ANDRÉS SANDOVAL_2020
A militância no córtex
Maria Marighella quer participar do novo tempo da política
Clara Rellstab | Edição 172, Janeiro 2021
Era 1976, era Salvador, era ditadura. Era como se Maria tivesse escolhido a hora errada para nascer. O seu pai, Carlos Augusto, estava preso desde o ano anterior, quando fora detido durante a Operação Acarajé, chefiada pelo coronel e torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra. A avó, Clara, dava início ao sexto ano de exílio em Cuba, após ter escapado do Brasil só com a roupa do corpo. E a pior das tragédias: seu avô, Carlos Marighella, tido pelos militares como inimigo público nº 1, havia sido morto pela repressão apenas sete anos antes. Aos olhos da ditadura, a família Marighella era sinônimo de subversão, revolução e comunismo.
Na casa onde Maria Fernandes Marighella cresceu, em Salvador, não havia imagens de foices e martelos penduradas na parede nem era obrigatório ler antes de dormir o Minimanual do Guerrilheiro Urbano, escrito por seu avô, que foi membro do Partido Comunista Brasileiro e um dos fundadores da organização revolucionária Ação Libertadora Nacional. Mas ela conta que, mesmo antes de aprender cantigas infantis, já sabia gritar um dos slogans comunistas: “Assim se vê a força do PC.”
Era uma casa que “não tinha cara de lugar de reunião política, de doutrinação”, recorda. “Mesmo assim, estava sempre povoada por muita gente e pelos dramas do país.” A política era um mundo à parte para a menina, que desejava apenas ter o que considerava “uma vida normal”, sem parentes presos e sem que os dramas do Brasil se sobrepusessem na sua família aos problemas que ela própria enfrentava.
Depois que atravessou a adolescência, foi no teatro que encontrou um modo de dar voz às suas “angústias e subjetividades”. Atriz de formação e coração, um de seus trabalhos recentes foi no filme Marighella, dirigido por Wagner Moura. Ela interpretou Elza Sento Sé, a primeira mulher do guerrilheiro e sua avó de fato, hoje com 95 anos – Clara Charf, sua avó de adoção, é a segunda esposa de Carlos Marighella.
A política, no entanto, parecia conduzir, com fios invisíveis, a trajetória da jovem. A experiência teatral acabou levando-a ao primeiro emprego público. Em 2014, sob o governo Dilma Rousseff, Maria Marighella mudou-se para o Rio de Janeiro para assumir o cargo de coordenadora de teatro na Fundação Nacional de Artes (Funarte), ligada ao Ministério da Cultura. No dia seguinte à confirmação do impeachment de Dilma, ela foi exonerada do cargo. Duas vezes. Seu nome apareceu entre os afastados da Funarte e também do Ministério da Cultura – para que não restasse dúvidas.
O baque mais forte, entretanto, havia ocorrido antes disso. Ao assistir à votação do impeachment na Câmara dos Deputados, Maria Marighella ouviu, horrorizada, o então deputado Jair Messias Bolsonaro dedicar seu voto ao torturador de seu pai. “Foi muita petulância uma figura como Bolsonaro dedicar o voto a Ustra, o homem responsável por eu ter nascido sem ter meu pai ao lado. E, além disso, o homem que torturou a presidente Dilma! Naquele momento, percebi que alguma coisa tinha que acontecer: ou a gente tomava partido na vida política, na vida pública, ou o que estava acontecendo seria imparável”, diz.
De volta à Bahia, estado governado pelo PT, ela assumiu o cargo de diretora de Espaços Culturais na Secretaria de Cultura. Numa viagem a Maricá, no Rio de Janeiro, para participar em 2016 do Festival da Utopia, tomou conhecimento da trajetória das políticas negras de Marielle Franco (vereadora do Rio assassinada em 2018), Áurea Carolina (deputada federal por Minas Gerais) e Talíria Petrone (deputada federal fluminense). Esses contatos a estimularam ainda mais, levando-a a reconhecer a força de suas origens africanas – “a ancestralidade com a qual nasci” – e da sua própria identidade política.
Ainda que o sobrenome do avô desperte toda a atenção, Maria Marighella sente-se inspirada sobretudo por Clara Charf, a quem chama de avó. Em 1982, Charf tentou uma vaga de deputada estadual por São Paulo – sem sucesso. Mas continuou na atividade política e, hoje, com 95 anos, se autodeclara “militante feminista”. Ela integra o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e a Secretaria Nacional de Mulheres do PT.
Quando criança, Maria se encontrava com Charf duas vezes por ano apenas: nos aniversários do nascimento (5 de dezembro) e da morte (4 de novembro) do avô. Esses breves encontros foram suficientes para que a figura da avó dominasse o córtex da neta. A esse estímulo ela atribui a decisão de se embrenhar, finalmente, de corpo inteiro no palco da política.
Em 2019, filiou-se pela primeira vez a um partido. Na sua escala de preferências, os partidos comunistas perderam para aquele que Clara Charf havia ajudado a criar, o Partido dos Trabalhadores. Com a ficha de inscrição no PT abonada pela avó, Maria candidatou-se a vereadora, erguendo como bandeira o “ManifestA ColetivA”, um programa político feito em parceria com jovens entusiastas das causas antirracistas, feministas e LGBTQIA+. “Eu acho que o futuro do Brasil está sendo construído neste momento. Estamos vivendo uma transição geracional”, ela avalia. “As figuras que nos representaram até agora estão no fim de um ciclo e creio que todos que estão na política hoje participarão dessa transição. Não falo de mim, mas de um ciclo, de um novo tempo. E eu quero fazer parte desse tempo.”
É bastante provável que ela faça. Nas eleições municipais de novembro, Maria Marighella recebeu 4 837 votos e passou a ocupar a cadeira de número 34 na Câmara de Vereadores da capital baiana. Tornou-se também a primeira mulher da família a ser eleita para um cargo público. Hoje, ela reconhece: “Não houve dia em que eu tivesse vida fora da política ou relacionada à história do Brasil. Eu aprendi a falar Marighella antes de falar Maria.”