Havia um poço
Seis poemas cortantes
Eliane Marques | Edição 173, Fevereiro 2021
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a lua em cirandas
desaceita seus dezessete vezes três nomes
mesmo assim
elas que não rascam o estrume
dos calcanhares
vão
com os cabazes aninhados nos sovacos
e a dezena de cascas de conchas que comem
como se fosse ovo
manchaduras miliárias de ossaturas sem mar
mandaram ladrilhar as paredes
com pedrinhas de brilhante
(sim o poço é delas)
o poço foi delas como tudo delas houve
o sun sun
os olhos de anansi
a única que sabe
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conchas encarnadas na rocha
há faca que assinta cortá-las?
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qual se quebrassem cabaças
o lodo do poço ao cóccix
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compuseram o canto do pássaro
o tronco acocado à beira da porta
no entanto, entoando o Eu-Não até que fosse bem tarde
talvez sobrevivam às solas
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o dibato abafado de cortina batida
paramenta de aparato não como a manjua
à ribeira das canelas o bramido que craquela
com o calcanhar o misipo
aos diques ofertório das filhas
como enfeite
para que a lama de suas frontes
lamenteie
a língua do agueiro que acaba por cuspi-las
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um amontoado
o poço dos altíssimos ostreiros
com o salitre do dia saltando das bocas
o que encanece as chamas do ubíquo incêndio
quem sabe quais podridões os nácares acalantam
forrados do calcite das sedentas
havia um poço mas um poço mesmo
dormido no gume mais alto do ostreiro
NOTA DA REDAÇÃO: Anansi é um deus da mitologia do povo Akan, da África Ocidental. Dibato (tecido), manjua (pequena saia de ráfia, de uso cerimonial) e misipo (universo) são palavras da língua duala, do grupo bantu, de Gana e Camarões. Sun sun é uma aguardente de caju da Guiné.
Poemas do livro O Poço das Marianas, a ser lançado em março pela editora Escola de Poesia.