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    Ilustração de Carvall

anais da linha-dura

A polícia toma o poder

Motins dentro das corporações, discurso justiceiro, benefícios legais e apoio de Bolsonaro fazem explodir o número de policiais civis e militares em cargos eletivos no Brasil

Allan de Abreu | 16 dez 2020_12h16
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Os tempos de farda e quepe ficaram para trás. Mesmo assim, Wagner Sousa Gomes parece se esforçar a cada momento, especialmente nos períodos eleitorais, para lembrar a todos o seu passado de capitão da Polícia Militar do Ceará. Na manhã do último dia 17 de outubro, em plena disputa pela prefeitura de Fortaleza, Capitão Wagner, como é conhecido, equilibrava-se na caçamba de uma caminhonete, durante carreata pela periferia pobre da cidade. Usando trajes civis – calça jeans, camiseta polo e tênis branco –, o prefeiturável do Pros alternava, com a mão direita, acenos e continências. Ao lado dele, uma candidata a vereadora exibia um dos uniformes prediletos dos bolsonaristas: camiseta preta com o rosto estilizado do presidente Jair Bolsonaro em branco, uma clara alusão à célebre imagem do mafioso fictício Vito Corleone nos cartazes do filme O Poderoso Chefão. Jingles chicletes com cacofonias do tipo “Capitão captou” e “A capital vai de capitão” se alternavam com sons de sirene. De moto, um rapaz usava balaclava no rosto. Outro, de carro, ostentava um quepe, enquanto moças muito jovens caminhavam a pé pela calçada,  distribuindo santinhos, todas com o escudo do Capitão América estampado em suas camisetas azuis.

Pesquisa Datafolha divulgada naquele mesmo dia mostrava Capitão Wagner na liderança da corrida eleitoral, com 33% das intenções de voto. A petista Luizianne Lins tinha 24% e José Sarto, do PDT, 15%. Uma semana antes, Bolsonaro havia declarado apoio ao candidato do Pros. Mas, na reta final do primeiro turno, o ex-PM de 41 anos seria ultrapassado por Sarto, o preferido dos irmãos Ciro e Cid Gomes, caciques políticos no Ceará. Na curta campanha do segundo turno, o pedetista obteve o apoio do governador Camilo Santana, do PT, e de um leque heterogêneo de partidos, que ia do DEM e do PSDB ao Psol. Acabou eleito numa disputa apertada, com 51,69% dos votos. Capitão Wagner abocanhou 48,31%.

Era a segunda vez consecutiva que o PM da reserva via a prefeitura de Fortaleza lhe escapar pelos dedos. Ele já havia perdido a disputa de 2016 para outro rival do PDT, Roberto Cláudio. A polarização com os irmãos Gomes vem se mostrando uma constante na carreira política do ex-policial. No fim de 2011, quando Cid era governador, Capitão Wagner liderou uma greve da corporação por melhores salários. Na época, ele acabara de trocar o oficialato da PM, que ocupou durante quase treze anos, por uma vaga na Assembleia Legislativa, como suplente. Ao longo de sete dias, entre 29 de dezembro de 2011 e 4 de janeiro de 2012, policiais militares e bombeiros se recusaram a sair dos quartéis. No dia 3, terça-feira, arrastões na periferia de Fortaleza, vitaminados por uma onda de boatos nas redes sociais, fizeram o comércio da capital decretar um feriado informal, situação inédita na história da cidade. Pressionado pela opinião pública, Cid capitulou. Cedeu às exigências por reajuste salarial da tropa, e os amotinados voltaram ao trabalho. Capitão Wagner vencia a primeira batalha. 

Greves de PMs e bombeiros são proibidas tanto pela Constituição quanto pelo Código Penal Militar e podem acarretar até vinte anos de prisão. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) reforçou a ilegalidade desse tipo de movimento e estendeu a proibição para a Polícia Judiciária. A razão é simples: trata-se de contingentes armados que, ao se rebelarem, têm condições de tomar o Estado. Há nove anos, durante a paralisação no Ceará, Cid ameaçou processar todos os revoltosos, mas desistiu. Dez meses depois do motim, Capitão Wagner seria o vereador mais votado para a Câmara de Fortaleza, com 43 mil votos. Em 2015, ele retornou à Assembleia, não mais como suplente e de novo com um número expressivo de votos: 194 mil. Em 2018, já surfando a onda do bolsonarismo, conseguiu uma vaga na Câmara dos Deputados, com 303 mil votos. A greve de 2011 também alçou para a política dois outros PMs do Ceará: o deputado estadual Noelio da Rocha Oliveira, ex-soldado, e o deputado federal Flavio Alves Sabino, ex-cabo. 

A Polícia Militar cearense deflagaria mais um motim em 18 de fevereiro deste ano, por discordar do reajuste escalonado no salário dos policiais, que atingiria o teto de 32% apenas em 2022. No dia 19, enquanto grevistas encapuzados ordenavam que o comércio fechasse as portas e outros amotinados trajavam com orgulho camisetas pró-Bolsonaro em Fortaleza, o agora senador Cid Gomes se metia em confusão no interior do estado. Ele tomou dois tiros, na clavícula e no pulmão, depois de subir numa retroescavadeira para tentar romper o piquete de um grupo de policiais diante do 3º Batalhão da PM, em Sobral. Por causa da rebelião, 230 militares foram afastados do cargo e outros 47 acabaram presos. Dessa vez, o ex-cabo Sabino liderou a revolta, mas quem anunciou o acordo para encerrar a greve, em 1º de março, após treze dias de motim, foi novamente o Capitão Wagner. Num palanque improvisado no 18º Batalhão, em Fortaleza, ele se colocou ao lado da também deputada federal Fabiana Silva de Souza, a Major Fabiana, do PSL fluminense.

Mesmo sem relação direta com o movimento do Ceará, a parlamentar pediu a palavra ao ex-capitão, que definiu como “irmão de farda”. “Agora, quem é contra a Polícia Militar não tem mais a hegemonia do discurso”, declarou. “Agora a tropa elegeu representantes que sabem que, na ponta da linha, ninguém aguenta mais esperar, sabem o que é vitimização policial. […] Pela primeira vez, a gente tem um presidente, o Bolsonaro, que sabe o que é ser um policial militar.” Nesse instante, a major reformada foi interrompida por aplausos e gritos de “mito, mito”. 

Apesar de o motim ser ilegal, Bolsonaro não o condenou. Afinal, ele próprio se insubordinou nos tempos de capitão do Exército. Em 1986, publicou na revista Veja o artigo O Salário Está Baixo, em que defendia reajuste no soldo das tropas. Como suas palavras não surtiram efeito, o oficial decidiu recorrer à violência. Em 1987, uma reportagem da mesma Veja revelaria um plano de Bolsonaro para explodir bombas em unidades do Exército, o que o levou à reserva e, logo depois, à política, como vereador do Rio.

Ainda durante a recente greve no Ceará, Sergio Moro, então ministro da Justiça e Segurança Pública, fez malabarismos verbais ao comentar o caso. Em visita a Fortaleza, evitou criticar o levante e disse que a situação “não era de absoluta desordem”. Os fatos, porém, o desmentiram: somente nos treze dias de motim, 312 pessoas foram assassinadas no Ceará, quase o dobro dos 164 homicídios ocorridos em fevereiro do ano anterior. Desde março, tramita na Câmara um projeto de lei para anistiar todos os policiais grevistas. O autor é justamente o Capitão Wagner.

Capitão Wagner
Capitão Wagner em ato de campanha política, em Fortaleza – Foto: Tatiana Fortes/O POVO

 

Em 2011, o Brasil tinha 504 policiais militares ou civis em cargos eletivos: um senador, doze deputados federais, 46 deputados estaduais, dezenove prefeitos e 426 vereadores. Nove anos depois, tem 880: dois governadores (Rondônia e Santa Catarina), quatro senadores, dezesseis deputados federais, noventa deputados estaduais, cinquenta prefeitos (incluindo o de uma capital, Vitória) e 718 vereadores. No pleito de novembro, dos 8 mil profissionais ligados às forças de segurança que se lançaram candidatos, 859, ou 10,7%, se elegeram. Um percentual alto, na avaliação de Renato Sérgio de Lima, diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Para ele, o crescimento está diretamente ligado a 2013, ano em que mobilizações populares explodiram no país e evidenciaram a fúria da sociedade contra os políticos tradicionais. “Desde então, parece haver um cansaço de parte dos eleitores em relação ao discurso mais voltado para os direitos humanos. Paralelamente, ocorre uma valorização das iniciativas de combate à corrupção. Daí o avanço da retórica de direita, conservadora, que legitima o policial nas urnas, como uma alternativa viável de poder.”

Entre os policiais eleitos em novembro, 91 são do MDB, 82 do PSD e 78 do PP, de acordo com levantamento da piauí a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). De cada dez policiais que se candidataram nas eleições de 2010 a 2020, oito eram filiados a partidos de direita ou centro-direita, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Reações à esquerda dentro da polícia, como o movimento dos policiais antifascismo, que ganhou corpo na metade de 2020, sempre foram residuais. “Nossa formação valoriza a luta do bem contra o mal, o discurso da ordem, a defesa da família e o endurecimento das leis no combate ao crime. Por isso, somos conservadores”, define o senador paulista Sérgio Olimpio Gomes, o Major Olimpio, que atua na política desde 2007. Ele acredita que a população encontrou no policial “um representante com credibilidade, um herói”.

Para o antropólogo Luiz Eduardo Soares, o “empobrecido debate” em torno da segurança pública no Brasil tende a rejeitar o conceito de que ações policiais bem-sucedidas devem minimizar o uso da força e não podem se deixar contaminar pela desigualdade social e pelo racismo. Ainda impera no país a noção equivocada de que, em última instância, a polícia tem a missão de proteger os ricos brancos dos pretos pobres. Isso acaba por alimentar ideias reacionárias, “trogloditas”, a favor de mais violência policial e mais encarceramento. “Essa pequena dramaturgia, repleta de personagens grotescos, discursos simplórios e emoções performáticas, dialoga com sentimentos primários do eleitor, como o medo, a insegurança e a necessidade de proteção, num sentido mais patriarcal. Surge aí a figura do herói fardado, uma caricatura fascista”, explica Soares. 

Não por acaso, em outubro de 2018, a cabo Kátia Sastre, da PM paulista, virou deputada federal com mais de 264 mil votos, graças à repercussão de um episódio ocorrido meses antes em Suzano, na Grande São Paulo. A policial, à paisana, matou um assaltante na frente do colégio onde a filha dela estudava. A imagem de “xerife” combina perfeitamente com a predisposição da maioria dos eleitores para identificar, entre as causas da criminalidade, aspectos simplistas, como a maldade, a falta de policiamento ou a benevolência das leis.

Foi nesse contexto que Bolsonaro conseguiu, como nenhum outro político brasileiro, ganhar a simpatia dos policiais. “Valendo-se de discursos radicais e fortemente conservadores, ele fez com a PM o que o PT havia feito com os sem-terra: conquistou o apoio de um grupo coeso e muito ideológico”, compara o cientista político Glauco Carvalho, coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo. Em janeiro de 2017, quando ainda era deputado federal, Bolsonaro foi ovacionado com gritos de “mito” pelos mais de mil novos soldados da PM de Minas Gerais durante cerimônia de formatura no ginásio Mineirinho, em Belo Horizonte. “O homem da segurança pública é um dos profissionais mais importantes que existem. Afinal de contas, eles arriscam suas vidas por nós. Sei da necessidade jurídica de vocês para bem trabalhar. Eu falo pelos meus amigos da PM do Rio de Janeiro: eles têm muito mais medo do capa preta [juiz] que do vagabundo com a ponto 50 em cima do morro. Eu sonho em obter o excludente de ilicitude para o policial militar em operação”, disse Bolsonaro no evento.

Apesar de os regulamentos disciplinares das PMs proibirem manifestações ideológicas, o apoio da categoria ao capitão reformado ficou explícito durante a campanha presidencial de 2018. Enquanto policiais tietavam Bolsonaro em carreatas no interior paulista, tropas que marchavam pelas ruas de Luziânia, em Goiás, entoavam um grito de guerra nada sutil: “Ei, cidadão, por favor, não se esqueça / Dia 28, é Bolsonaro na cabeça.” Quartéis em todo o Brasil se tornaram comitês informais do candidato do PSL. Hoje, depois de alcançar o cargo político máximo do país, com 57 milhões de votos, Bolsonaro continua recebendo o apoio de evangélicos, ruralistas e policiais. A diferença entre eles é que apenas esses últimos carregam regularmente uma arma no coldre ou nas mãos.

 

Na noite de 22 de maio de 2020, horas após o STF divulgar a gravação da reunião ministerial do mês anterior em que Bolsonaro atacara o serviço de inteligência do governo, jornalistas o abordaram em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília. Queriam saber o que seria o sistema particular de informações que o presidente havia citado na reunião. Ele deu, então, alguns exemplos: “É um colega de vocês da imprensa, que com certeza eu tenho, é um sargento no Batalhão de Operações Especiais no Rio, é um capitão do Exército em Nioaque [município de Mato Grosso do Sul], é um capitão da Polícia Civil em Manaus.” No fim de 2019, Bolsonaro já tinha dito ao apresentador José Luiz Datena, da Band, que recebera a informação de que a Polícia Civil fluminense cumpriria mandado de busca e apreensão na casa de seu filho Carlos, o Zero Dois, em razão do inquérito que investiga a morte da vereadora Marielle Franco. 

A busca nunca ocorreu, mas Bolsonaro conta, de fato, com uma ampla rede de informantes nas polícias do Rio, em especial a PM. Esses policiais fazem chegar ao presidente todo tipo de informações, do planejamento de operações da polícia ou do Ministério Público até informações sobre veículos de imprensa. “Ele quer saber tudo o que acontece no Rio. Faz parte da herança militar dele”, diz um policial que integra esse serviço paralelo de informações — ele pediu anonimato para evitar retaliações. O sistema é centralizado em um militar lotado no Gabinete da Presidência. Procurada pela piauí, a assessoria do Palácio do Planalto não se pronunciou a respeito do assunto.

 

Permissivas, as leis brasileiras facilitam o caminho de quem deseja trocar a farda por um cargo eletivo. Policiais militares com mais de dez anos de carreira podem, inclusive, voltar a seus postos caso saiam derrotados nas urnas. Apenas aqueles com menos de uma década de serviço precisam ir para a reserva antes de concorrerem. Na América do Sul, Chile, Uruguai, Argentina, Bolívia e Peru proíbem a candidatura de PMs. Na Colômbia, militares não têm nem mesmo direito ao voto. Já na Europa, a proibição ocorre na Espanha, França e Inglaterra.

“O que eu vejo […] é a partidarização da polícia. Não é só no Ceará, é em todos os estados brasileiros. Acho que o equívoco do Brasil é autorizar que policiais militares façam parte da vida partidária e possam retornar às próprias polícias se perderem as eleições”, disse em junho o governador do Ceará, Camilo Santana, durante entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura. Cláudio Ferraz, ex-chefe da Polícia Civil no Rio de Janeiro, concorda: “A segurança pública é ineficiente, em boa medida, pela sua politização. O agente deixa de agir em prol do interesse público e se pauta por conveniências políticas. Isso desvaloriza a carreira policial.”

Há um nítido privilégio aos policiais no que diz respeito aos prazos previstos na lei eleitoral. Em regra, servidores públicos precisam deixar seus cargos seis meses antes das eleições — em abril, portanto. Mas os policiais podem aguardar a confirmação de seus nomes pelas convenções dos partidos, entre julho e agosto, antes de se afastarem dos seus postos e se filiarem às legendas. São de três a quatro meses de vantagem sobre os demais servidores, período em que os policiais não raro utilizam suas funções para se capitalizarem perante o eleitor.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública ajuda a compreender o poder dos policiais nas urnas. A partir de dados extraídos da Receita Federal, do TSE e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a publicação informa que policiais militares ou civis e membros das Forças Armadas, ativos e inativos, totalizam 5,6 milhões de pessoas, ou 3,8% do eleitorado nacional. Considerando que a maioria desses profissionais é casada e que uma família no Brasil tem, em média, 3,3 integrantes, a “família da segurança pública” reúne 18,5 milhões de pessoas, o equivalente à soma das populações das duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio. Essa base costuma ser aliada incondicional dos policiais, mesmo diante de ações ilegais, como o motim das tropas. Não à toa, nos últimos anos, tornou-se comum mulheres de PMs ocuparem os quartéis para protestar por melhores salários no lugar dos maridos, impedidos de protagonizarem atos desse tipo.

Um levantamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) constatou que, entre 1997 e 2017, houve 715 greves de policiais no Brasil, das quais 52 foram de PMs. No caso da Polícia Militar, reivindicações salariais estiveram presentes em dois terços das revoltas, enquanto questões políticas (como reforma administrativa ou previdenciária), em 5% dos episódios. O ano mais tenso no período analisado foi 1997, quando levantes policiais sacudiram doze estados, com vários atos de violência. Em Minas, um um policial assassinou um cabo durante um protesto. No Ceará, o comandante da PM foi ferido com um tiro no ombro. Em Alagoas, o então governador Divaldo Suruagy renunciou depois de um confronto entre PMs e soldados do Exército em frente à Assembleia Legislativa – a Polícia Militar pressionava os deputados a aprovarem o impeachment do governador.

Para o sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, autor do estudo, houve instrumentalização política em muitas das greves dos policiais militares. Ele cita o exemplo do motim no Espírito Santo, em fevereiro de 2017. Então comandante da corporação capixaba, o tenente-coronel Alexandre Quintino Moreira disse que o movimento era “legítimo” devido à defasagem salarial na categoria. “A minha panela está vazia, assim como a panela do cabo”, afirmou o oficial, cujo soldo era de 16 mil reais. Se a greve trouxe caos para as ruas do Espírito Santo (durante os 21 dias de paralisação, registraram-se 215 assassinatos no estado, o dobro do mesmo mês do ano anterior), também impulsionou a trajetória política do Coronel Quintino: em 2018, ele foi eleito deputado estadual pelo PSL de Jair Bolsonaro, que, aliás, apoiou a greve. “Vocês [governadores] não podem se prevalecer da disciplina dos policiais militares para subjugá-los. Vocês têm que deixar de ser covardes. Quem quebra os estados são vocês, políticos, não são os militares”, disse o então presidenciável.

Por causa da greve no Espírito Santo, o capitão da PM Lucinio Castelo de Assumção chegou a ficar dez meses preso, acusado de incitar o motim. Ele foi condenado a cinco anos de prisão, mas agora está recorrendo em liberdade. Na onda do bolsonarismo, acabou eleito a uma cadeira na Assembleia Legislativa em 2018. No ano seguinte, na tribuna do parlamento, ofereceu 10 mil reais a quem matasse o suspeito de um assassinato em Cariacica.

A condenação em primeira instância do deputado do PSL capixaba foi uma absoluta exceção no Brasil. Quatro leis federais, sancionadas pelos presidentes Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer, anistiaram todos os PMs que participaram de motins entre 1997 e 2016. Outros dois projetos de lei que tramitam no Congresso buscam estender a anistia para 2020. Entre os agentes das forças públicas, não há dúvida de que Jair Bolsonaro irá sancionar ambas as propostas, reforçando o ciclo de greves ilegais/novos policiais na política/ aumento do lobby para livrar os grevistas de punição. “Os policiais têm o poder de fazer qualquer governo refém”, diz Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A leniência das corregedorias das PMs completa o ciclo de impunidade: dados fornecidos à piauí por catorze estados mostram que, entre 2017 e 2019, apenas 57 militares foram punidos administrativamente por atividades político-partidárias dentro dos quartéis.

 

A presença de policiais na política brasileira remonta, pelo menos, ao início do século XX. Após contribuir para a formação da coluna Prestes, em 1924, Miguel Costa, oficial de cavalaria da Força Pública de São Paulo (atual Polícia Militar), fundou a Legião Revolucionária, constituída por operários que apoiavam o governo de Getúlio Vargas. Em 1932, meses antes de ser exonerado da Força Pública, Costa transformou a legião no Partido Popular Paulista, que teve vida curta. Após romper com Vargas, o policial foi preso. Ele não chegou a participar de disputas eleitorais.

Nos anos 1950, outro oficial da Força Pública, Cantídio Nogueira Sampaio, teria projeção política, com mandatos de vereador em São Paulo e de deputado estadual. Ligado ao governador Ademar de Barros, apoiou o golpe militar de 1964 e se elegeu deputado federal pela Arena. Na Câmara, apresentou o projeto que permitia a réus primários, sem antecedentes, apelar de suas condenações em liberdade, até o fim dos recursos. A lei, aprovada, foi feita sob medida para o amigo Sérgio Paranhos Fleury, delegado do extinto Departamento de Ordem Política e Social (Dops), levado a júri popular sob a acusação de liderar o Esquadrão da Morte, grupo de extermínio da polícia paulista.

Assassinatos de civis sempre renderam votos para os policiais. No livro Rota 66, o jornalista Caco Barcellos classifica Conte Lopes, integrante da Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota) nos anos 1970 e 80, como um dos três PMs paulistas com mais mortes no currículo até então. Tinha entre 100 e 150 homicídios. “Fui salvador, não matador. Tanto que me inocentaram em todos os casos”, defende-se. A visibilidade dada a Lopes por programas de assuntos policiais no rádio e na tevê da época fez do oficial uma personalidade. Em 1986, ele se elegeu deputado estadual e nunca mais deixou a política. Atualmente, ocupa uma cadeira na Assembleia Legislativa paulista. Outro que surfou na popularidade de policial linha-dura foi o coronel Ubiratan Guimarães. Dez anos após comandar a invasão do Carandiru, em São Paulo, em 1992, Guimarães tornou-se deputado estadual com o número de urna 14111 – os três últimos dígitos remetem ao total de presos mortos no massacre.

No Rio das décadas de 1980 e 90, a fama dos grupos de extermínio alavancou a carreira política de ao menos dois de seus próceres. Líder dos Cavalos Corredores, facção responsável pela chacina de onze jovens da favela de Acari em 1990, o coronel da PM Emir Campos Larangeira seria eleito deputado estadual naquele ano. Dentro de seu gabinete na Assembleia Legislativa (Alerj), segundo o Ministério Público, ele planejou o assassinato da líder das “Mães do Acari”, que lutavam pela responsabilização criminal dos assassinos. O caso ainda segue sem julgamento. Os Cavalos Corredores também foram apontados como autores de outras duas chacinas em 1993: a da Candelária (oito mortes) e a de Vigário Geral (21 vítimas). Em 1994, Larangeira não foi reeleito.

Já Sivuca, apelido do delegado José Guilherme Godinho, teria melhor sorte. Conseguiu três mandatos consecutivos na Alerj com o bordão “bandido bom é bandido morto”. Posteriormente, ele acrescentaria o complemento “e enterrado de pé, para não ocupar muito espaço”. Em 1964, a morte do detetive Milton Le Cocq levaria à criação da Scuderie Detetive Le Cocq, primeiro grupo de extermínio fluminense. Fundador da Le Cocq, Sivuca era um dos doze “homens de ouro” da Polícia Civil, escalados pela cúpula da segurança pública estadual para eliminar criminosos, travestis e moradores de rua. “Sequestrador tem que morrer, assim como latrocina, traficante e estuprador, porque são bandidos”, disse certa vez. A primeira vítima do grupo foi Manoel Moreira, o Cara de Cavalo, suspeito da morte do detetive, assassinado com 62 tiros. A Scuderie Le Cocq, que chegou a ter 7 mil integrantes e só foi extinta no início dos anos 2000, está na origem dos grupos paramilitares que atualmente controlam boa parte da Região Metropolitana do Rio.

 

Desde cedo, as lideranças das milícias fluminenses enxergaram vantagens em assumir cargos eletivos. A imunidade parlamentar serviria de escudo para impedir a investigação de seus crimes e possibilitaria acesso fácil ao dinheiro público para capitalizar seus negócios ilícitos, como a venda de botijão de gás ou de sinal clandestino de tevê a cabo. O primeiro passo seria transformar os territórios sob seu controle em curral eleitoral, por meio de estratégias que mesclavam o assistencialismo a ameaças de surra ou morte. 

Os primeiros milicianos a se aventurar na política foram os chefes da Liga da Justiça, que dominava os bairros cariocas de Campo Grande e Santa Cruz no início deste século. Jerônimo Guimarães Filho, o Jerominho, se elegeu vereador do Rio em 2000, enquanto seu irmão, Natalino José Guimarães, conquistou uma cadeira na Alerj em 2006. Líder do outro grande grupo miliciano da época, o de Rio das Pedras, Josinaldo Francisco da Cruz, o Nadinho, foi eleito vereador em 2004 com 44% dos votos na comunidade.

Os três estavam entre os principais alvos da CPI das Milícias, instalada na Assembleia Legislativa em 2008. Dos 266 indiciados pela Comissão Parlamentar de Inquérito, sete eram políticos. Em função dessas investigações, os irmãos Guimarães acabaram presos e condenados por homicídio e formação de quadrilha. Nadinho, por sua vez, foi assassinado em 2009, depois de virar  colaborador da CPI.

A partir de então, uma parte dos milicianos alterou seus métodos de representação política. Deixaram eles próprios de ser candidatos, preferindo se associar a políticos sem ligação direta com a milícia, embora ajam no Executivo ou Legislativo conforme os interesses dela. “É uma atuação mais discreta, mas nem por isso menos incisiva”, diz o sociólogo Ignacio Cano. Os currais eleitorais passam a ser negociados pelos paramilitares com grupos políticos já consolidados, como a família Brazão, que historicamente concentra muitos votos em Rio das Pedras.

Jair Bolsonaro sempre foi próximo dos milicianos fluminenses. Fabrício Queiroz – ex-PM e pivô do esquema das “rachadinhas” de Flávio Bolsonaro, o Zero Um, na Alerj – é o principal elo entre o clã e as milícias. Nas eleições de novembro passado, o presidente pediu votos para Nelson Ruas de Souza, o Capitão Nelson, que disputava a prefeitura de São Gonçalo, segunda maior cidade do Rio, com 1 milhão de habitantes. Em 1988, sete pessoas foram mortas por dez policiais militares comandados pelo então sargento Nelson Ruas, incluindo o filho de uma juíza, assassinado com dois tiros na nuca. Denunciados pelo Ministério Público, todos acabariam absolvidos pela Justiça Militar do Rio, anos depois. Em 2004, o Capitão Nelson se elegeu vereador em São Gonçalo e foi para a reserva da PM. Ele seria reeleito outras três vezes. Nesse período, a CPI das Milícias o citou como líder de uma facção que agia no Jardim Catarina, na periferia da cidade, em associação com bicheiros. 

Nos anos 1990, Nelson atuou no setor de inteligência da PM. Eram os tempos da “gratificação faroeste”. Instituído pelo governo estadual para premiar financeiramente policiais militares por “atos de bravura”, o benefício estimulou inúmeras matanças. Em automóveis descaracterizados, agentes com capuz caçavam sem-teto e criminosos à bala em São Gonçalo e Niterói. Nas ruas de São Gonçalo, um grupo de extermínio apelidado de “carro da linguiça” assombrava os moradores. 

Quando o Capitão Nelson venceu a disputa para a prefeitura de São Gonçalo, em novembro, uma moradora da cidade escreveu no Facebook: “Capitão ganhou. Vai que agora [o carro da linguiça] volta.” Sua vitória foi comemorada com muitos tiros para o alto. O próprio prefeito eleito segurava um revólver em meio aos festejos com seus apoiadores. Procurada pela piauí, a assessoria do político negou envolvimento dele com paramilitares.

O modelo miliciano do Rio seria replicado com sucesso em Belém a partir dos anos 2010. Policiais civis ou militares e bombeiros passaram a extorquir moradores e pequenos comerciantes no bairro do Guamá, o mais populoso da capital paraense, com quase 100 mil habitantes. O grupo era chefiado pelo cabo da PM Antonio Marco da Silva Figueiredo, conhecido como Cabo Pet. Violento, ele respondeu a vários inquéritos militares por homicídio e extorsão. Também instalou um sistema de câmeras pelas ruas do Guamá e mandou fixar placas nas fachadas dos comércios locais com a inscrição “protegido pelo Pet”.

O cabo era bem próximo do delegado Éder Mauro Cardoso Barra, da Polícia Civil de Belém. Como o miliciano, Barra tinha fama de policial linha-dura. Respondeu a três ações penais por tortura, das quais acabou absolvido, e é réu num caso de homicídio. Em 2014, Barra e Pet participaram de uma operação contra traficantes do Comando Vermelho que controlavam o bairro Terra Firme, vizinho ao Guamá — na época, a milícia buscava expandir seu domínio territorial. Em outubro daquele ano, o delegado Barra virou deputado federal com 266 mil votos, a maior votação do Pará. Já o Cabo Pet foi assassinado dias depois das eleições, com vinte tiros, no Guamá. A morte desencadeou homicídios em série na capital paraense. PMs pediam nas redes sociais vingança para o “irmãozinho Pet”. Nove pessoas foram assassinadas, seis delas com claros sinais de execução. Os crimes motivaram a instalação de uma CPI na Assembleia Legislativa do Pará para investigar as milícias no estado. Embora citado no relatório final da comissão, o delegado não foi indiciado. Reeleito em 2018, Barra se transformou num aliado fervoroso de Jair Bolsonaro na Câmara. Procurado pelo site, ele não quis se manifestar.

 

Elias Miler da Silva é um homem agitado, de baixa estatura e ralos cabelos grisalhos. Coronel aposentado da PM paulista, ele divide-se entre a assessoria do senador Major Olimpio e a presidência da Associação dos Oficiais Militares do Estado de São Paulo em Defesa da Polícia Militar, a Defenda PM. Assumidamente bolsonarista, a entidade com 2 mil filiados foi criada em setembro de 2016, momento em que o tucano João Doria estava em plena campanha para a prefeitura de São Paulo. O objetivo formal da Defenda PM é cuidar dos interesses da categoria, mas Doria é a verdadeira nêmesis da associação: sempre que podem, Silva e os demais filiados fustigam o atual governador paulista, inimigo número um de Bolsonaro. Entre um ataque e outro, a Defenda PM promove “cursos de capacitação” para policiais que querem ingressar na política. “Explicamos como funciona a lei eleitoral, como se filia a um partido, o que pode ou não nas campanhas”, diz Silva. Embora atue na prática como um sindicato, a Defenda PM se diz uma associação sem fins lucrativos – a Constituição proíbe a sindicalização de militares.

Silva vangloria-se de ser próximo a Bolsonaro. “Fui eu quem sugeri ao presidente compor com o ‘Centrão’ no Congresso, jogar o jogo”, diz. Para o coronel reformado, o presidente foi diretamente responsável pela queda de 19% nos homicídios registrados no Brasil em 2019. (Especialistas afirmam que a queda está relacionada a vários fatores, e não só à ação do governo federal.) “Em qualquer lugar do mundo isso seria comemorado. E por que isso não acontece no Brasil? Porque as pessoas estão compradas, cegas pela ideologia”, afirma.

Dos filiados à Defenda PM, Capitão Augusto, deputado federal pelo PL de São Paulo, é dos mais estridentes. Ex-bombeiro, policial rodoviário e policial militar, José Augusto Rosa conserva o forte sotaque caipira de Ourinhos, São Paulo, sua terra natal. Desde que assumiu pela primeira vez uma cadeira na Câmara dos Deputados, Capitão Augusto costuma ir às sessões com sua farda de gala da PM, devidamente recheada com condecorações e insígnias, para defender o governo Bolsonaro.

Há quatro anos o parlamentar tenta criar o Partido Militar Brasileiro, PMB, para, nas palavras da página oficial da sigla no Facebook, “resgatar a ética, a moral e a honestidade na política nacional, valores tão cultuados pela classe militar”. Chegou a apresentar uma lista com 800 mil assinaturas, passo exigido pelo Tribunal Superior Eleitoral para a criação de um partido, mas as rubricas foram invalidadas pela corte eleitoral. Capitão Augusto, que já se coloca como presidente do partido, requisitou ao TSE dois possíveis números de urna para a nova sigla: 38, calibre do revólver mais famoso no Brasil, ou 64, o ano do golpe militar – ou “revolução democrática”, nas palavras do deputado. No fim de 2019, Capitão Augusto cedeu o primeiro número para o Aliança pelo Brasil, o partido que Jair Bolsonaro tenta criar e até agora também não saiu do papel.

*Em colaboração com Daniel Ferreira, do site de jornalismo de dados Pindograma.

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