ILUSTRAÇÃO: INFINITE NOON_DAVID CANTU_2019
Mas não me sinto mal, embora provisório
Felipe Fortuna | Edição 169, Outubro 2020
NO CENTENÁRIO DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO
1.
No seu centenário de vida
um precipício apareceu,
empurrando tudo o que havia
em amontoado granel.
Mais cova do que precipício
onde tudo foi enterrado:
mais um Severino a serviço,
a cana rangendo em seu talho,
o cemitério, a aspirina,
a linha do Capibaribe,
a tarde de ferro, em Sevilha,
e o que mais a luz assimile.
Em vez de vida, a pandemia
fez como a fome sertaneja:
laçou por dentro a enfermiça,
interrompeu a fiandeira.
2.
2020 o viu portanto
em pares perfeitos e quadras,
mas lhe mostrou, com passo incauto,
que o simétrico abandonara:
que o rasante de um urubu
não era mais voo, rastejava;
que na superfície do sujo
não era possível mais água.
Em vez de homenagem, confim.
Em vez de verso, a quarentena
com que bem se celebra o sim
que sibila um não em surdina.
Nada disso lhe serviria
se não descobrisse a socapa:
o seu centenário de vida
já traz a morte escancarada.
O LANCE
para Antonio Carlos Secchin
Aqui escrevo, com letra firme
uma dedicatória
mais verídica do que protocolar.
Um dia
todo o livro perderá
seu brilho fraterno e encadernado:
um preço inicial
ficará preso à costura, escapando ao refile,
e lance a lance
(conformado à complexa fama)
subirá à estante alheia,
distante aos nossos olhos fechados.
Ainda assim
terei deixado em cursivo
o mesmo impulso
que me fez escrever o livro impresso.
Espero que entendam, no arremate,
o quanto fiz e o que se leu
enquanto o martelo bate o fim do dia,
que outra página dobra.
POEMA DE MUITAS FACES
para Silviano Santiago
Todas as noites são pardas,
disse o gato.
Um cordão umbilical
alimenta a verdade com mentira,
uma ração que não saciará.
Assim eu fico nesse continente
onde os trópicos são um tropo
um tropeço
e todos os anônimos querem ter endereço.
Bala perdida do olhar
que me alcançou:
às vezes me pergunto
se vale mesmo interpretar.
Confinado e de cócoras
em meu país
(cuja solidão precisa ser estudada),
quem desiste de escrever?
A mesma história me conforta:
nas suas malhas me esparramo,
preso ao sonho, mas tramando
um outro sonho em liberdade.
Não sei se mereço heranças,
eu que pretendo um alter ego
à altura
da minha perdição:
e estou aqui (sendo quem sou),
ainda corrigindo o meu rascunho.
Se minha memória falhar,
tanto melhor.
POEMA VIRAL
(versos de perigosa circunstância)
Sabe o seu sorriso? Virou
imagem do precipício,
vertigem com máscara.
A sua respiração, ofegante
ou não, comeu-a por dentro
o medo, sem consternação.
Está sozinho, na cozinha
aguardando a comida aquecer
só para você? Alguém virá
para corrompê-lo, meter a mão
onde faltava limpar o pó
da sua infecção? Mais tarde
alguém deixará de soprar?
A superfície das coisas
é toda abissal? E as esquinas
têm ângulos fatais, afiados
como um dia de sol a pino
onde a sua sombra sumiu?
Tenha muito cuidado.
Cuidados intensivos.
Fique vivo.
AS HELENAS
Aquilo que Ronsard dizia aconteceu:
as rosas que colhi fanaram-se lá atrás,
garotas que lançaram orgasmos nos bancos
dianteiros só perguntam se podem mandar
as fotos dos seus netos. Nenhuma esqueceu
de indagar se casei e se me sinto em paz.
Falam de operações, de medos, solavancos,
e sabem, sem malícia, que devem chorar.
*
Minguaram as Helenas todas, eu já sei.
E o “fantasma sem ossos” que comigo vive
discute informações sobre as enfermidades,
recorda-se de alguém, e esteve em um velório.
Levei três para casa, e assim me equivoquei.
Com duas me perdi. Com uma me contive.
Esses números flagram todas as idades.
Mas não me sinto mal, embora provisório.