa a ser equiparado ao risco de investimento.
No caso da Cosan e da Raízen, não se trata apenas de consciência ambiental, mas sim de modelo de negócio. Quanto mais o mundo se interessar por uma energia limpa, melhor para elas. O desafio é aumentar a produção de biocombustível por meio do etanol da cana-de-açúcar, do milho, do biodiesel da soja e também do gás do pré-sal, menos poluente que o óleo, embora também danoso ao meio ambiente. Segundo Guimarães, a meta do Brasil deve ser garantir que a indústria automobilística consiga aumentar a eficiência dos motores flex, que funcionam a álcool e a gasolina. Tem havido, de acordo com Guimarães, melhoria de performance. O carro flex produzido pela Toyota no Brasil pode emitir menos dióxido de carbono que os carros elétricos europeus, a depender da fonte geradora – se limpa ou suja – da energia elétrica que o move.
Para atender à crescente demanda por energia limpa, há um punhado de empresas brasileiras que já trabalham com etanol de segunda geração (E2G), extraído do bagaço e da palha da cana. É o maior projeto mundial nessa área. Toda a produção é exportada para os Estados Unidos e a Europa, mas não supre a demanda. Agora, o Brasil está em conversas com a Índia, o maior produtor mundial de açúcar, e com a Tailândia, para incentivá-los a produzir etanol combustível. A estratégia é transformar o etanol numa commodity global, para estimular mais países a consumir o combustível. Hoje o mundo compra petróleo de oitenta países. Isso reduz o risco. Já o etanol é produzido, basicamente, pelo Brasil e pelos Estados Unidos, pois os demais países têm uma produção irrelevante. “O negócio é aumentarmos o número de produtores. Enquanto o Brasil estiver falando sozinho, fica parecendo aquele bicho bacana, mas exótico”, diz Guimarães.
Outro avanço nessa área de biocombustível no Brasil é o gás extraído da vinhaça, subproduto do etanol. O Brasil produz hoje 30 bilhões de litros de etanol por ano. Para cada litro, geram-se, em média, doze litros de vinhaça, o que significa uma disponibilidade de 360 bilhões de litros do produto. A ideia é aproveitá-lo na fabricação de gás para usar na transmissão de energia elétrica. Hoje, a Cosan já está testando o fornecimento de gás de vinhaça na geração de energia no interior de São Paulo. Além disso, está exportando pellets, uma liga feita da cana, usada na produção de energia e vapor. A Alemanha é a maior consumidora desse produto utilizado para aumentar a eficiência da queima de carvão. “Esse pellet substitui a madeira das florestas do Canadá e da Finlândia. Estamos trabalhando para aumentar nossa produção e atender ao mercado europeu”, afirmou Guimarães.
O economista Adriano Pires é fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura e Energia (CBIE), uma consultoria carioca. Em meados de maio, ele fez uma análise do que virá pela frente, numa conversa remota, de sua casa, no Rio de Janeiro. Explicou que, antes da Covid-19, já havia a tendência de trocar o combustível fóssil pela energia renovável, como etanol, eólica, solar e biomassa. O Acordo de Paris foi fundamental para alertar os países sobre os riscos das mudanças climáticas, que poderiam levar a um desastre ambiental no mundo. Nesse cenário, o gás já vinha sendo sugerido como um substituto para o petróleo, pois é menos poluente. Muitas petroleiras começaram a trocar seus ativos do petróleo para o gás. A Shell comprou a British Gas e, hoje, 50% de sua produção já é de gás. Com sua participação de 50% na Raízen, tornou-se, em sociedade com a Cosan, uma grande produtora de etanol. “Foi uma quebra de paradigma porque ninguém nunca imaginou lá atrás que a segunda maior petroleira do mundo ia entrar no agronegócio brasileiro para produzir etanol”, disse Pires.
André Araújo conta que a Shell também definiu que, até 2050, vai reduzir a zero a emissão de carbono na sua produção de gás de petróleo e se comprometeu a ajudar na redução de emissões dos clientes que consomem os seus produtos. Atualmente, na área de geração de energia, o grosso da emissão de gases de efeito estufa não vem da produção de petróleo e gás em si, mas sim do carro com o motor ligado, da fábrica que usa óleo combustível, do avião que consome querosene. “Não quero tirar a nossa responsabilidade no processo”, justificou-se, considerando que o carro, a fábrica e o avião só poluem tanto porque queimam o combustível que a indústria lhes fornece. “Mas se a gente olha a cadeia do início da produção até o final do consumo, o que está no universo dos consumidores representa 85% das emissões.” A Shell, diz Araújo, está estimulando grandes poluidoras, como siderúrgicas e fábricas de cimento, a substituir o diesel ou o carvão por gás. Não fechou nenhum negócio até agora, mas as conversas mais avançadas ocorrem com a Vale, que deverá trocar fornos a diesel por gás.
Para atingir a meta de emissão zero, Araújo afirma que a mudança será gradual, com reinjeção, nos poços, do gás carbônico extraído com o óleo e o gás. Além disso, a Shell já está mudando seu portfólio. A ideia é entrar no mercado de geração de energia elétrica, como já vem fazendo nos Estados Unidos, Austrália e Inglaterra. Seus investimentos em energia solar e eólica, além de Europa e Estados Unidos, já chegaram à Índia e países do Sudeste da Ásia. No Brasil, ainda estão tateando, embora já tenha outorga para construir dez fábricas de energia solar no interior de Minas Gerais. Outros planos incluem parcerias em reflorestamento, que já vêm sendo feitas com clientes, como a Suzano, fabricante de papel e celulose. “É uma forma de compensarmos a emissão de carbono.”
No exterior, a empresa já tem investimentos para carregar os carros com baterias elétricas. Até o final do ano, pretende abrir quarenta postos de recarga elétrica na Alemanha. “Sei que quando falo isso, as pessoas me olham com desconfiança. Afinal, somos uma empresa de petróleo. Às vezes me perguntam até se eu estou do lado certo”, disse Araújo, rindo. “Não estou dizendo que vamos largar o petróleo de uma hora para outra, e isso nem é possível. A pandemia evidenciou que a única forma de isso acontecer é por meio de uma recessão global. No entanto, estamos buscando alternativas para sermos cada vez mais uma empresa produtora de energia renovável.” Os investimentos anuais da Shell em todo o mundo somam 20 bilhões de dólares. Destes, 2,5 bilhões são em energia limpa. “Ainda é pouco. A sociedade nos cobra mais. A gente responde que precisa começar em algum lugar. Nossa jornada é de óleo e gás, mas iniciamos um processo de transição energética.”
Outras petroleiras, como a norte-americana ExxonMobil, e a norueguesa Equinor, seguem trilha semelhante. O gás – o último ciclo fóssil até se chegar a uma energia mais limpa – já representa cerca da metade dos ativos dessas companhias. Além disso, estão buscando diversificar seu portfólio investindo também em energia solar e eólica. Por movimentos como esses, e sobretudo em razão da pressão econômica de investidores, o pico de consumo de óleo, que se daria em 2050, deve ocorrer em 2030, segundo estimativa do consultor Adriano Pires. “A pandemia está antecipando o pico porque a sociedade vai exigir uma energia mais limpa”, diz Pires. “Isso não significa dizer que o mundo vai parar de consumir petróleo amanhã. Mas o vírus mostrou que temos que ter uma relação mais amigável com a natureza. Fomos dormir numa sexta e acordamos no sábado sem poder mais sair de casa. É claro que isso é um alerta.”
A Petrobras, no entanto, continua no mesmo caminho. “Nós sabemos explorar e produzir petróleo”, afirma Castello Branco. Com essa frase, ele deixa claro que, enquanto companhias europeias e norte-americanas de petróleo começam a se preparar para os novos tempos pós-pandemia, a Petrobras ainda não tem planos de reduzir a participação do petróleo em sua matriz energética. Com todos os problemas que enfrentou nos últimos anos, a estatal centrou seu negócio na exploração do óleo no pré-sal. Hoje, 85% do seu portfólio é petróleo. Gás, só 15%. E não dá sinais de que vai mudar de rumo tão cedo. “Geração eólica e solar é outro tipo de negócio, completamente diferente, onde não temos competência”, completa ele.
Embora esteja investindo em pesquisa em novas energias, só irá se lançar no negócio quando estiver segura de sua competência. “Não vamos simplesmente entrar no segmento de energia renovável porque é uma onda. A Petrobras não pode se permitir jogar dinheiro fora. Temos um endividamento pesado, muitas sequelas do passado, e não vamos nos meter a fazer o que não sabemos. Nós gostamos de fazer as coisas tangíveis.” Isto significa, no momento, operar com menor emissão de gases de efeito estufa. A estatal brasileira ainda aparece como a vigésima companhia de petróleo e gás que mais emite dióxido de carbono e metano no mundo, mas, segundo Castello Branco, já é a segunda que menos emite carbono por barril de petróleo. “Estamos investindo mais em captura de carbono, reinjetando CO2 nos poços de petróleo, estamos fazendo reúso da água nas refinarias e tomando várias medidas para ter a nossa casa limpa.”
Sem alterar o tom de sua fala, Castello Branco provoca seus competidores. “Eu não vou seguir exemplos de outros que prometem zero de emissão de carbono em 2050, pois essa é uma promessa que você não vai poder me cobrar porque não estarei aqui para te responder”, afirmou, como se as metas fossem do presidente e não da companhia. E deu mais uma alfinetada na concorrência. “Seria fácil dizer que estamos comprometidos com uma energia renovável, que vamos ter emissão zero em 2050. Mas isso aí é puro marketing.”
O marketing, é claro, está mesmo no horizonte. É exemplar o caso da BP, uma das gigantes do setor, que, há duas décadas, decidiu propagandear seu apreço pela energia limpa na própria marca, ao lançar uma campanha na qual sugeria que BP, em vez de British Petroleum, significaria Beyond Petroleum (Além do Petróleo). Em 2006, no entanto, a empresa provocou o segundo maior vazamento de óleo da história do Alasca e, quatro anos depois, esteve no centro do maior vazamento do mundo, com a explosão da plataforma que operava no Golfo do México. Sob pressão financeira, a companhia acabou abandonando seus investimentos “além do petróleo” e se desfez de ativos em energia solar e eólica. Agora, a BP vai tentar de novo. Promete reduzir sua produção de óleo e gás em 40% até 2030 e que, até 2050, fará emissão zero de carbono.
Os estados norte-americanos também estão apertando o cerco contra as petroleiras. Em Minnesota, a ExxonMobil, acompanhada de outras entidades, sofre um processo no qual é acusada de ser responsável pela crise climática. Na ação, o governo estadual acusa a empresa de “práticas enganosas” na venda de seus produtos e omissão de informação, além de pedir indenização financeira pelos danos ambientais que causou. No Distrito de Columbia, onde fica a capital dos Estados Unidos, a ExxonMobil, Chevron, BP e Shell estão sendo judicialmente acusadas de desinformar intencionalmente seus consumidores a respeito dos danos ambientais que causam.
As grandes petroleiras ocidentais, em geral, zelam bastante por sua imagem ambiental na Europa e nos Estados Unidos, apesar dos processos que estão enfrentando. Em países da África e, inclusive, no Brasil, tendem a adotar um comportamento menos rigoroso em questões ambientais. Há dois anos, a britânica BP e a francesa Total entraram em atrito com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) porque tinham um pleito incomum. Queriam explorar petróleo na barreira de corais da Amazônia. Ativistas promoveram um protesto na frente da sede da BP, em Londres, contra sua tentativa de explorar óleo na região. A decisão do Ibama de suspender a exploração ainda continua em vigor, apesar do desmonte que o instituto está sofrendo no atual governo.
Embora frequentemente comparada com uma peste medieval, a Covid-19 ajudou a empurrar o mundo, mais um pouco, em direção ao século XXI. As maiores corporações do século XX – as petroleiras ExxonMobil, Shell e Chevron – voltaram a ser superadas de longe pela Amazon, Apple, Facebook e Microsoft. A expressão mais simbólica dessa transição neste momento está na disseminação do teletrabalho, inclusive pela indústria do petróleo. Quando a pandemia obrigou o mundo a se confinar, a Petrobras, no dia 13 de março, mandou para casa todos os funcionários das áreas não envolvidas em exploração e produção. As demais petroleiras instaladas no país fizeram o mesmo.
De suas casas em Londres e em Cingapura, as equipes de venda da Petrobras fecharam contratos de compra do óleo brasileiro com quase quarenta refinarias da China, o primeiro país a retomar as atividades econômicas. Para atender à demanda chinesa, a logística da Petrobras conseguiu aumentar de 25 para 40 o número de navios embarcados por mês. No final de abril, a companhia embarcou 31 navios de petróleo para a China, o que dá 1 milhão de barris de petróleo diários. Em maio, antes que o consumo interno voltasse a crescer, a exportação de óleo pela Petrobras bateu recorde. “Todas as vendas foram feitas de casa. O home office se revelou extremamente positivo. Em casa, as pessoas se concentram mais, pensam em novas soluções, aproveitam melhor o tempo com a família. É um processo que deu muito certo”, diz Castello Branco.
O presidente da Shell disse que, no começo da quarentena, quando começou a trabalhar remotamente, descobriu que passava o dia conectado. “Como as pessoas sabem que está todo mundo em casa, não tem mais barreira. Acham natural te ligar às dez da noite”, disse. Há semanas em que começa a trabalhar às sete da manhã e vai até às nove da noite. Para evitar um excesso de trabalho, ele estabeleceu alguns limites. Passou a programar as conversas. Se a reunião é de uma hora, ele encurta para cinquenta minutos, para ter dez minutos para relaxar.
O insólito é que, ao mandar sua turma para casa, a indústria do petróleo derrubou uma parte da demanda ao seu produto. Mais insólito ainda: continuará a fazê-lo, com a adoção crescente do trabalho remoto. “Temos um excelente incentivo para passar a trabalhar de casa”, disse o presidente da Shell. “Os escritórios no mundo pós-pandemia terão um desenho diferente do atual, as ferramentas virtuais serão cada vez mais utilizadas. Com a quarentena, o mundo corporativo descobriu uma nova forma de trabalho.” Na Petrobras, já está decidido que metade da área administrativa passará a trabalhar de casa. A companhia já decidiu fechar nove prédios comerciais e vai acelerar o programa de demissão voluntária para cortar 34% de seu pessoal. É claro que isso exige uma adaptação dos escritórios. A ideia é que o dia que o funcionário necessite ir ao escritório, ele faça a reserva de uma mesa.
Recentemente, Guimarães, da Cosan, passou dois dias no escritório da companhia, em São Paulo, para entender a dinâmica da volta ao trabalho, ainda que a equipe administrativa vá continuar com idas esporádicas à empresa. Uma das coisas que a Cosan teve que planejar foi o uso dos banheiros. “Embora muito menos gente vá frequentar a companhia, precisamos estabelecer alguns cuidados como, por exemplo, evitar aglomeração no banheiro na volta do almoço. Talvez tenhamos que colocar uma placa alertando quantas pessoas podem usar o local ao mesmo tempo”, disse. Outra preocupação é com a área do cafezinho, onde os funcionários se reuniam para relaxar. “Estamos pensando em mandar fazer entrega de café nas mesas para quem vier ao escritório, usando a nossa rede de lojas de conveniência, a Select.”
“Nenhum jovem adulto em São Paulo tinha visto um céu tão lindo como os do final de março e começo de abril”, disse Carlos Nobre, um dos mais renomados cientistas brasileiros no campo do aquecimento global. Ninguém sabe como será o mundo no pós-pandemia, mas a crise sanitária ajudou a disseminar a compreensão sobre os danos ambientais que nosso modo de vida provoca. Os paulistanos, pela primeira vez em décadas, assistiram a pores do sol com todas as cores do espectro, exibindo o violeta, o azul e o verde, tonalidades que a poluição costuma ocultar. “Depois o tráfego de veículos voltou a aumentar, e esses dias brilhantes não se repetiram mais”, lamentou Nobre. A poluição, segundo a ONU, mata 9 milhões de pessoas por ano no mundo. “As cidades do futuro, sem queima de combustível fóssil, com transporte eletrificado, serão muito melhores.” Ele aposta no crescimento da indústria de energia limpa.
No curso dessas transformações, é preciso considerar a força dos lobbies econômicos nas democracias ocidentais. O lobby do combustível fóssil pode, por exemplo, engolir os subsídios públicos para compensar as atividades que vão perder efetividade. Hoje, esses subsídios representam 400 bilhões de dólares por ano. “Se esse dinheiro for destinado para fontes de energia renovável, em cinco anos o processo de limpeza do meio ambiente se torna irreversível”, calcula Nobre. Ele se mostra, no entanto, um pouco temeroso do comportamento das empresas. “Veja esse pessoal do etanol e do agronegócio aqui no Brasil. Eles têm um discurso moderno, preservacionista. Mas não se manifestam publicamente contra as queimadas na Amazônia, contra a invasão de terras indígenas, contra a exploração ilegal de madeira e minério na floresta. Se esses setores com poder não se manifestarem abertamente não acredito que as mudanças venham rapidamente.”
No começo de julho, grandes corporações brasileiras e estrangeiras instaladas no país abandonaram o silêncio. Líderes de 38 grandes companhias e quatro entidades do agronegócio, do mercado financeiro e da indústria uniram-se em uma carta-manifesto endereçada, entre outras autoridades da República, ao vice-presidente Hamilton Mourão, que acumula o cargo de presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal. Recomendavam que a retomada da economia seguisse padrões de baixa emissão de carbono e combate ao desmatamento. A carta também foi publicada na primeira página do jornal Valor Econômico, o mais importante diário de negócios do país, e representou a primeira iniciativa ambiental de líderes empresariais sob o governo de Jair Bolsonaro. Havia razões para isso.
O documento começou a ser pensado no final de junho, durante a reunião do grupo no Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS), que agrega sessenta empresas comprometidas com a sustentabilidade, o social e a governança corporativa. Tatiana Assali, gerente de Relações Institucionais da entidade, que trabalhou durante anos no mercado financeiro, diz que os fundos de investimento hoje em dia exigem compromisso ambiental das empresas antes de aplicar seu dinheiro nelas. Pragmática, ela afirma: “Quando começar a doer no bolso, muitas empresas e governos terão que se adaptar aos novos tempos, caso não queiram perder seus investimentos.”
No início do ano, a Vale, por causa dos desastres ambientais que provocou em Mariana e Brumadinho, e a Eletrobras, por causa da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, saíram da carteira do Banco Central da Noruega, o maior fundo soberano do mundo. Por sua vez, a Black-Rock, a maior gestora do planeta, puniu 53 empresas com desinvestimento por falta de compromisso em conter o aquecimento global – e, entre as empresas que perderam, estavam a petroleira ExxonMobil e 36 outras companhias da área de energia. A rede de Bolsas de Valores Sustentáveis, outro grupo de pesos pesados no mercado acionário, também está exigindo responsabilidade socioambiental das empresas. Tatiana Assali informou que, das 102 Bolsas de Valores que monitoram a sustentabilidade, 55 já têm orientações para os investidores analisarem as empresas com maior compromisso com o meio ambiente, o social e a boa governança, antes de comprarem ações das empresas. Dessas, 25 já colocaram esse compromisso como requisito para serem listadas em Bolsa. Outro sinal dos tempos está na taxa de financiamento dos projetos de energia limpa, que se situam na faixa de 3% a 5% ao ano no mercado internacional, enquanto as empresas de petróleo só conseguem levantar capital pagando juros na casa de 20% anuais.
A pressão para que as empresas começassem a se preocupar com o aquecimento global surgiu no Pacto Global da ONU, em 2006, que reconheceu que não bastava governo e sociedade se preocuparem com o assunto, pois as empresas eram as poluidoras. Como resultado, companhias ao redor do mundo passaram a se comprometer com o desenvolvimento sustentável, e, além disso, com ações inclusivas, contratando mulheres, negros e pessoas da comunidade LGBTQI+ para seus quadros de comando. Depois disso, a ONU achou que também deveria cobrar do mercado financeiro. Surgiu então uma iniciativa batizada de Princípios de Investimentos Responsáveis (PRI, na sigla em inglês). Hoje, o PRI já ganhou o endosso de quase 3 mil investidores ao redor do mundo, que têm uma carteira de 90 trilhões de dólares. “O que estamos vendo é que não adianta a empresa chegar com um projeto de investimento sem detalhar o impacto para melhorar o meio ambiente, a comunidade ao seu redor e a inclusão social”, disse Assali. A pressão não começou com a pandemia, mas está ficando mais intensa. Ainda assim, entre os 38 líderes empresariais que assinaram o manifesto endereçado ao governo, estavam a Cosan e a Shell. Não havia nenhum outro representante da indústria do petróleo e gás.
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