ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2020
Ela disse não
A montadora Cristina Amaral recusa convite de Hollywood
Carlos Adriano | Edição 168, Setembro 2020
Em 1º de julho, a montadora de filmes paulista Cristina Amaral recebeu um e-mail da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, de Hollywood, dando-lhe as boas-vindas como novo membro da entidade que organiza o Oscar. “Foi como se eu já tivesse aceitado, como se estivesse entrando porta adentro”, ela confidenciou, rindo.
A novidade vinha circulando pelas redes sociais desde o dia anterior, mas, quando Amaral recebeu a mensagem, tomou um susto. “Jamais esperaria por isso”, disse. “O Oscar é uma festa da indústria do cinema norte-americano, e eu sempre estive mais perto de um cinema de experimentação que de entretenimento.”
A montadora, uma das mais respeitadas do cinema brasileiro, fazia parte da nova leva de 819 profissionais do cinema de 68 países convidados a ingressar na academia. Entre eles, havia, além de Amaral, outros cinco brasileiros: os diretores Vincent Carelli, Julia Bacha, Otto Guerra e Mariana Oliva, e o produtor Tiago Pavan.
Até o ano passado, a academia contava com 8 594 membros, cuja principal função é votar nos filmes que concorrem ao Oscar. Para serem convidados, os novos membros devem ter a indicação de pelo menos outras duas pessoas já eleitas. Em seguida, um conselho seleciona os escolhidos e envia os convites.
Poucos dias depois de receber o e-mail de Hollywood, Amaral respondeu, recusando o convite delicadamente, sem arrogância. Justificou que lhe faltava tempo para exercer a função como deveria, em razão de uma série de compromissos. “Era uma questão de senso de responsabilidade”, ela explicou. “Não podia aceitar por vaidade ou interesse de ganho profissional. Eu não abdicaria do que considero urgente, que é a sobrevivência do cinema brasileiro.”
Além de seu trabalho como montadora de filmes, Cristina Amaral, 66 anos, está comprometida com a curadoria da obra de seu companheiro de vida, Andrea Tonacci, diretor de Bang Bang (1971) e de uma obra-prima sobre a resistência indígena, Serras da Desordem (2006). Os dois atuaram na Extrema Produção Artística, cujo acervo ela coordena desde a morte de Tonacci, em 2016.
Nascida em Presidente Venceslau, interior de São Paulo, Amaral fez o curso de cinema na Escola de Comunicações e Artes, da USP, entre 1974 e 1979. Foi nas aulas do crítico Paulo Emílio Salles Gomes que ela conheceu os filmes que, em suas palavras, “saltavam fora da tela para mim, pela energia da rebeldia, de ter o que dizer e querer dizer”. Eram produções banidas pela censura do governo militar e do mercado, como Bang Bang e Matou a Família e Foi ao Cinema (1969), de Julio Bressane. A lição de casa passada pelo professor era assistir a todo filme brasileiro em cartaz, de produções da Embrafilme a pornochanchadas, seguindo o princípio-provocação de Salles Gomes de que “o pior filme brasileiro nos diz mais que o melhor filme estrangeiro”.
O primeiro trabalho profissional da montadora foi Nós de Valor, Nós de Fato, curta de Denoy de Oliveira lançado em 1985. Desde então, Amaral já montou mais de sessenta filmes, de diretores como Carlos Reichenbach, Edgard Navarro, Thiago B. Mendonça e Adirley Queirós. Um trabalho decisivo foi Alma Corsária, dirigido em 1993 por Reichenbach, que a apresentou a Tonacci. “Carlão me deu mais esse presente também.”
Reichenbach costumava dizer: “Cristina Amaral é a nossa Thelma Schoonmaker”, em alusão à montadora dos filmes de Martin Scorsese, três vezes premiada com o Oscar (por Touro Indomável, O Aviador e Os Infitrados, todos de Scorsese). “As pessoas falam: ‘Como você consegue passar tantas vezes pela mesma cena de um filme?’”, contou Amaral. “Respondo: é que nem viver. O prazer é ver essa vida constituir-se na sua frente.”
Atualmente, suas preocupações estão voltadas para as ameaças que atingem o cinema nacional, o que a levou a participar, em 4 de junho, de um protesto à porta da Cinemateca Brasileira, que vem sendo alvo de ataques do governo federal. “O cinema é a representação visual de uma cultura, de um país, e, se tratado a sério, promove autoconhecimento e resistência”, afirmou. “Essa é uma das chaves para entender a violência contra a Cinemateca e a atividade cinematográfica. Vivemos uma tragédia assustadora, num país genocida. É difícil ter que olhar e lidar com essa sombra que emerge do subsolo do Brasil.”
Para o diretor Thiago. B. Mendonça, “a grandeza de Cristininha reside na dignidade autoral e incondicional integridade de sua coerência.” Além de se engajar na luta de sobrevivência do cinema, Amaral tem se posicionado com firmeza em defesa dos indígenas (“eles são os nossos sábios, os jardineiros da Amazônia”), mais e mais ameaçados, e ao lado dos protestos antirracistas. “Preso à herança escravocrata, o Brasil normalizou as mortes dos negros”, disse. “Nos Estados Unidos há um histórico de luta. Há escolas para formar lideranças negras. Spike Lee estudou numa delas.” Na condição de afro-brasileira, ela aconselha: “É essencial trabalhar a autoestima.”
Em 1997, Amaral foi a Los Angeles fazer o curso de Lightworks, um sistema de edição digital. Hospedou-se no Hollywood Roosevelt Hotel, palco da primeira cerimônia do Oscar, em 1929 – neste ano a festa aconteceu no Dolby Theatre.
Nos intervalos do curso, acabou fazendo amizade com a proprietária de uma empresa de finalização de filmes. Era época da entrega do Oscar e, certo dia, a moça a estimulou a ir a um jantar de confraternização dos montadores indicados para o prêmio. Amaral respondeu, com humor: “Só vou se for pra eu beijar a mão da Thelma Schoonmaker.”
Em razão da insistência, a brasileira afirmou que não trouxera roupa adequada para a ocasião. “Isso não é problema. Vou com você a uma loja para alugar um vestido de festa”, disse a empresária, que dias depois voltou à carga: “Você trouxe alguma joia?” Foi a primeira vez que Amaral declinou dos protocolos de Hollywood.